Ricardo Moraes/Reuters

Jogo para voltar à cena

A decisão do STJ de reduzir a pena do ex-presidente pode trazê-lo novamente ao tabuleiro político, mas também fortalece seus adversários. Jair Bolsonaro, por exemplo, poderá voltar a alvejar o inimigo que o catapultou ao Planalto
26.04.19

Autor da célebre análise O Ópio dos Intelectuais, o sociólogo e filósofo Raymond Aron disse certa vez que a esquerda adora celebrar suas derrotas. A reação ao resultado do julgamento do recurso da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na ação do tríplex do Guarujá mostrou que, no PT, também é proibido comemorar algumas vitórias. A redução da pena imposta a Lula na terça-feira, 23, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, surpreendeu. Mas tanto o advogado do ex-presidente, Cristiano Zanin Martins, quanto o partido insistem que não basta a diminuição da pena: querem Lula inocentado e livre. Um jogo de cena, e de preparação de outro cenário, que o partido está ansioso para montar a partir do segundo semestre deste ano: a volta de Lula ao centro do palco político.

A mudança na sentença de Lula foi uma surpresa tripla. A primeira foi o momento. Um dia antes de Zanin chegar ao Edifício dos Plenários do STJ para assistir ao julgamento carregando uma pasta preta de couro na mão direita e, na esquerda, um calhamaço de documentos, um caderno e um tablet, não havia sinal de que o agravo regimental em favor do petista iria entrar em pauta. Só na noite de segunda-feira a inclusão foi confirmada. A segunda surpresa foi o recuo do relator, Felix Fischer, inicialmente favorável a manter a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que aumentou a pena imposta ao ex-presidente na sua condenação pelo então juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça. Fischer manteve a condenação, mas suavizou a sentença. Foi seguido pelos outros três desembargadores da turma. A unanimidade dos desembargadores, terceira surpresa do dia, não é de se desprezar. Especialmente por se tratar de um colegiado que ganhou o apelido de “câmara de gás” pelo rigor com que analisa os pedidos de revisão de condenações.

O ex-presidente viu sua pena ser reduzida de 12 anos e um mês para oito anos, dez meses e 20 dias. Além disso, a cifra de 31 milhões de reais a ser paga por ele, entre multa e reparação de danos, foi diminuída para menos de um décimo do valor. Ficou em 2,6 milhões de reais. Preso há pouco mais de um ano na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, Lula agora tem condições de pedir para deixar a cadeia no segundo semestre deste ano, quando tiver cumprido um sexto da nova pena. Nada que, ao menos sob os holofotes, tenha animado muito os petistas. Ao fim da sessão, Zanin disse que o resultado “é pouco, mas é o início”. No mesmo dia, o comitê Lula Livre, montado para organizar a grita em favor do preso, não hesitou em divulgar uma nota de repúdio ao resultado. “A única deliberação cabível era a anulação do julgamento que condenou injustamente o ex-presidente da República”, sustentou o documento.

Está nas entrelinhas da nota de repúdio a chave da sua interpretação. Para o partido, o benefício unânime a Lula não mostrou nada além que “de maneira combinada, fazendo vistas grossas aos fatos e às provas”, os desembargadores da Quinta Turma “decidiram se manter no terreno da perseguição política”. Se mudança houve, diz o PT, foi porque “com o desgaste da Operação Lava Jato, e a crescente solidariedade ao ex-presidente, a Quinta Turma viu-se obrigada a atenuar tanto o tempo de prisão quanto as multas decididas por Moro e o TRF-4, escandalosamente abusivas”. Em suma, na narrativa da agremiação sobre a condenação a Lula, “recuaram um passo para tentar salvar o que sobra das aparências”.

STJ/DivulgaçãoSTJ/DivulgaçãoFélix Fischer, o relator do recurso de Lula no STJ: a pena de Lula voltou ao patamar da sentença de Sergio Moro
O que se extrai das considerações raivosas é que o afrouxamento do cárcere do maior ídolo do PT é combustível para aumentar a intensidade do discurso de perseguido político para Lula. Se obtiver uma progressão do regime, o ex-presidente e seus seguidores vão sustentar a tese de que foi resultado da pressão popular, e não porque seria a revisão do caso de um réu na terceira instância da Justiça, como permite a lei. Assim como ele teria ido para a cadeia por lutar pelos menos favorecidos — e não porque, em três etapas diferentes, oito magistrados acolheram a acusação de que a empreiteira OAS reformou um apartamento de três pavimentos para o ex-presidente como compensação por vantagens que obteve em negócios com o estado.

