MarioSabino

A cegueira carioca

11.04.19

O humorista Bussunda disse que São Paulo foi o lugar mais estranho em que ele fez amor. O lugar mais estranho em que namorei foi o Rio de Janeiro. Minha namorada morava no Leblon e todos os cariocas que conheci achavam o bairro o suprassumo do charme e da civilização. Não que o Leblon não tenha os seus encantos – até o paulistano Itaim Bibi tem –, mas eu olhava ao redor e constatava que estava tudo caído, para dizer o mínimo. Não fosse pela moldura natural, seria um bairro feio como tantos outros que compõem as cidades brasileiras. Não quero ser injusto com o Leblon, curiosamente o metro quadrado mais caro do país. É assim também com Ipanema e Copacabana. Na verdade, Copacabana é ainda pior, embora a sua orla seja a mais bonita do Rio. Trata-se de um desastre urbanístico sob todos os aspectos.  Para ficar na Zona Sul, há ainda a Lagoa Rodrigo de Freitas. A paisagem é deslumbrante, mas o olfato às vezes se sobrepõe à visão. De São Conrado, vou falar adiante.

Não sou bairrista. Como paulistano, reconheço que a minha cidade é uma das metrópoles mais incivilizadas e feias do mundo. Mas pelo menos não colocamos guarda-sóis na beira do rio Tietê. Os cariocas, no entanto, continuam a achar que o Rio de Janeiro é o Sul da França. Lembro que a filha da minha então namorada chamava um trecho da praia do Leblon de Saint-Tropez. Eu tinha medo de pegar micose na Saint-Tropez carioca. Durante uma competição, uma atleta gringa de bodyboarding pegou hepatite ao engolir a água do mar nas proximidades da Saint-Tropez carioca.  Em Ipanema, coisa mais linda e mais cheia de graça ali encostada, a dona de uma barraca que vendia queijo coalho fazia xixi numa garrafa de refrigerante e voltava a servir o queijo sem lavar as mãos. O Diogo Mainardi, que morava no Rio nessa época, deparou com dois cadáveres na avenida Vieira Souto. Presuntos desovados.

Na minha fase carioca, eu fazia o que boa parte dos moradores da Zona Sul fazem – caminhava pela orla no calçadão desnivelado, mas sem relógio e carteira, para não ser assaltado. E via, para além de imundície, a desorganização mais completa na praia. Aquilo era uma feira a céu aberto, sem nenhuma fiscalização. Indignado com o estado dos postos de salva-vidas, dei uma carteirada como redator-chefe da Veja: telefonei para o governador (ele, Sérgio Cabral) e disse que era preciso pelo menos pintar as grades dos postos. Funcionou. Duas semanas depois, tudo foi pintado.

Tentei fazer com que a sucursal da revista fizesse reportagens sobre a degradação da orla carioca, um patrimônio brasileiro, mas a resistência foi brava. Consegui que a Veja Rio publicasse uma matéria sobre São Conrado, cujo mar estava tomado por esgoto in natura. Ao ler a reportagem, deparei com o comentário de um especialista que dizia que coliforme fecal de rico era menos problemático do que coliforme fecal de pobre. Resta um mistério saber como ele fez para diferenciar os coliformes fecais provenientes da favela da Rocinha daqueles despejados pelos prédios de luxo. Apesar da diferenciação social dos coliformes, a reportagem causou protestos. Os moradores do bairro disseram que ela desvalorizava o seu pedaço. A Veja Rio fez outra reportagem para mostrar o quão deslumbrante era São Conrado, com a sua praia poluída, os seus viadutos pavorosos e uma favela cheia de bandidos despencando sobre o bairro.

A frase que eu mais ouvia dos jornalistas cariocas era “A gente não pode fazer reportagens contra o Rio”. Eu tentava argumentar que não se tratava de fazer reportagens contra o Rio, mas a favor do Rio. Mostrar insistentemente as mazelas era uma obrigação em relação à cidade – que se estendia, aliás, para muito além da Zona Sul. A Tijuca que eu frequentava nas férias infantis, por exemplo, estava desmoronando. Fracassei miseravelmente. Assim como a maioria dos cariocas que conheci, todos continuavam fingindo que o Rio de Janeiro era tão maravilhoso que continuava imune a décadas de desleixo, populismo e roubalheira. Favela não era problema, mas solução; o tráfico era uma questão social; a praia não era uma bagunça, e sim um espaço democrático; botecos sujos eram patrimônio cultural. Anos mais tarde, os Jogos Olímpicos do Cocô foram aplaudidos pelos cariocas como os melhores já realizados na história do esporte.

Em “O Poder da Ideias”, publicado em 1963, pouco depois de a capital federal ser transferida do Rio para Brasília, Carlos Lacerda escreveu o seguinte sobre os seus concidadãos: “Somos um povo impetuoso e generoso, capaz de disciplina e de indocilidade. Somos um povo carnavalesco, mas um povo sofrido: um povo de sambas e de reações profundas. Somos um povo com senso de humor e com repentes de ira sagrada. Somos um povo que não gosta de se curvar, mas que se volta para ver a beleza – que nasce aos nossos olhos todas as manhãs. Aqui até os mais pobres moram de rosto voltado para a maravilha da natureza que a incúria dos governos ainda não conseguiu desfigurar. As favelas têm por fundo a Serra dos Órgãos. Pensavam que nos abandonando interiorizavam a civilização, mas foi aqui que a deixaram”. Coitado do Lacerda.

Acho que os cariocas são principalmente um povo cego para a sua própria cidade. Cegueira de amor, mas cegueira. Eles não podem enxergar a realidade apenas quando cai uma chuva forte que inunda cartões postais. Se os cariocas mantivessem os olhos sempre abertos, seria ótimo para o país inteiro. Coração do meu Brasil.

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