FelipeMoura Brasil

A quebra do cinismo

01.03.19

Em 2011, durante inauguração do teleférico do conjunto de favelas do Alemão com Dilma Rousseff, Luiz Fernando Pezão e Eduardo Paes, o então governador Sérgio Cabral exaltou a parceria entre eles e o “desejo de não ver mais o Rio de Janeiro sendo destruído por forças políticas que pensavam em si e não pensavam na população”.

“Nós mudamos esse processo. O presidente Lula e eu, em 2006, no segundo turno, fizemos um pacto. Um pacto de mudança do Rio. Essa região foi completamente abandonada pelo poder público. Os políticos vinham aqui fazer demagogia. Prometer o que não cumpriam. Enquanto isso, o poder paralelo ia se organizando.”

O poder paralelo, na verdade, já estava organizado no estado.

Em 2016, em decorrência de investigação da Lava Jato, o Cade mostrou que houve combinação ilegal entre empreiteiras para escolher a vencedora da licitação para as obras do teleférico. A Odebrecht embolsou 843 milhões de reais. A CGU apontou superfaturamento de 43 milhões de reais. Em 2016, o teleférico parou de funcionar – e retomar seu funcionamento é uma das metas do atual governador Wilson Witzel.

O discurso de Cabral no Alemão, onde os tiroteios até hoje são rotina, ilustra uma das fases de cinismo de um corrupto. Aquele que acusava antecessores de sua própria demagogia, de seu descumprimento de promessas, de sua incapacidade de pensar mais na população do que em si, passou depois, por mais de dois anos, pela fase de negação dos numerosos crimes de que foi acusado.

Para isso, contou com advogados como Rodrigo Roca, que, sobre propinas, declarou em setembro de 2017, quando o emedebista já estava preso em Benfica:

“Isso é outra mentira! As contas não fecham. Os delatores dizem que ele cobrava 5% em cima dos valores das obras no estado. Se isso fosse verdade, os contratos seriam impraticáveis. (…) Mais do que ninguém, ele [Cabral] sabe que os delatores são mentirosos e que, um dia, a verdade virá à tona.”

A verdade veio à tona na última terça-feira pelo próprio Cabral, que já acumula pena de 198 anos de prisão.

Ele disse ao juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato no Rio, ter acertado 5% de propina sobre contratos de serviços na Secretaria de Saúde, juntamente com o ex-secretário Sérgio Côrtes — dos quais 3% ficariam com ele e 2% com seu subordinado.O ex-governador confirmou o depoimento dos delatores. As contas fecharam.

Assim como Marcelo Odebrecht (que dizia em 2015: “Para alguém dedurar, ele precisa ter o que dedurar; isso não ocorre aqui”), Cabral atingiu uma fase que o também presidiário Lula se recusa a atingir.

Questionado por que mentiu, o ex-governador respondeu que “dói muito”, “é uma dor muito profunda” dizer que roubou. Tanto que ele ainda recorre a amenizações (“Agir como corrupto, isso eu nunca agi”) e se refere a seus crimes como “erro” e “vício”.

“Esse meu erro de postura, de apego a poder, dinheiro, a tudo isso… É um vício.”

Só faltou Cabral pedir transferência da cadeia para uma clínica de reabilitação.

Apesar do cinismo residual, suas confissões são educativas para eleitores e também para investigadores e jornalistas. Para os primeiros, porque reforçam o ceticismo necessário diante de promessas, afagos, autoexaltação e supostos desmentidos de políticos. Para o segundo grupo, porque mostram como vale a pena perseverar na elucidação dos fatos, a despeito de todas as alegações e eventuais intimidações, reais ou virtuais, em contrário.

Cabral achou que a Lava Jato “era mais uma coisa dessas que acontecem no Brasil e depois deixam pra lá”. Confundiu a operação com o teleférico que ele inaugurou.

Felipe Moura Brasil é diretor de jornalismo da Jovem Pan.

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