Edilson Rodrigues/Agência SenadoFrancisco de Assis, o dono do celular: alegação de sigilo profissional

O celular atômico

A heterodoxa operação de bastidores para evitar que a Polícia Federal e o Ministério Público acessem as mensagens do telefone do poderoso executivo que cuidava dos interesses da JBS no Judiciário
22.03.19

Em 12 de maio de 2017, a Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação Bullish, que mirava financiamentos concedidos pelo BNDES à gigante JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Entre os alvos da ação estava um certo Francisco de Assis e Silva, então todo-poderoso diretor jurídico do grupo. No endereço que julgavam ser o de Francisco, os policiais não encontraram nada. Horas depois, coube a ele ir até a sede da Polícia Federal em São Paulo para entregar o que a Justiça havia determinado que entregasse: seu telefone celular, um iPhone 6S, e o passaporte.

Francisco de Assis cumpriu a ordem, mas se negou a fornecer as senhas do aparelho. Advogado, argumentou que ali havia informações protegidas pelo sigilo profissional. Logo em seguida, ele desatou uma intensa operação de bastidores para evitar que os investigadores tivessem acesso ao conteúdo do telefone. Os mandados da operação haviam partido da 10ª Vara Federal de Brasília. E foi justamente em Brasília que ele buscou ajuda para manter os arquivos do telefone longe do alcance dos policiais e procuradores. Conseguiu.

Quase dois anos depois da apreensão, o celular segue intocado, guardado em uma sala da Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal. O lacre de número 04000578260 não pode ser rompido por força de uma decisão obtida por Francisco dias após a operação, e até hoje vigente. No último dia 14, juntamente com a denúncia em que acusaram ex-dirigentes do BNDES e do Ministério da Fazenda e os donos da JBS de promoverem um desfalque de 1,8 bilhão no banco estatal, os procuradores pediram à Justiça para liberar o acesso ao telefone. Eles ainda têm esperança de alcançar os segredos que Francisco tenta manter intactos.

Como diretor jurídico da holding da JBS, Francisco de Assis era o responsável por gerenciar não apenas os processos, mas também o relacionamento institucional do grupo com integrantes da Justiça, em todos os níveis. Mantinha relacionamento com magistrados de diferentes instâncias, inclusive de tribunais superiores. Gozava de bom trânsito, por exemplo, com o círculo mais próximo do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Uma de suas interlocutoras diletas na capital era Dalide Corrêa, espécie de faz-tudo de Gilmar que acabou afastada do entorno do ministro justamente após a JBS cair em desgraça. Para se ter uma ideia, foi por intermédio de Francisco e Dalide que Joesley se aproximou de Gilmar. E também foi por meio dessa relação que a JBS passou a ser uma das mais generosas patrocinadoras do IDP, o instituto do ministro.

Nos aplicativos de mensagens do celular de Francisco, não faltavam diálogos com Dalide e mais um sem-número de contatos ligados ao Judiciário. E também com advogados contratados pelas empresas do grupo para atuar em processos milionários. Como já veio a público, algumas das conversas, destinadas a buscar solução para essas querelas, inclusive em tribunais superiores, ultrapassavam os limites da ortodoxia jurídica. Francisco tratava abertamente de alternativas para facilitar decisões favoráveis – como subcontratar os filhos de um ministro do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, que julgaria uma causa importante para o grupo.

ReproduçãoReproduçãoA advogada Renata Araújo: bom trânsito nos tribunais e relações suspeitas
Por essa e outras razões, Francisco envidou todos os esforços para que os investigadores não tivessem acesso a seu celular. A parte aparente dessa ofensiva se deu na forma de um recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A outra parte, a dos bastidores, aparece detalhada em um conjunto de mensagens obtidas por Crusoé – e que foram entregues ao Ministério Público e à Polícia Federal pelo ex-marido de uma advogada que ajudava Francisco a resolver processos nas cortes de Brasília. Renata Gerusa Prado de Araújo, a advogada, é filha de Maria do Carmo Cardoso, desembargadora do TRF-1. Também é dona de um escritório que, apesar de ser pouco conhecido na cidade, foi contratado pela JBS para tocar processos milionários. Renata circulava com desenvoltura não apenas no tribunal onde sua mãe trabalha, mas também nas cortes superiores.

Foi justamente para Renata, a advogada, que Francisco de Assis pediu socorro logo após impetrar o recurso no TRF para impedir que os investigadores tivessem acesso ao celular. As mensagens a que Crusoé teve acesso mostram os detalhes dessas tratativas. Era 16 de maio. Francisco começa contando que havia sido alvo da ação da polícia. “Foi trágica minha sexta-feira”, afirma. “Foram na sua casa?”, pergunta Renata. Ele, então, passa a dar detalhes: “Sim, levaram meu celular, passaporte, etc”. Em seguida, avisa que estava entrando com um mandado de segurança no tribunal: “Tô entrando com MS no TRF1 agora”.

Na sequência, Renata pergunta para qual desembargador o recurso havia sido distribuído. “Veja pra quem será distribuído, conseguiu?” Pouco depois, Francisco dá a informação que a parceria havia pedido: “Olindo”. Olindo é Olindo Menezes, um dos 27 desembargadores do TRF, sediado em Brasília. “Já vou ver isso. Precisamos conversar pessoalmente”, diz Renata, que pouco depois reforça o apelo para que pudessem se encontrar e pede mais informações sobre o tal mandado de segurança: “Qual o pedido do MS?”. Logo em seguida, ela dá uma boa notícia a Francisco: “Três amigas suas querem lhe ajudar”.

