Tereza Cristina com Bolsonaro no dia da posse: alinhamento inédito de interesses

Os ruralistas no poder

O agronegócio nunca esteve tão forte em Brasília quanto agora. O que isso significa e o que o setor quer do governo
08.03.19

O governo Jair Bolsonaro é dividido entre diversos núcleos de poder. O militar, liderado por Augusto Heleno e Hamilton Mourão. O político, por Onyx Lorenzoni. O econômico, por Paulo Guedes. O lavajatista, por Sergio Moro. O familiar, pelos filhos do presidente. Todos homens, todos egressos do Sul e do Sudeste do país. Mas há um sexto núcleo, liderado por uma mulher, que começa, sem o alarde dos demais, a emergir e dar as cartas na Esplanada dos Ministérios. Trata-se do ruralista, conduzido pela ministra da Agricultura, a deputada licenciada Tereza Cristina, do DEM de Mato Grosso do Sul.

Enquanto todos os outros grupos se defrontam com as dificuldades do poder neste início de governo, ela e os ruralistas têm ganhado todas. A maior parte das vitórias se deu em quedas de braço com a equipe econômica de Paulo Guedes. Eles conseguiram, por exemplo, o aumento do imposto de importação sobre o leite em pó após o fim da tarifa antidumping que protegia o mercado nacional. Também negociaram uma solução intermediária para o que seria o fim de um subsídio que os produtores rurais tinham na conta de energia elétrica. Na reforma da Previdência, já obtiveram a sinalização de que as regras para a aposentadoria rural não serão mexidas da forma como o governo gostaria. O debate sobre a utilização de terras indígenas para a agropecuária e mineração, bem como sobre a possibilidade de estrangeiros adquirirem propriedades rurais no Brasil, também caminha internamente com celeridade.

Essa coleção de resultados, porém, é apenas um aperitivo do que vem por aí. Com o ambiente favorável, os ruralistas se preparam para o grande embate que pretendem travar com Paulo Guedes: o aumento de recursos para financiar a safra deste ano e do próximo. No ano passado, foram destinados 221 bilhões de reais ao chamado Plano Safra. O objetivo para este ano é ultrapassar os 300 bilhões de reais. Mas como há limitações legais, em decorrência da aprovação da emenda constitucional que impõe um teto para os gastos públicos, a ideia é ampliar o volume de recursos disponíveis para viabilizar apólices de seguros para os produtores. A meta é conseguir que o governo disponibilize 1 bilhão de reais para seguros rurais (em 2018 foram 500 milhões de reais). Com mais seguro, os agricultores teriam condições de obter taxas menores de juros no mercado para financiar a safra. O Palácio do Planalto já deu aval para que a negociação prossiga.

Outro objetivo é tirar do papel medidas para dar mais “segurança jurídica” à atividade rural. É, na verdade, uma figura de linguagem que, na prática, define a revisão de marcos legais que, da forma como existem hoje, deixam brecha para decisões judiciais contrárias aos interesses dos produtores. Nesse pacote da “segurança jurídica” estão o Estatuto da Terra (de 1964), a Lei do Crédito Rural (1965), a Lei de Defesa Agropecuária (1995), o Estatuto do Índio (1996) e a legislação sobre unidades de conservação (2000). Todos contêm dispositivos que, de alguma forma, conflitam com os interesses do agronegócio. E a ideia é aproveitar o momento de protagonismo do setor no governo para readequar os textos.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisApoio na plantação: a aliança de Bolsonaro com os ruralistas começou a ser construída na pré-campanha
Ao mesmo tempo em que enxergam o atual momento como amplamente favorável para seus interesses, uma questão se impõe: como tratorar a Esplanada sem que isso acabe reforçando os estigmas dos quais o setor tenta há tempos se livrar? Historicamente, os ruralistas brasileiros convivem com suas contradições. Ao mesmo tempo em que são apontados como responsáveis por grande parte das mazelas do país, como o desmatamento e o sempre condenável trabalho escravo, são eles que asseguram os melhores resultados para o PIB nacional. Também contribuem com geração de emprego e renda e com o desenvolvimento de novas tecnologias.

O poder do agronegócio no governo Bolsonaro, e, consequentemente, o de Tereza Cristina, é explicado por uma conjunção inédita de fatores. O principal deles é que, pela primeira vez, há um presidente completamente alinhado às suas causas. Bolsonaro, na verdade, vê nos ruralistas um dos principais sustentáculos de sua caminhada rumo ao Planalto. E tenta retribuir como pode a ajuda. Ele se mostra suscetível às demandas do setor. No episódio da tarifação do leite em pó, por exemplo, o presidente havia recebido uma mensagem de um grande fazendeiro reclamando do fim da taxa que encarecia a entrada do produto no país – o que deixava os produtores nacionais expostos à concorrência estrangeira. De pronto, ele acionou Tereza Cristina, que procurou Paulo Guedes, que mais tarde foi incumbido pelo Planalto de resolver a situação. Detalhe: Guedes foi ao gabinete da ministra para tratar do assunto. Pode não parecer, mas em Brasília esses gestos – de quem vai ao gabinete de quem – costumam ser lidos também como sinais de poder.

