Agência BrasilCabral preso: delação amedronta uma ala do Judiciário fluminense

Luzes para a Lava Toga

A nova safra de revelações na Lava Jato abre caminho para o esperado mergulho nos bastidores dos tribunais
08.03.19

Sérgio Cabral, outrora o homem mais poderoso do Rio, tornou-se enfim um corrupto confesso. O viciado em dinheiro, como ele próprio se definiu, tem sinalizado que pode contar os segredos que ainda guarda e já disparou recados àqueles que se beneficiaram da sua influência para conseguir uma vaga nos tribunais. Orlando Diniz, um dos asseclas de Cabral que comandava o orçamento multimilionário da Fecomércio, injetou dinheiro em bancas de advogados capitaneadas por parentes de ministros e desembargadores — e agora acena com uma possível colaboração com a Lava Jato. A OAS, empreiteira com fortes laços nos três poderes, já começou a mostrar o potencial da delação de seus executivos.

Juntos, Cabral, Diniz e os executivos da OAS podem inaugurar uma nova safra de delações e acusações com força para dar fôlego à Lava Jato em dezenas de inquéritos envolvendo políticos. Mas há um fator especialmente relevante nesses movimentos: eles têm muito a falar sobre o Judiciário. E, assim, dar aos investigadores um caminho para a deflagração da chamada Lava Toga, focada nos bastidores das cortes de Justiça.

O primeiro aceno de Sérgio Cabral veio quando o ex-governador mudou o discurso e passou a admitir que recebia propina. Até ali, era uma novidade que só servia aos interesses dele próprio — e uma obviedade ante as inúmeras provas que resultaram em condenações que já somam quase 200 anos de pena. Mas Cabral disse mais. Como mostrou Crusoé, o primeiro recado veio em uma declaração lateral nesse mesmo depoimento. Cabral falou dos sucessos de Régis Fichtner, seu ex-braço-direito no mundo jurídico que também ganhou, como o passar dos anos, a condição de operador de propinas. O ex-governador não citou nenhum crime envolvendo advogados ou togados, mas de uma vez só mencionou um ministro do Superior Tribunal de Justiça e relembrou que era comum Fichtner ajudar nas indicações de nomes para os tribunais. Algo que, ao longo dos anos em que esteve no poder e gozava de prestígio junto ao governo federal, Cabral soube explorar com habilidade.

O citado era Marco Aurélio Bellizze, cuja promoção de juiz para desembargador, segundo Cabral, foi uma “conquista política” de Fichtner. Mais tarde, com o apoio de Cabral, o magistrado ascendeu de desembargador a ministro do STJ. Belizze e Fichtner são cunhados. O ministro de pronto rebateu a insinuação de Cabral: disse que figurou por três vezes seguidas na lista de mais votados para a vaga de desembargador e, desse modo, a promoção era automática. O fato é que o depoimento de Cabral foi calculado de modo a mostrar que, de nomeações em tribunais, ele sabe muito e muito pode contar. Em especial, sobre os cariocas que pediram a sua benção. Não foram poucos.

Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, é outro que pode ajudar na Lava Toga
Cabral, é verdade, está longe de fazer uma delação. Não está claro nem se a Lava Jato, hoje, toparia um acordo com ele. Mas contar o que sabe, ainda que seja fora do âmbito de uma colaboração premiada, pode significar alguns anos a menos de cadeia nos processos que ainda estão em curso. Caso prossiga na disposição de trazer à luz peças úteis ao quebra-cabeças que os investigadores ainda estão por montar no Judiciário, pode ser bom para os dois lados: a Lava Jato avança em uma seara ainda carente de bons testemunhos e, ao mesmo tempo, o corrupto cujos esquemas levaram o Rio à bancarrota pode ter algum refresco. Por ora, os dois lados jogam cuidadosamente um jogo de estratégia. A ver o resultado.

Em outra frente, começaram a aparecer os primeiros resultados da arrastada delação da OAS, uma das gigantes do petrolão. Esse acordo começou a ser negociado há mais de três anos. Quando o procurador-geral da República ainda era Rodrigo Janot, tudo caminhava bem até que vazou a suposta disposição de Léo Pinheiro, ex-presidente da companhia, de contar que fizera favores ao ministro Dias Toffoli, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal. A negociação travou. Só foi retomada tempos depois. Oito executivos da empreiteira já tiveram seus acordos homologados. O resultado dessa colaboração trouxe de volta a Brasília o clima de apreensão experimentado nos corredores do poder no auge da Lava Jato, quando a delação da Odebrecht, por exemplo, prometia implodir uma parte significativa do establishment. Entre propina e caixa dois, os executivos da OAS citaram 21 políticos que receberam 125 milhões de reais.

Desse mesmo pacote da empreiteira podem sair revelações importantes também sobre os tribunais. Embora tenham se assustado com a reação à menção pretérita do nome de Dias Toffoli, executivos da empreiteira mantiveram a disposição de revelar relações heterodoxas com outros magistrados de alto nível. Ainda é cedo para saber o que de consistente restará dessa parte da negociação, mas há menções a ministros do STJ, por exemplo.

