Agência BrasilDias Toffoli e Alexandre de Moraes: unidos pelo inquérito do fim do mundo

O inquérito do fim do mundo

O que Dias Toffoli e Alexandre de Moraes pretendem com a investigação inconstitucional (e secreta) que censurou Crusoé e mira militantes da internet
26.04.19

“Pessoal, um alerta: o presidente fará um anúncio logo no início da sessão de hoje que promete repercutir MUITO”. Com essa mensagem, assim mesmo, com o “muito” em caixa alta, um assessor do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, chamou a atenção de jornalistas que cobrem a corte para a revelação que seria feita por seu chefe na sessão plenária da quarta-feira, 13 de março. Naquele dia, Toffoli anunciou aos outros ministros a instauração de um inquérito de ofício – ou seja, por conta própria e sem pedido nem ao Ministério Público – para investigar, sob sigilo, pessoas que veiculam “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças” que atingem a “honorabilidade do STF, de seus membros e familiares”. De sua cadeira, o ministro informou ter designado – também de ofício, sem sorteio, como é comum nos procedimentos do tribunal – o colega Alexandre de Moraes relator da investigação. Como previu o assessor de Toffoli, os desdobramentos do inquérito repercutiram muito, mas de forma negativa. Sem seguir o rito normal previsto na Constituição, o inquérito revelou o lado autoritário do Supremo ao censurar Crusoé e devassar a vida de cidadãos que, nas redes sociais, postaram mensagens consideradas ofensivas à corte. Tudo isso sem permitir que se conheça, exatamente, o que há dentro da investigação – nem mesmo os advogados dos alvos já conhecidos têm sido autorizados a ter acesso aos autos.

Nesta semana, indagado por jornalistas no intervalo da primeira sessão após a censura decretada por Moraes, o ministro Marco Aurélio Mello classificou o inquérito como natimorto e defendeu que sua legalidade seja, o quanto antes, analisada pelo conjunto dos ministros do Supremo. Uma parte do colegiado, como é sabido, considera o procedimento uma aberração jurídica. O inquérito é a parte mais visível de uma estratégia engendrada por Dias Toffoli para fortalecer a cúpula do Judiciário frente a um alinhamento de situações que alguns dos togados veem como uma ameaça a si próprios: o avanço da Lava Jato sobre a relação de empreiteiras e grandes bancas de advocacia com magistrados de diferentes instâncias, a articulação de um grupo de senadores para instalar a chamada CPI da Lava Toga e o suposto risco de desequilíbrio entre os Três Poderes trazido pela eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República. Pela primeira vez desde a redemocratização, além de enxergar no Palácio do Planalto um movimento para enfraquecer os tribunais superiores, o comando do Judiciário se vê alvejado por múltiplas críticas vindas das redes sociais, em especial de seguidores do presidente. Nessa atmosfera, sobrou também (e convenientemente) para a imprensa – e em especial para Crusoé, que nos últimos meses publicou uma série de reportagens sobre ministros das cortes de Brasília, incluindo o próprio Dias Toffoli e o aliado Gilmar Mendes. Toffoli e seu entorno mais próximo entenderam que era preciso mostrar força – e o fizeram da pior maneira possível.

Na quinta-feira, 25, ao responder a um pedido de informações feito pelo ministro Edson Fachin nos autos de um recurso contra a censura a Crusoé, Moraes não cita diretamente a revista ao mencionar as razões do inquérito, mas tenta enquadrar a reportagem alvo de sua decisão no contexto de supostas “práticas criminosas” que desvirtuam “ilicitamente a liberdade de expressão” para utilizá-la como “escudo protetivo” na atividade contra membros do Supremo. A manifestação de Moraes também deixa clara a intenção de evitar novas publicações de reportagens com documentos sobre ministros. Ele afirma que vai apurar o “vazamento de informações e documentos sigilosos” que tenham o objetivo de atribuir a prática de atos ilícitos a magistrados. As frentes de apuração, como é possível depreender do que escreveu o ministro, são muitas. Mas o que é, afinal, o tal inquérito aberto por Toffoli e entregue aos cuidados de Alexandre de Moraes?