O alinhamento de Bolsonaro com o agronegócio começou a se desenhar antes da campanha eleitoral. Os ruralistas foram o primeiro setor da economia a aderir ao então pré-candidato quando ele nem era considerado ainda um nome viável. Conforme Geraldo Alckmin, considerado o candidato natural do setor, foi se mostrando incapaz de derrotar o PT, deu-se início a uma migração rápida do apoio para o ex-capitão do Exército. A troca de candidato preferencial foi reforçada pelas críticas enfáticas de Bolsonaro ao MST e às invasões de terra. A relação fluiu. Após o primeiro turno, o apoio até foi ampliado. O então candidato, em um encontro no Rio, garantiu a um grupo estrelado de ruralistas que, se fosse eleito, a indicação do chefe do ministério da Agricultura caberia a eles. Tereza, que participou do encontro, era a presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a organizada instituição que gerencia os interesses do setor no Congresso. A pasta lhe cairia no colo meses depois.

Após a posse de Bolsonaro, em um movimento semelhante ao que ocorreu com o ministério da Economia, o Ministério da Agricultura ganhou poder. Pesca e Desenvolvimento Agrário se juntaram ao antigo organograma da pasta. Bolsonaro também mexeu em outras áreas sensíveis aos ruralistas. Colocou no Incra um general com a missão de zerar a influência dos movimentos sociais sobre o órgão. Tirou dos ambientalistas o controle sobre o Meio Ambiente. Extinguiu o Ministério do Trabalho e colocou para cuidar da área o relator da reforma trabalhista — o mesmo que foi encarregado de coordenar a proposta da reforma da Previdência. Ainda deixou os assuntos sindicais sob a guarda de Sergio Moro no Ministério da Justiça.

DivulgaçãoDivulgaçãoO senador Heinze, um dos líderes da bancada ruralista: “nova direção”
Era a primeira vez que ocorria um alinhamento geral do alto escalão do governo aos temas caros ao setor. Sindicalistas, ambientalistas e sem-terra estavam fora do jogo. “Tinha muita ideologia lá dentro do governo. Antes as ONGs mandavam aqui. Quem é WWF? Greenpeace? Para nós, tudo isso eram barreiras que em outros países não existem e eles impunham para nós sem que adotassem para eles. Agora é uma nova direção. Não pode mais terceiro, quarto, quinto escalão achar que manda”, disse o senador Luis Carlos Heinze, do PP gaúcho, um dos expoentes ruralistas no Congresso. Também foi inédita a livre indicação de um ministro pelo agronegócio. Até então, o presidente pedia a indicação a um partido e a bancada ruralista avalizava. Foi assim com o antecessor de Tereza, Blairo Maggi, do PP. E também com os que o antecederam, como os emedebistas Reinhold Stephanes, Wagner Rossi e Antonio Andrade (por mais de uma década, a pasta ficou sob controle do partido de Michel Temer). O alinhamento nem sempre era perfeito. Por vezes, a bancada se rebelava contra ministros.

O caso mais significativo ocorreu com a senadora Kátia Abreu, também do MDB, nomeada ministra por Dilma em 2015. Seu apoio incondicional à petista, somado aos desacertos com a bancada, foi determinante para o seu enfraquecimento como liderança ruralista. Kátia acabou caindo junto com Dilma. Perdeu até o comando da poderosa Confederação Nacional da Agricultura, a CNA, que funcionou como seu bunker durante anos. Os demais ministros sempre tinham algum tipo de problema. No governo Lula, Roberto Rodrigues era próximo do todo-poderoso José Dirceu e do chanceler Celso Amorim, mas distante do dono do cofre, Antonio Palocci, comandante da Fazenda. No governo FHC, Pratini de Moraes tinha acesso direto a Pedro Malan na Fazenda, mas enfrentava dificuldades com José Serra no Ministério do Planejamento. Os anteriores tinham representatividade no setor, mas não tinham uma bancada organizada para sustentá-los.