A principal estrela da OAS, Léo Pinheiro, ainda não teve seu acordo homologado, mas tende a ser o ponta de lança nessa parte do material. Por décadas, ele esteve enfronhado no poder. E lidava como admirável desenvoltura não apenas com políticos, mas também com magistrados. Nas fases da Lava Jato que miraram a OAS, os investigadores descobriram, por exemplo, mensagens que ele trocava com o ministro Benedito Gonçalves, do mesmo STJ. Em uma delas, o ministro pedia a “ajuda valiosa” do empreiteiro para um projeto pessoal. Havia, ainda, menções a outros togados de Brasília. Se esse mesmo empresário depois se oferece para fazer uma delação, a PGR deveria pelo menos perguntar o que seria essa “ajuda valiosa”. É o que se espera.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRaquel Dodge: pressionada entre o dever e as mesuras da corte
Os caminhos iluminados que se abrem para a Lava Toga incluem ainda uma frente na qual os procuradores estão bastante empenhados. É a investigação em torno da Fecomércio-Rio e de seu antigo comandante, Orlando Diniz. Como Crusoé já mostrou, Diniz manifestou intenção de fazer delação. Mas, ao menos até agora, ele não disse tudo o que sabe. A negociação prossegue. O acordo só sairá se Diniz topar revelar histórias sobre setores que, aparentemente, ele ainda tenta proteger. Em paralelo, porém, os investigadores têm a opção de seguir o caminho do dinheiro. À frente da Fecomércio, Orlando Diniz gastou pelo menos 118 milhões de reais com advogados.

Entre os destinatários dos pagamentos, que eram registrados em sistemas próprios para evitar a curiosidade de olhos enxeridos, está o jovem Eduardo Martins, filho do ministro Humberto Martins, também do STJ. Martins, como é sabido, recebeu cerca de 13 milhões de reais. Outro escritório que faturou alto com a Fecomércio foi o do advogado paulista Roberto Teixeira, que se gabava de ter bom trânsito nos tribunais superiores de Brasília no auge dos governos do compadre Luiz Inácio Lula da Silva: foram pelo menos 38 milhões. Esses pagamentos, vale dizer, a Lava Jato já conhece e estão documentados e provados. A dúvida que se quer tirar, agora, é se eles se referiam apenas a serviços jurídicos.

Se a Lava Jato implodiu o Congresso e colocou na prisão o presidente da República mais popular da história do país, não se pode dizer o mesmo de juízes e ministros de tribunais. O Judiciário, até aqui, tem se mostrado um tabu para a operação. Com as janelas de oportunidade disponíveis, os investigadores parecem estar diante de uma chance inédita de avançar. A situação coloca sob holofotes (e sob pressão) uma figura fundamental nesse processo: a procuradora-geral Raquel Dodge. Escolhida para o posto por Michel Temer após ficar em segundo lugar na lista tríplice, ela adotou uma postura discreta e cautelosa no cargo. Dodge tornou-se uma espécie de antítese de Rodrigo Janot, seu antecessor. Com Janot, a PGR fechou muitos acordos de delação (vários deles criticados, é verdade) e deu um novo patamar para a área criminal do Ministério Público. A postura causou reações dentro do próprio MP. Uma consequência clara disso foi justamente o fato de Dodge, desde sempre conhecida por ter um estilo bem diferente, conseguir votos suficientes dos colegas para entrar na lista. Ela está no comando da PGR há cerca de 17 meses e, de fato, não repetiu as grandes operações do antecessor.

Nos bastidores, os aliados da procuradora sempre sustentaram que, sob o seu comando, as delações premiadas passariam a ser submetidas a um rigor maior. Para ser aceitas, teriam de ser mais robustas e conter provas cabais. O acordo dos executivos da OAS dirá se essa promessa se cumpriu. E, ao mesmo tempo, revelará o tamanho da disposição de Dodge para comprar brigas com integrantes dos tribunais superiores – com os quais a convivência nos salões de Brasília costuma ser harmoniosa, o que quase sempre funciona como uma pedra no caminho de investigações dessa natureza.

Nesta semana, chegou à mesa da procuradora-geral mais uma situação desafiadora e que também guarda relação com os melindres das altas rodas. A força-tarefa da Lava Jato no Paraná pediu que ela aponte a suspeição de Gilmar Mendes nos casos envolvendo Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, acusado de ser o operador de propinas do PSDB. O pedido tem por base mensagens interceptadas que mostraram que o ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, defendido pelo mesmo advogado de Paulo Preto e também investigado, fez contatos em fevereiro com o gabinete de Gilmar para tratar de um processo de interesse do operador. Detalhe: o ministro do Supremo foi um dos principais apoiadores da campanha de Dodge para ser nomeada por Temer para a cadeira de procuradora-geral. Ainda não se sabe o que ela fará no caso. Disso tudo, uma coisa é certa: embora as condições estejam dadas, é preciso ter coragem para vencer o tabu reinante em Brasília. A República pede, mas nem sempre é ouvida.

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