MarioSabino

Para ler o recado dos militares sobre 64

29.03.19

Em 31 de março de 1964, eu estava a uma semana de completar 2 anos de idade e devia estar tentando furar os olhos do meu irmão recém-nascido; em 1968, ano em que os generais linha-dura derrotaram os generais moderados, eu tinha 6 anos de idade – a professora da primeira série mandou que todos ficássemos debaixo da carteira, enquanto o pau comia na rua entre estudantes e soldados. As mães foram buscar os filhos mais cedo na escola e, enquanto voltávamos para casa, vi caminhões do Exército carregados de moços presos, numa rua com lojas fechadas e pedras, muitas pedras no meio-fio, os restos do conflito que se travara havia pouco. Dias antes do Natal, a família se reuniu e as crianças ouviram que deveríamos tomar cuidado para “não falar mal do governo na frente de estranhos, porque o vovô poderia ser preso”. O regime militar havia baixado o AI-5. Meu avô italiano, socialista, havia sido perseguido por Getúlio Vargas, em conluio com os fascistas, e agora receava ter de enfrentar tudo de novo. Não enfrentou. Morreu menos de dois anos depois, de enfisema pulmonar.

As minhas memórias dos acontecimentos políticos de 1964 e 1968 não se comparam com as dos filhos das vítimas de ambos os lados, mas certamente são semelhantes em insignificância às das dezenas de milhões de cidadãos que hoje têm mais de 55 anos. A maioria dos brasileiros nem era nascida nessa época. Mas 1964 voltou a ser assunto politico, quando deveria ser apenas histórico, por causa da insistência de Jair Bolsonaro.

Meses atrás, eu disse aqui na Crusoé que discutir 1964 a esta altura é como se, em 1964, o tema dos debates fosse a presidência de Hermes da Fonseca, que governou o país de 1910 a 1914. Outra ideia fora de lugar. Mas Jair Bolsonaro ordenou que as Forças Armadas comemorassem – ou rememorassem, vá lá — a data, obnubilado pela tal guerra cultural que os seus ideólogos teimam em trazer para o palco, como se dela dependesse a permanência da direita no poder conquistado nas urnas. Não depende. A direita só continuará no poder se for capaz de tirar o Brasil do buraco, por meio da reforma da Previdência, e proporcionar emprego, educação, saúde, segurança e transporte dignos desses nomes à massa dos eleitores. O resto é conversa mole.

Os militares não queriam saber de falar de 1964, mas se viram obrigados a obedecer à determinação do presidente da República. Bolsonaro é o chefe supremo das Forças Armadas. Se ele manda, está mandado. Os militares queriam deixar isso para lá, porque tudo o que eles não desejam, agora que estão presentes no primeiro escalão da República, é ver ressuscitadas as acusações de que exilaram, prenderam, mataram e torturaram um monte de gente – que, por sua vez, também sequestrou, roubou e matou um monte de gente antípoda. Mas não teve jeito: a imprensa voltou a bater em 1964, porque Bolsonaro encasquetou de reverter a decisão de Dilma de proibir manifestações de militares a respeito da data.

A Ordem do Dia sobre 1964 que o Ministério da Defesa divulgou, a ser lida nos quartéis de Exército, Marinha e Aeronáutica, foi escrita a muitas mãos. Aposto que o General Eduardo Villas Bôas revisou a versão final. Os jornais já disseram, claro, que as Forças Armadas não fizeram autocrítica, mas ninguém ouviu também José Dirceu e Dilma Rousseff declarando-se culpados pelos crimes que cometeram em organizações esquerdistas que queriam implantar outra ditadura no Brasil, a pretexto de lutar pela democracia. Todo mundo acha que fez certo – e será assim até o final dos tempos. A História não é feita de inteiras verdades, porque lhes falta abundância. A História é um edifício alicerçado ao mesmo tempo nas versões de vitoriosos e derrotados. Sob a cúpula dourada que domina a Esplanada dos Inválidos, em Paris, jaz a tumba majestosa de um homem que, em Londres, teria sido enforcado e enterrado numa cova destinada a criminosos da pior estirpe. O próprio Napoleão Bonaparte, com toda a sua vaidade, tinha a dimensão de que “há somente um degrau entre o sublime e o ridículo”. Ele disse a frase ao embaixador polonês depois do fracasso da invasão da  Rússia, em 1812. Não raro, sublime e ridículo, verdade e mentira, terror e terror convivem no mesmo plano, sem degrau que os separe.