A atual dobradinha do ministério com a portentosa bancada ruralista é, assim, outro ponto que fortalece Tereza no cargo e assegura a força do setor em Brasília. Se ela reivindica algo no governo, logo deputados e senadores correm para engrossar a demanda. Do mesmo modo, se há um pleito específico dos parlamentares, ela rapidamente o abraça. A questão do subsídio da energia é exemplar. Havia resistência no governo, em especial do ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, em fazer a concessão aos agricultores. Em uma reunião em seu gabinete, ele chegou a dizer que o agronegócio é a “galinha dos ovos de ouro da economia”, mas que “o governo tem outros ovos na economia para cuidar também”. Pegou mal. A turma do agro seguiu firme com a demanda. O ministro-almirante acabou perdendo o embate.

Tereza Cristina reconhece o ambiente favorável e assume sem meias palavras seu papel de defensora do setor, ainda que para isso tenha que comprar brigas com colegas da Esplanada. Ao receber Crusoé na semana passada em seu gabinete, ela disse que sua principal missão é mostrar que a realidade da agricultura brasileira é bem diferente da que é propalada pelos críticos do setor. Eis uma parte da conversa:

O que mudou para os ruralistas neste governo em relação aos anteriores?
Com Bolsonaro é diferente. Os produtores rurais, muito mais que os deputados, o apoiaram desde antes da campanha. Ele andou muito na área rural, visitou muitos estados, conversou com muitos produtores, dormiu em muitas fazendas. O produtor rural é conservador, cansou de apanhar e viu no presidente uma identificação com o que o homem do campo pensa. E ele tem demostrado isso. Existe um alinhamento de pensamento.

A agenda liberal de Paulo Guedes é um obstáculo a ser vencido pelo setor?
Paulo Guedes tem uma agenda positiva. Vamos ter mais abertura econômica. Não há como estar no mercado global e achar que só você pode exportar. O que não pode é chegar e liberar tudo. Tem que ver como ficam os segmentos mais frágeis. Nosso papel é defender o nosso setor. Claro que a área econômica vai ponderar. Ela tem que cuidar da indústria, dos serviços. E eu tenho que discutir o meu setor.

E qual é o seu papel no governo?
Mostrar a realidade do campo. Eles (outras áreas do governo) conhecem tecnicamente a agricultura, mas a realidade nua e crua sou eu que conheço. Atividade agrícola é de alto risco. O agricultor não tem controle sobre o preço do diesel, da energia, do câmbio, do tempo. Há preconceito. Outro dia li que a França é dos países que mais subsidiam a agricultura e os franceses têm o maior orgulho dos seus produtores. Aqui é o contrário. A gente produz barato, exporta, é o carro chefe da economia e somos bombardeados pela sociedade.

Os sinais públicos do novo protagonismo ruralista em Brasília são eloquentes. A cerimônia de posse da Frente Parlamentar da Agropecuária, há duas semanas, quando Tereza Cristina passou adiante o posto de presidente, foi uma amostra inconteste do prestígio do setor no governo. Estavam presentes Bolsonaro, o vice-presidente general Hamilton Mourão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e até o titular da pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles — algo inimaginável em outros governos, quando o habitual era que o responsável pela área ambiental estivesse em conflito permanente com os representantes do agronegócio. A lua-de-mel que se desenha duradoura obedece à lógica da via de mão dupla, em que o atendimento aos interesses de um dos lados é compensado pelos serviços prestados pelo outro. Os ruralistas somam mais de um terço do Congresso. São 233 parlamentares — 32 senadores e 201 deputados. Contingente grande o bastante para ter papel preponderante tanto na aprovação das reformas econômicas de Paulo Guedes quanto na tarefa de blindar o governo de constrangimentos, como convocações de ministros e instalações de CPIs. “Se tiver que escolher entre a orientação do partido e a da frente, ficamos com a frente”, diz o deputado federal Pedro Lupion, do DEM do Paraná. Seu pai, Abelardo Lupion, uma das principais lideranças ruralistas do país, auxilia na articulação a partir de um cargo informal que tem na Casa Civil.

Mesmo com o cenário amplamente favorável, parte relevante do setor ainda prefere aguardar os resultados de médio e de longo prazo. “O sinal geral é muito positivo, mas precisamos ver o detalhe. O que virá pela frente? Qual vai ser a política comercial? Acordos bilaterais? Mercosul? União Europeia? Qual vai ser a estrutura logística?”, indaga o ex-ministro Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas. Kátia Abreu segue a mesma linha. “Há muito prestígio na questão conceitual, mas e no restante? Qual o planejamento para infraestrutura? Quais os mercados prioritários? Ainda não está claro.” No próximo dia 17, Tereza Cristina integrará a comitiva presidencial que irá aos Estados Unidos e a Israel com Bolsonaro. Sua estreia na cena internacional pode responder a parte das dúvidas que ainda pairam entre os próprios ruralistas. E pode significar mais um tento do agronegócio em um governo que decidiu dar de ombros para as críticas e colocar os interesses do setor no centro do poder.

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