RuyGoiaba

João Carlos Marinho (1935-2019)

22.03.19

Não parece, mas eu também já fui criança. Naquele tempo, gigantescos répteis vagavam sobre a Terra, a internet não era nem uma sombra no pensamento de Tim Berners-Lee e não existiam videogames para nós, moleques paulistanos do comecinho dos anos 80. O jeito era se virar com essas coisas que as crianças de hoje só veem em museus e lugares afins: futebol de botão e livros.

E boa parte dos livros que as tias do colégio nos prescreviam (“prescrição” é a palavra exata) vinha escrita naquele tom que os ingleses chamam de talk down, subestimando a inteligência das crianças. A preocupação dos autores,  certamente encarada como MISSÃO, era claríssima: tentar fazer dos monstrinhos que nós éramos aos 11 anos pequenos cidadãos conscientes — e chatos.

É claro que, na época, eu não sabia formular meu desconforto nesses termos; ainda assim, essas lições de moral me incomodavam. Também já tinha tido contato com a fantástica obra de Monteiro Lobato – mas era uma linguagem antiga, que me parecia usada por uma pessoa antiga (ainda que cheia de imaginação), certamente contemporânea dos meus avós. Até que uma vizinha, que também era amiga da família, me deu “O Gênio do Crime” de presente.

Não exagero ao dizer que o livro mais famoso de João Carlos Marinho, que morreu neste domingo (17) em São Paulo, foi uma revelação para mim. Era uma espécie de policial para crianças – um grupo de garotos tenta descobrir quem está por trás de uma fábrica clandestina de figurinhas de futebol –, escrito em linguagem contemporânea, cheio de humor sarcástico, personagens inesquecíveis (Bolachão, Berenice, o “detetive invicto” John Smith Peter Tony) e gloriosamente livre de qualquer intenção catequizadora.

Sobretudo, Marinho foi o primeiro a me ensinar – antes que eu conhecesse os modernistas e outros autores — que a literatura era um lugar onde regras do “português correto” podiam (às vezes deviam) ser quebradas em nome da criatividade. Ele suprimia pontuação para dar ideia de movimento (por exemplo, em “bicho-roda-preta-perna-gorda” para descrever Bolachão com seu guarda-chuva, espetando as pessoas) e criava verbos (“cascar” no sentido de “dar um cascudo”: “Esse mundo é curioso, a mesma turma que se zangara porque o gordo cascava pouco revoltou-se agora porque ele cascou demais”).

Só bem mais tarde vim a descobrir as fontes clássicas de Marinho – as longas enumerações que me faziam rir em “O Gênio do Crime” (“luta como essa nunca teve e nunca terá: era soco, cabeçada, mordida, dentada, rasteira, cotovelada, joelhada, karatê, judoca, rabo-de-arraia, beliscão, barrigada, chave de perna, gravata, furaolho, pé-de-ouvido, upercute, sanduíche, unhada, pescoção, cama-de-gato, coice-de-mula, capoeira-do-pastinha, trança-pé, paulistinha e daí pra mais”), para citar outro exemplo, vinham diretamente do renascentista François Rabelais. É uma pancadaria tão bem descrita que até hoje deve horrorizar aquelas pessoas que acham que “videogames geram violência”.

Arrisco dizer que o livro, de 1969, hoje não sairia de modo algum do jeito que é – os trechos em que Bolachão é chamado de gordo (o tempo todo) ou descrito como “perfeitamente meningético” quando, para fazer uma investigação, ele se disfarça de deficiente mental (no livro, “mongoloide”) bastariam para que a grita nas redes sociais fosse considerável. Não é um elogio às sensibilidades de hoje.

Mesmo assim, Marinho continou sendo um homem do seu tempo: adaptado às redes sociais, muito ativo nelas e sempre feliz em conversar com leitores novos e antigos. Chegou a me convidar para que fosse a uma Bienal do Livro levando meu exemplar velhinho de “O Gênio do Crime”, para que ele o autografasse. Não consegui — e, infelizmente, deixei de conhecê-lo ao vivo. Deixo este texto aqui como agradecimento do ex-menino de 11 anos ao mestre que ele foi.

***

A GOIABICE DA SEMANA

“Temer livre! Mandela e Gandhi também foram presos! Temer é preso político! Foi golpe! Não se pode aprisionar uma ideia! Ninguém vai aprisionar os nossos sonhos! Temer guerreiro do povo brasileiro!”

É claro que a prisão de Michel Temer não foi tratada nesses termos por absolutamente ninguém, nem pela Associação de Amigos e Moradores do Satanismo. Mas reforça, pelo contraste, o ridículo que é os petistas dizerem todas essas coisas de Lula – talvez a grande goiabice do último ano.

Gostar de político é o pior tipo de Síndrome de Estocolmo; talvez a grande virtude de Temer seja o fato de ninguém gostar dele.

Periga acharem que é protesto para tirar Temer da cadeia (Junior Lago/Folhapress)

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