Na minha opinião, a Ordem do Dia deste 31 de março é um primor de diplomacia. Obviamente, as Forças Armadas não abrem mão da sua versão, dando uma ajustadinha nos fatos iniciais, mas é altamente significativo que os militares evitem falar em “Revolução de 1964”.

Vou interpretar o texto:

As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15.

A ajustadinha foi que a vacância em 2 de abril foi motivada pelo movimento dos quartéis no dia 31. João Goulart não saiu porque quis, mas porque foi apeado pelas Forças Armadas — e a Constituição de 1946 não previa general eleito indiretamente para a presidência da República. “Dar ensejo” é um eufemismo. Segue a Ordem do Dia:

Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano – a capacidade de aprender.

Desde o início da formação da nacionalidade, ainda no período colonial, passando pelos processos de independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo republicano, o País vivenciou, com maior ou menor nível de conflitos, evolução civilizatória que o trouxe até o alvorecer do Século XX.

O início do século passado representou para a sociedade brasileira o despertar para os fenômenos da industrialização, da urbanização e da modernização, que haviam produzido desequilíbrios de poder, notadamente no continente europeu.

Como resultado do impacto político, econômico e social, a humanidade se viu envolvida na Primeira Guerra Mundial e assistiu ao avanço de ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico. Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia.

A contextualização histórica é correta e, ao afirmar que o século XX assistiu ao avanço de ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico, e que comunismo e nazifascismo são faces da mesma moeda, os autores mandam um recado principalmente para as franjas bolsonaristas que continuam a sonhar com um golpe direitista. O recado é que os militares não participarão dessa aventura irresponsável. Tiveram a capacidade de aprender. O parágrafo seguinte enfatiza o combate das Forças Armadas contra os totalitarismos e, assim, reforça o recado:

Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados. Em 1935, foram desarticulados os amotinados da Intentona Comunista. Na Segunda Guerra Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária Brasileira, nos campos de batalha da Itália; e da Força Aérea Brasileira, nos céus europeus.

A Ordem do Dia fornece uma moldura para o que ocorreu em 1964, inserindo o 31 de março no âmbito da Guerra Fria e como consequência dela:

A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos brasileiros, voltaria a ser testada no pós-guerra. A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950.

O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País.

Está certo, mas houve também conflitos de natureza revolucionária na Europa Ocidental, centro nevrálgico da Guerra Fria, e nem por isso países como França, Itália e Alemanha Ocidental, sacudidos por atentados terroristas, deixaram de ser democráticos. Na sequência, o texto aborda características próprias daquele momento brasileiro:  

 As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo.

A ampla maioria da classe média realmente clamava pela intervenção militar, diante dos desatinos de João Goulart, aliado a esquerdistas desmiolados. É fato. A grande imprensa brasileira também foi bulir com os granadeiros nos bivaques. O Globo, O Estado de S.PauloFolha de S.Paulo e Jornal do Brasil (que tinha Alberto Dines como editor-chefe) eram favoráreis a que os militares assumissem o controle da situação. A “estabilização” era para ser provisória, mas se perpetuou por 21 anos.

O texto, então, dá um salto de mais de uma década, para evitar falar do endurecimento do regime a partir de 1968. O aspecto salutar é que, se omite,  não o justifica. Vamos ao trecho:

Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.

As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas.

Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.

Ao dizer que a lei de anistia de 1979 viabilizou a transição para uma democracia definitiva – definitiva, frise-se –, as Forças Armadas voltam a dar um recado, desta vez para ambos os extremos do espectro ideológico: não há mais lugar para golpes de qualquer espécie no Brasil. Os militares avançaram, porque igualmente aprenderam com a história. O verbo “aprender” é relevante nessa Ordem do Dia. E, embora reconheçam o papel dos responsáveis por 1964 (será assim até o final dos tempos, repito), eles reafirmam mais que isso o compromisso com a liberdade e democracia. O “mais que isso” não é muleta conectiva. É conteúdo fundamental.

Para ler os militares, é preciso prestar atenção aos detalhes. As Forças Armadas estão em 2019 (não é à toa que ressaltam os 55 anos do 31 de março), ao contrário de Bolsonaro e as suas franjas, que não saem de 1964.

Só para constar: não consegui furar os olhos do meu irmão recém-nascido. 

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