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéGilmar Mendes é o mentor da teoria de que há um complô contra a corte
A investigação é singular. À diferença do que ocorre na grande maioria dos casos, o Ministério Público, representado no STF pela Procuradoria-Geral da República, e a Polícia Federal não pediram a investigação. Na verdade, nem sequer foram consultados antes da abertura do procedimento. Foi o próprio Toffoli quem apontou a necessidade de investigar. Com base em informações mantidas em sigilo, o ministro decidiu abrir o inquérito apoiado em uma interpretação no mínimo criativa do artigo 43 do Regimento Interno da corte. “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará essa atribuição a outro ministro”, diz o texto, anterior à Constituição de 1988. Pelo que se tem notícia, porém, nenhuma das supostas fake news ou dos ataques sofridos por ministros nas redes partiu de um computador do STF. Tampouco são investigadas pessoas com foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, cuja jurisdição adequada é o Supremo. Outro dado inédito é que não há, conforme o que já foi possível descobrir sobre o inquérito, um fato determinado ou pessoas a serem investigadas. Ocupando menos de uma página, a justificativa para a investigação é genérica. Trata-se, portanto, de um repositório sem fundo onde podem ser acomodados todos os responsáveis por tudo o que o Dias Toffoli e Moraes entenderem como ameaça ou agressão. Além da ordem de censura a Crusoé, o publisher da revista, Mario Sabino, foi intimado a comparecer à Polícia Federal, em São Paulo — sem saber exatamente em qual condição prestaria depoimento. E saiu de lá sem saber, porque o delegado também afirmou não conhecer o conteúdo do inquérito. “O que é definitivamente inaceitável, e um dos muitos problemas do inquérito, é que desde o ponto do origem ele tem um objeto amplo e completamente indeterminado. E, além disso, ele investiga coisas que não deveriam ser investigadas porque não são crimes. A pessoa criticar uma instituição não é crime”, diz o advogado Michael Mohallem, professor de direito constitucional.

A escolha de Moraes como relator do inquérito é outro ponto fora da curva. Indicado para o STF pelo ex-presidente Michel Temer, Moraes deu partida na investigação seguindo à risca os procedimentos de Toffoli, que o escalou a dedo. O ministro escolheu por conta própria os dois delegados que vêm tocando o inquérito desde então — um da Polícia Federal, que conheceu nos tempos em que era secretário do governo de São Paulo, e outro da Polícia Civil paulista. O normal, vale dizer, seria enviar o inquérito para a PF fazer a distribuição de acordo com seus critérios internos e, então, cumprir as diligências necessárias. Moraes foi promotor estadual, advogou e ocupou cargos políticos no estado. Foi, por exemplo, secretário de Segurança Pública no governo de Geraldo Alckmin entre janeiro de 2015 e maio de 2016. Na sua gestão, ao menos dois inquéritos ruidosos foram conduzidos pela polícia paulista. O primeiro deles deu origem à operação Alba Branca, que apurou desvios na compra de merenda escolar e teve como um dos principais alvos o deputado estadual Fernando Capez, adversário de Moraes dentro do PSDB. Inocentado na Justiça, nos bastidores, Capez credita ao hoje ministro do Supremo os vazamentos de informação que ocorreram ao longo da investigação – e que acabaram por anular sua possível candidatura ao governo de São Paulo.

Outra investigação do período em que Moraes chefiou a área de segurança pública de São Paulo foi a que envolveu o roubo de dados do celular de Marcela Temer. Em abril de 2016, o aparelho da ex-primeira-dama foi invadido por um hacker. De posse dos arquivos que acessou, segundo a versão divulgada à época, o hacker teria ameaçado Marcela com a divulgação de fotos íntimas se ela não lhe desse dinheiro. O caso estourou em um período sensível. Naqueles dias, estava em tramitação o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT) e Temer se preparava para assumir o cargo. O secretário Moraes criou uma força-tarefa para investigar o assunto com delegados que, assim como agora, também foram escolhidos a dedo. Em pouco tempo, o hacker foi preso. Meses depois, em agosto, Michel Temer assumiu o Planalto e nomeou Moraes ministro da Justiça. Já em 2017, em janeiro, com a morte do ministro Teori Zavascki em um acidente de avião, o presidente o escolheu para a vaga aberta no STF. Entre a morte de Teori e a posse de Moraes, descobriu-se que uma parte da investigação havia sido mantida em sigilo absoluto pela polícia comandada por Moraes. Os documentos mostravam que a ameaça, na verdade, citava a divulgação de um áudio enviado por Marcela ao irmão, Karlo Tedeschi, em que ela supostamente abordava temas relacionados à atuação política de Temer. “Achei que esse vídeo (que na verdade é um áudio) joga o nome de vosso marido na lama. Quando você disse que ele tem um marqueteiro que faz a parte baixo nível, pensei em ganhar algum”, escreveu o hacker a Marcela. O áudio não foi juntado ao processo e nunca foi encontrado por nenhum jornalista ou advogado.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBarroso: “Autoridade depende de confiança e credibilidade. Se você perde isso, a força é a única coisa que resta”
Toffoli assumiu a presidência do Supremo em setembro de 2018. Cerca de dois meses antes da posse, Crusoé revelou que ele recebia mensalmente, em sua conta no banco Mercantil, uma mesada de 100 mil reais de sua mulher, Roberta Rangel, dona de um escritório de advocacia em Brasília. O ministro inaugurou sua gestão com a promessa de pacificar a relação entre os Três Poderes, mas um mês depois viu a corte ser citada, de maneira não muito confortável, em uma palestra de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República. O deputado disse que, para fechar o STF, bastariam “um soldado e um cabo” e que não haveria nenhuma manifestação popular caso um ministro fosse detido. A declaração ganhou as redes e mobilizou seguidores de Bolsonaro, que seguiram na toada de críticas ao Supremo e alguns de seus ministros. Após um curto período de trégua, neste ano a tensão recomeçou com a proposta de criação da CPI da Lava Toga, no Senado. O vazamento de relatórios da Receita Federal com as movimentações financeiras do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher fez aumentar a desconfiança de que o Supremo estava sob ataque. O próprio Gilmar chegou a atribuir a apuração dos auditores a um movimento orquestrado pela Lava Jato. Logo se descobriu que a mulher de Toffoli também havia sido alvo do levantamento da Receita. Não demorou para que Gilmar conseguisse a adesão de Toffoli a sua ofensiva – e a sua teoria de que haveria uma maquinação contra integrantes do Supremo. Já em abril, o tribunal chegou a organizar uma sessão solene para que a Ordem dos Advogados do Brasil apresentasse um manifesto em defesa do tribunal. Foi em meio a esse caldo de desconfianças e suspeitas de conspiração que surgiu o inquérito.