No semiaberto, Lula ainda teria de obedecer a restrições, até porque o regime impõe o controle de saídas e atividades do preso — ele não poderia participar de manifestações políticas e atos públicos, por exemplo. Mas o slogan “Lula livre” ganharia novos sentidos com a mudança, por deixar a estrela petista um pouco mais perto da porta de saída da cadeia e da entrada de volta à arena política, ainda que a sentença que lhe foi imposta só permita que ele volte a disputar eleições no longínquo 2035, quando terá 89 anos.

Antes mesmo de essa possibilidade surgir, uma nova interpretação da palavra de ordem havia sido defendida por Edinho Silva, prefeito de Araraquara e ex-secretário de Comunicação do governo Dilma Roussef, de quem também foi tesoureiro de campanha. “É urgente transformarmos o ‘Lula Livre’ em um movimento político muito além do PT e da esquerda, que seja um movimento de defesa da democracia”, conclamou o petista, em longo texto que começou a circular internamente no partido.

No manifesto, o ex-tesoureiro de Dilma reconhece que “só o desgaste de Bolsonaro não será o suficiente” para o PT voltar a encantar eleitores e se mostra preocupado em evitar que o partido se transforme em um “gueto”. A solução proposta é que o partido passe a capitanear “um movimento amplo de oposição ao governo Bolsonaro”. Haverá no partido quem irá torcer o nariz para trechos da longa carta de Edinho, como quando ele pede melhor organização interna, ou reconhece que não será apenas o desejado fracasso do governo Bolsonaro que fará a legenda reconquistar por inércia a maioria de votos que perdeu na última eleição presidencial. Em um ponto, contudo, a discordância é mais improvável: a polarização política com o atual presidente.

Mateus Bonomi/Agif/FolhapressMateus Bonomi/Agif/FolhapressManifestação em defesa do ex-presidente em Brasília: o PT não admite que gostou da decisão
A polarização interessa ao PT, mas também não é desvantajosa para Jair Bolsonaro. O presidente mostrou, em pouco mais de 100 dias de governo, a tendência a fazer turbulência pelo que não importa para deixar trepidando o que importa. Assim, a militância virtual dos bolsonaristas, inclusive a de seu filho Carlos, e os xingamentos do escritor e guru Olavo de Carvalho só servem para deixar mais turva a direção do governo e prejudicam até a articulação política para a aprovação da reforma da Previdência e das leis contra o crime e a corrupção, temas prioritários que andam com dificuldade no Congresso.

A possibilidade de o PT estar aos portões ajudaria a formar uma ordem unida, ao gosto do presidente de origens militares, eliminando as dissensões internas. E deixaria em segundo plano outros atores políticos, como o ex-candidato a presidente Ciro Gomes e o governador de São Paulo, João Doria, que se cacifa para ser o nome do PSDB na próxima disputa presidencial. Bolsonaro mesmo já disse mais de uma vez que, se ele falhar, “o PT volta”.

O risco à execução desse cálculo, no entanto, vem do mesmo campo que tem abalado outras estratégias políticas desde pelo menos 2014: a Lava Jato. No dia seguinte à redução da pena de Lula no STJ, o atual juiz responsável pelos casos da operação em Curitiba, Luiz Antônio Bonat, deu prazo de oito dias para que defesa e acusação apresentem seus argumentos finais nos recursos contra a condenação em primeira instância de Lula em outro processo, o do sítio de Atibaia, no interior de São Paulo. Passado o prazo, a ação irá para o mesmo Tribunal Regional Federal da 4ª Região que foi mais rígido com o ex-presidente do que Sergio Moro no processo do tríplex do Guarujá.

Com uma nova condenação em segunda instância, o petista não poderia nem pedir o regime semiaberto. A fábula da pressão popular que fez o sistema dar um pouco mais de liberdade ao ex-presidente cairia por terra. Assim, “Lula livre” deixaria de ser um brado de que ele estaria se preparando para voltar à arena política, para continuar a ser o slogan repetido pela vigília montada nos arredores da Superintendência da PF em Curitiba. E, se entoado em debates políticos onde não houvesse apenas militantes do PT, sempre haverá o risco de se ouvir a resposta do senador Cid Gomes quando foi vaiado ao pedir mais reflexão aos petistas, no segundo turno da campanha do ano passado: “Lula está preso, babaca”. Se o STF não derrubar a prisão de condenados em segunda instância, claro.

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