MarioSabino

O gosto amargo de um indiciamento

22.03.19

Em meados de fevereiro, escrevi uma coluna sobre a necessidade de se gostar de polícia, apesar da polícia, para ter uma boa polícia. E disse que policiais tentaram me intimidar como jornalista, a mando de poderosos. Leitores me perguntaram que história era essa. Eu já a contei mais de uma vez. Ela foi publicada no livro Cartas de um Antagonista.

Curiosamente, nesta semana, eu soube que o delegado da PF que me indiciou é o responsável pelas indicações dos delegados que atuam no inquérito aberto a mando de Dias Toffoli e conduzido por Alexandre de Moraes, para apurar fake news, ameaças de morte, vazamentos e denunciações caluniosas contra ministros do Supremo Tribunal Federal.

O inquérito foi anunciado por Dias Toffoli sem que a maioria dos ministros do STF fosse consultada se concordava ou não com o procedimento. E é um combo onde pode caber tudo — inclusive intimidação à imprensa, apesar das declarações de amor de Dias Toffoli pela liberdade de informação e opinião.

Quando ouvi o nome do delegado que me indiciou, senti um gosto amargo. Tudo bem que, hoje, o ministro da Justiça é Sergio Moro, não Márcio Thomaz Bastos, e o diretor-geral da PF é Maurício Valeixo, não gente ligada a Paulo Lacerda. Durante os governos petistas, a PF balcanizou-se, o que foi obviamente muito deletério para uma instituição fundamental para a segurança do país e que merece o nosso respeito. Com o advento da Lava Jato, a PF voltou a cumprir exemplarmente o seu papel e, tenho certeza, não se deixará contaminar por agendas ocultas.

De qualquer forma, talvez seja interessante que Moro e Valeixo leiam a história do meu indiciamento. Ei-la outra vez:

No dia 29 de janeiro de 2008, a Polícia Federal indiciou-me na esteira do escândalo dos aloprados. Durante dois anos, o redator-chefe da revista Veja permaneceu como o único indiciado nessa vergonha.

Em 15 de setembro de 2006, pouco antes do primeiro turno das eleições, petistas foram presos pela PF num hotel de São Paulo, com o equivalente a mais de 1,7 milhão de reais em espécie. O dinheiro era para comprar um dossiê falso contra José Serra, que concorria contra Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo. Como de hábito, Lula correu para dizer que não tinha nada a ver com aquilo, que se tratava de um bando de aloprados”.

Reuni um editor-executivo e três repórteres para fazer uma reportagem sobre o caso. A missão era obter a foto da dinheirama mantida sob sigilo pela PF — e informações exclusivas sobre a malandragem. Missão dada, missão cumprida. Eles não apenas conseguiram a foto, como descobriram que Freud Godoy, segurança de Lula, e José Carlos Espinoza, assessor do então presidente da República na campanha de reeleição, haviam visitado secretamente o aloprado Gedimar Passos na carceragem da PF.

Publicada a reportagem, a PF negou o encontro de ambos com o preso, mas abriu uma sindicância interna para apurar a história. Os repórteres foram gentilmente convidados a relatar de viva voz a sua descoberta a um delegado. Eles foram acompanhados de uma advogada da Abril.

Eu ainda estava em casa, quando recebi um telefonema do editor-executivo que comandara a reportagem. Um dos repórteres havia ligado para ele na verdade, uma repórter e, muito nervosa, dissera que o delegado intimidava os jornalistas da revista e a advogada da Abril, sob o silêncio da representante do Ministério Público. O sujeito gritava que a Veja era mentirosa, além de exigir que eles revelassem fontes e como tinham obtido a foto do dinheiro.

Telefonei para Márcio Thomaz Bastos e deixei recado para que me ligasse. Em seguida, entrei em contato com Fernando Henrique Cardoso e o senador Tasso Jereissati, que estava em São Paulo. Os dois se dispuseram a seguir para a sede paulista da PF, a fim de exigir que os repórteres e a advogada fossem liberados. Nesse meio-tempo, recebi o telefonema de Márcio Thomaz Bastos. Disse ao ministro da Justiça que ele segurasse os seus aloprados. Márcio Thomaz Bastos mandou que a PF liberasse todos imediatamente. A sua ordem foi seguida, sob comentários irônicos do delegado intimidador.