“A abertura do inquérito pelo ministro Dias Toffoli, um inquérito ilegal, é um ato de intimidação contra quem está fazendo investigação, denúncias ou mesmo críticas em veículos de mídia. Cada vez mais você tem a percepção por parte dos parlamentares de que é urgente levar transparência e controle para a cortes superiores. Ninguém pode estar acima da lei”, disse a Crusoé o senador Alessandro Vieira, do Cidadania (antigo PPS) de Sergipe, autor do pedido para instalar a CPI da Lava Toga. “O ideal é que (a discussão sobre o inquérito) volte para acabar com essa celeuma. Isso só gera insegurança jurídica. O ideal seria realmente o colegiado se pronunciar a respeito”, defendeu o ministro Marco Aurélio na quarta-feira, 24. Perguntado se acredita haver risco de novos atos como a censura a Crusoé serem determinados no inquérito, Marco Aurélio respondeu: “Nestes tempos estranhos, tudo é possível. Que cada qual cumpra seu dever. Cada qual mantenha a crença no direito e o alor (entusiasmo) pela Constituição Federal”. No dia seguinte, em palestra na Universidade de Columbia, em Nova York, o ministro Luís Roberto Barroso foi enfático ao tentar explicar, curiosamente com uma indagação, a crise protagonizada pelo Supremo. “A pergunta que me faço frequentemente é por que o STF está sob ataque, por que está sofrendo esse momento de descrédito. Bem, o que acho que está acontecendo é que há uma percepção em grande parte da sociedade e da imprensa brasileira de que o STF é um obstáculo na luta contra a corrupção no Brasil. Eles sentem que o Supremo frequentemente protege a elite corrupta”, afirmou. “Uma corte que repetidas vezes toma decisões com as quais a sociedade não concorda e não entende, aí se tem um problema. Porque autoridade depende de confiança e credibilidade. Se você perde isso, a força é a única coisa que resta”, emendou, em uma de suas manifestações mais eloquentes desde que chegou à corte. O ministro disse ainda que alguns de seus colegas “mostram mais raiva de procuradores e juízes que estão fazendo um bom trabalho do que de criminosos que saquearam o país”.

Marco Aurélio e Barroso não são os únicos que aguardam a oportunidade de debater o assunto em plenário. Outros integrantes da corte têm evitado falar em público, mas nos bastidores tecem pesadas críticas à maneira como a investigação foi aberta e vem sendo conduzida. Nesta quinta-feira, em um café da manhã com jornalistas no Planalto, o presidente Jair Bolsonaro criticou o inquérito e classificou como equivocada e injusta a censura a Crusoé. Disse ele: “A liberdade de imprensa é a mesma coisa do artigo 56 da Constituição. Os deputados e senadores são invioláveis por palavras e opiniões. E o que é quaisquer? Quaisquer. Eu já fui processado muitas vezes pelo Supremo. Sou réu em alguns processos lá dentro, tenho perdido em primeira instância ações nesse sentido por falar, e acho injusto. E acho injusto não é porque é comigo, é com qualquer um, até mesmo com a revista Crusoé, que em 90% das vezes dá tiro de .50 (um tipo de metralhadora) em cima de mim, mas pode continuar dando, não tem problema, não. Não vou entrar com ação contra a Crusoé nem contra outros órgãos de imprensa. Eu vou é criticar, e vou continuar criticando, é um direito meu, como é direito de vocês também agir dessa mesma maneira”.

O inquérito, por ora, prossegue. Em segredo absoluto. O pouco que se sabe sobre ele é o que está demonstrado neste texto: seu objetivo é intimidar quem ousa criticar o tribunal – ou, melhor, alguns de seus integrantes. Se crimes têm sido praticados por gente que ameaça a integridade de ministros, é preciso investigá-los, evidentemente, mas isso precisa ser feito dentro das normas, sem abusos ou arbitrariedades. É o que se espera da Suprema Corte. E que, ao final, prevaleça a Constituição.

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