Adriano Machado/Crusoe

Castelos de propina

Em acordo com a Procuradoria da República, a Camargo Corrêa revela os bastidores do clube de empreiteiras que comandava a construção de prédios de tribunais em Brasília
03.05.19

São 92 mil metros quadrados espalhados por dez andares emoldurados por uma fachada curvilínea recoberta por placas de vidro. Mais uma entre as tantas obras faraônicas que ornamentam Brasília, a sede do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, a pouco mais de dois quilômetros da Praça dos Três Poderes, chama a atenção por seu gigantismo. Um dos últimos projetos de Oscar Niemeyer para a capital, o prédio tem mais de 700 salas. Os gabinetes dos sete ministros — que dão expedientes curtos por lá, já que a maioria integra outros tribunais — são amplos, com vista eterna para o Lago Paranoá.

As dimensões da obra, concluída há oito anos, já foram questionadas em diferentes frentes, mas nenhuma investigação foi capaz de explicar as razões do exagero. Não faz muito tempo, em uma das frentes de trabalho da Lava Jato, o assunto ressurgiu. Em acordo de leniência fechado com a Procuradoria da República e já homologado pela Justiça Federal, a antiga cúpula da Camargo Corrêa contou, pela primeira vez, que o modus operandi inescrupuloso que guiava as obras tocadas por grandes empreiteiras pelo Brasil afora se reproduziu também no Poder Judiciário — e, no caso dos projetos de construção das novas sedes de tribunais em Brasília, teria contado até com a parceria do escritório de Niemeyer.

Três altos executivos da empreiteira, entre eles o ex-vice-presidente Marcelo Sturlini Bisordi, relataram que a obra do TSE já estava acertada entre a OAS e a Via Engenharia desde antes da licitação. Como era comum no “clube de empreiteiras” do petrolão, o jogo de cartas marcadas foi negociado por um seleto grupo de empresas, as mesmas que, segundo os delatores, também fraudaram a licitação para as obras da nova sede do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, lançada no mesmo ano.

Os acertos, segundo eles, incluíam desde contratos de fachada para “compensar” quem desistia de participar da licitação até o “trabalho” das empreiteiras junto ao escritório de Oscar Niemeyer, encarregado dos projetos tanto do TSE quanto do TRF-1, para ajudar a direcionar a licitação. Não há, nas declarações dos executivos, menção a magistrados, embora eles digam que a facilitação contava com a ajuda de funcionários dos tribunais.

ReproduçãoReproduçãoBisordi, um dos delatores: era tudo combinado
O enredo começa em 2006, quando a Camargo Corrêa pretendia expandir sua atuação na capital federal e viu uma oportunidade na obra da nova sede do TSE. O edital de pré-qualificação foi lançado em setembro. A Camargo, então, consultou o edital e começou a se preparar para entrar na concorrência. Pouco tempo depois, Bisordi recebeu um telefonema de um dos sócios da Via Engenharia, uma empresa sediada em Brasília e igualmente acostumada a frequentar o noticiário político-policial. Eles queriam saber qual era o interesse da empreiteira paulista na obra.

A conversa rendeu, conforme o relato dos delatores. A partir do telefonema, foi marcada uma reunião no escritório da Camargo Corrêa em Brasília, da qual participaram representantes da Via e também da baiana OAS, outra estrela da Lava Jato. Bisordi conta que os emissários das duas construtoras, a OAS e a Via, pediram que a Camargo não participasse da licitação, uma vez que as duas já estavam “trabalhando no projeto, inclusive junto ao projetista responsável pela obra, a empresa Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer”.

Como compensação, foi oferecida à Camargo a participação nas obras da nova sede do TRF-1, cujo edital seria publicado meses depois. Os “concorrentes” se esforçaram para dar garantias de que a promessa seria cumprida. Disseram que, como o projeto da nova obra também estava a cargo do escritório de Niemeyer, tudo seria encaminhado para que as especificações favorecessem o grupo. A licitação seria, mais uma vez, direcionada, segundo eles. Nem Bisordi nem os outros dois delatores citam diretamente o arquiteto Oscar Niemeyer, morto em 2012, ou integrantes de sua equipe – eles se referem, sempre, ao escritório.

A Crusoé, o arquiteto Paulo Sérgio Niemeyer, bisneto de Oscar Niemeyer que trabalhou com ele no escritório, chamou de “leviana” a suspeita lançada pelos executivos da Camargo. “O escritório não tinha interferência nenhuma. Eles eram indicados ao projeto ou ganhavam licitação ao que fosse. Se montavam a licitação da obra ou do projeto, não temos como garantir, é uma questão interna (das empresas). Como o Oscar era centenário, ele não agia de má-fé”, diz. A OAS não se manifestou. A Via disse desconhecer o teor do acordo de leniência.

Adriano Machado/CrusoeAdriano Machado/CrusoeA obra do TRF-1, inconclusa até hoje: licitação e contratos anulados
O relato dos executivos da Camargo traz mais confissões. Eles dizem que a empreiteira acabou topando o acordo e desistiu da licitação para a construção do TSE. Para garantir a compensação que viria na obra seguinte, a do Tribunal Regional Federal, chegou a ser assinado um contrato de gaveta com a Via e a OAS. O documento antecipava a composição do consórcio que se sagraria vencedor da nova licitação. O acerto saiu conforme combinado. Via e OAS venceram a licitação do TSE, no valor de 328 milhões de reais, e o consórcio formado pelas duas com a Camargo Corrêa — que protagonizou a Operação Castelo de Areia, uma espécie de embrião da Lava Jato que acabou arquivada por ordem do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — ganhou depois a disputa pelas obras da nova sede do TRF, estimadas inicialmente em 479 milhões.

Os delatores contam que, depois de iniciada a obra, a Camargo foi avisada pela Via e pela OAS que era preciso pagar a uma pequena construtora que também havia se comprometido a não criar embaraços durante a licitação. Foi firmado, então, um contrato de fachada para justificar o repasse de 750 mil reais, em três parcelas, a essa empresa.

Antes mesmo de os pagamentos serem realizados, as suspeitas envolvendo as duas obras eram tantas que o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público Federal e até o Conselho Nacional de Justiça chegaram a questionar vários pontos dos projetos, apontando suspeitas de superfaturamento, direcionamento das licitações e falhas em orçamentos, por exemplo. A Procuradoria da República em Brasília entrou com duas ações cíveis pedindo a suspensão imediata das obras — o que foi rejeitado sumariamente.

Em 2009, o CNJ fez um acordo com integrantes do TSE para reduzir os custos do projeto, que seguiu adiante. No caso do TRF, não houve acordo. A licitação acabou anulada e o contrato com as empreiteiras foi rompido — a obra, que já deveria ter sido concluída, está em curso até hoje, tocada por empresas menores. As apurações que tentavam descobrir os responsáveis pelo conluio nos dois casos foram arquivadas. Ninguém foi punido. Eis que, agora, se abre uma nova oportunidade para avançar.

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