Na redação, chamei os envolvidos e cruzei as versões. Todos confirmaram a intimidação e me forneceram detalhes idênticos. O editor-executivo ligou para a representante do MP, que também relatou a situação vexatória sofrida pelos jornalistas e pela advogada. A essa altura, os jornais começaram a me procurar. No dia seguinte, noticiaram o absurdo. O Globo reproduziu o meu diálogo com Márcio Thomaz Bastos. Diante da repercussão, a representante do MP voltou atrás na sua versão e afirmou que não havia ocorrido intimidação. Os jornais colocaram a versão dos repórteres da Veja em dúvida. Fui adiante, com o aval do diretor de redação. Escrevi uma matéria para contar o episódio aos leitores da revista.

A Veja ainda publicaria mais duas reportagens sobre o delegado intimidador. Entre outras coisas, descobriu-se que a PF o havia “importado” de Sorocaba, a fim de interrogar os jornalistas.

A PF abriu outra sindicância interna. Meses depois, concluiu que não havia ocorrido intimidação. O caminho estava aberto para que o delegado intimidador me processasse por ter escrito a reportagem que relatara o absurdo cometido contra a liberdade de imprensa. Fui acusado de calúnia e difamação. Curiosamente, o delegado que conduziria o inquérito era o mesmo que havia chegado à conclusão de que os repórteres e a advogada da Abril não tinham sido constrangidos.

Ao ver que o clima estava pesado para mim eu também era alvo constante dos blogueiros sujos do PT , Roberto Civita resolveu contratar bons criminalistas. Roberto Podval e Paula Kahan Mandel me defenderiam. Vi-me intimado a depor na mesma PF que havia esquecido os aloprados, absolvidos que foram, em 2007, por “falta de provas”. O delegado havia acordado com os meus advogados que eu falaria e sairia de lá sem acusação formal.

Prestei o depoimento, deram-me a transcrição para eu ler, pedi para que corrigissem o português e assinei. Levantei-me para ir embora, mas o delegado pediu que eu assinasse outro papel. Era o meu indiciamento. Roberto Podval e Paula Kahan Mandel tomaram o papel das minhas mãos e entraram numa discussão acalorada com o delegado. Saí da sala e, apesar da porta fechada, o andar inteiro ouvia os gritos que de lá ecoavam. Fui indiciado à revelia. O delegado recebera ordens para me indiciar de qualquer jeito. A PF havia sido balcanizada pelo lulopetismo.

No início de 2010, finalmente, a ação contra mim foi trancada pela Justiça Federal de São Paulo, mediante habeas corpus impetrado pelos meus advogados. O desembargador Otavio Peixoto Junior escreveu:

Óbvio que os jornalistas não inventaram nada. Alguma coisa o delegado fez que foi sentida ou interpretada como constrangimento e intimidação. Os repórteres não iriam inventar, tirar isso do nada. A meu juízo, o que há é mera notícia de fatos no exercício da liberdade de imprensa e isso é tudo. O que pode haver de mais é o uso do inquérito como retaliação e não duvido que, fosse caso de dilação probatória, surgissem elementos de convencimento dessa hipótese.”

O delegado intimidador caiu do telhado e morreu (não é piada). Paula Kahan Mandel deixou a advocacia e se mudou para Nova York. Roberto Podval se tornaria advogado de José Dirceu (“Mas o seu foi o caso mais difícil que enfrentei”, brinca ele). A advogada da Abril morreu de câncer. Os três repórteres e o editor-executivo saíram da Veja bem antes de mim. O dinheiro dos aloprados foi para a União. Muitos anos depois, a Lava Jato descobriu que a Odebrecht fornecera a grana suja.

O editor-executivo virou assessor de Dias Toffoli.

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