Após explicar qual era o pedido formulado no recurso, respondendo à indagação de Renata (“O MS é para dar efeito suspensivo à apelação”), Francisco envia uma extensa mensagem. Era uma espécie de roteiro com os argumentos centrais de sua defesa. A preocupação com os dados do telefone aparecia logo de cara. “Disse ao delegado que a partir daquele momento, as violações de sigilo profissional seria (sic) responsabilidade daquele agente público. E que também não entregaria a senha, porque se assim o fizesse estava violando sigilo profissional”, diz um trecho do texto. Renata lê e pergunta: “Vou repassar pra sua amiga, posso?”. Francisco diz que sim. E em seguida faz um alerta curioso: “Cuidado com o item 4”. “Se puder elimine”, emenda. Há suspeita de que o tal “item 4” seja uma menção justamente ao telefone celular de Francisco. Renata se mostra sensível à preocupação. “Ok. Vou apenas mostrar”, diz ela.

Francisco, então, diz: “Tô morrendo de medo de ser assassinado (…) Mandei minha família embora para Nova York”. “Nem diga uma bobagem dessas. Tá falando sério????”, escreve Renata, assustada. O diretor da JBS, em quatro mensagens seguidas, diz: “Seríssimo. Depois te conto tudo. Detalhes sórdidos. Calma, não se apavore, mas é verdade verdadeira”. Francisco, até onde se sabe, nunca esclareceu a que ameaças estava exposto. Em seguida, ele procura tranquilizar Renata e reforça o pedido de ajuda. “Fique tranquila. Se puder ajudar no Olindo eu fico gratíssimo”, diz. Renata responde prontamente: “Vamos fazer isso”. Francisco, mais uma vez, roga, repetindo letras para realçar sua preocupação: “Me ajude nesse efeito suspensivo e cuidado demais com o item 4 pelo amooooooorrrrrr de Deus. É ali que me preocupa. Mas não se exponha nem se prejudique por minha causa. Confiem em mim por favor. Vocês vão entender a história toda”. “Confiamos demais em você. Fique tranquilo”, finaliza Renata.

DivulgaçãoDivulgaçãoDalide Corrêa: ela mantinha contatos frequentes com Francisco
Crusoé perguntou ao desembargador Olindo Menezes, por meio da assessoria do tribunal, se ele recebeu Renata Araújo, que não era a advogada de Francisco nos autos, para tratar do mandado de segurança. Até o fechamento desta reportagem, ele não havia respondido. Com ou sem um pedido de Renata ou de outra pessoa paralelamente aos autos, o fato é que, três semanas depois da troca de mensagens em que a advogada prometia que ajudaria Francisco, saiu a decisão. O desembargador acolheu os argumentos do diretor da JBS e impediu a Polícia Federal e o Ministério Público de periciarem o telefone e, assim, terem acesso a seu conteúdo.

A parte conhecida das mensagens trocadas entre Francisco e Renata, incluindo as que constam desta reportagem, foi extraída do telefone da advogada pelo ex-marido dela, o empresário Pedro Jacobi Filho, e está em poder do Ministério Público. Ao cabo de um conturbado processo de separação, ele decidiu levar ao conhecimento das autoridades um extenso arquivo eletrônico onde dizia haver provas de que a ex-mulher participava de um esquema ilegal montado pela JBS para comprar sentenças. Uma parte desse material, a que fazia menção a ministros de tribunais superiores, ficou na Procuradoria-Geral da República. Apesar da profusão de indícios que deveriam dar origem a uma série de investigações mais aprofundadas, a procuradora-geral, Raquel Dodge, achou por bem mandar o caso ao arquivo. Em outras instâncias, uma parte do material entregue pelo ex-marido de Renata Araújo ainda é objeto de apuração. Também procurados por Crusoé, nem Francisco de Assis nem Renata Araújo quiseram se manifestar.

As mensagens não deixam claro quem são as tais “amigas” que Renata diz que a ajudariam na empreitada solicitada por Francisco. O avanço da investigação – com o possível acesso aos arquivos do celular atômico — poderá ajudar os investigadores a dirimir essa dúvida. O material entregue pelo ex-marido dela dá pistas de que os segredos de Francisco preocupavam gente importante da cúpula do Judiciário em Brasília. Tanto que, quando se descobriu que Francisco havia se tornado delator, juntamente com os irmãos Josley e Wesley Batista e mais um punhado de executivos da JBS, houve uma corrida para saber se ele havia contado histórias sobre os tribunais.

Uma reportagem publicada no ano passado pela revista Veja mostrou que, logo após a eclosão da delação, a própria Renata e a mãe dela, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso, foram procuradas por Dalide Corrêa, a ex-faz-tudo de Gilmar Mendes. Dalide queria ajuda justamente para descobrir até que ponto chegava a delação de Francisco. Acabou tranquilizada. Em seu papel de delator, Francisco falou de tudo, mas não entregou integrantes do Judiciário. E depois que as autoridades tiveram acesso às mensagens trocadas com Renata que sugeriam relações heterodoxas com ministros de tribunais superiores, ele ainda correu à Procuradoria para tirar tudo por menos e atribuir a mal-entendidos as passagens em que mencionava ministros. Tudo para não ficar a impressão de que, na delação, havia omitido informações sobre o Judiciário. Até agora, funcionou. Mas os segredos contidos no celular, se um dia forem acessados, ainda podem atrapalhar tudo.

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