ReproduçãoO padre Wagner Portugal: simpatia, presteza e talento para alinhar interesses

A Igreja e a Lava Jato

Agora delator, Padre Wagner fazia a ponte entre políticos poderosos de Brasília, empreiteiras enroladas com a Justiça e cardeais. Ele se encarregou até de arrumar patrocínio para reformar o quarto do papa
01.03.19

Desde que foi deflagrada, a Lava Jato tem sido pródiga em feitos que, em outros tempos, seriam inimagináveis.

Esmiuçou as relações espúrias entre as grandes empreiteiras do país e políticos de primeira grandeza, alcançou empresários corruptores e pôs um ex-presidente da República na cadeia.

O que poucos podiam esperar é que a operação descobriria também, em meio à espiral de tramoias com dinheiro público, que as relações espúrias chegariam perto da cúpula da Igreja Católica no Brasil.

Pois descobriu.

Ao investigar os desvios milionários praticados pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral e sua turma, o braço fluminense da Lava Jato identificou pagamentos suspeitos feitos pelo governo a uma organização social católica, a Pró-Saúde, escolhida para administrar hospitais públicos do estado.

A Pró-Saúde tinha em seu quadro de diretores um padre conhecido nas altas rodas do poder que, premido pelo resultado da apuração, decidiu colaborar e acabou por detalhar o desvio de pelo menos 50 milhões de reais provenientes dos contratos com o governo do Rio.

Wagner Portugal, ou simplesmente Padre Wagner, foi durante mais de uma década a sombra do cardeal Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro. Recentemente, ele foi afastado da batina por não exercer as funções na paróquia para a qual havia sido designado. Andava metido em tarefas bem menos ortodoxas do que rezar missas e a Igreja, rapidamente, tratou de tirá-lo do altar.

Além de revelar as estripulias nos contratos, Wagner Portugal contou aos procuradores da Lava Jato que costumava comprar presentes para Dom Orani — camisas e artigos religiosos — e pagar despesas de sacerdotes que o auxiliam. O caso pôs o arcebispo, alçado à condição de cardeal em 2014 pelo Papa Francisco, na desconfortável posição de personagem de um enredo que é comum na política, mas soa bastante estranho na Igreja.

A proximidade do cardeal com Wagner Portugal torna a situação ainda mais delicada. Até pouco tempo atrás, ele entrava sem pedir licença no Palácio São Joaquim, a residência oficial da Arquidiocese do Rio. Costumava falar em nome de Dom Orani sem ser desautorizado. Quando dos preparativos para a visita de Francisco ao Rio, em 2013, lá estava ele a auxiliar o arcebispo.

Wagner Portugal e José Sarney no Senado: conselheiro e confessor
A investigação sobre os desvios que sangraram os cofres do Rio nos anos Cabral prossegue. Os procuradores agora tentam avançar. Querem saber, por exemplo, se as contas que Wagner Portugal pagava eram custeadas com o dinheiro desviado. E se os desvios contavam com as bênçãos de outros integrantes da Igreja.

O que talvez nem a Lava Jato saiba — e que Crusoé conta nesta reportagem — é que a atuação de Wagner Portugal ia bem além de suas funções como diretor da organização social suspeita de desviar algumas dezenas de milhões de reais do governo do Rio.

Wagner Portugal funcionava também como um competente elo entre uma parte importante da cúpula da Igreja, empreiteiras que caíram na Lava Jato e políticos proeminentes. O padre chegou a ser conselheiro da cúpula da notória Camargo Corrêa e costumava tratar de interesses da companhia em Brasília, onde tinha trânsito livre com gente como José Sarney.

Assíduo frequentador da casa de Sarney nos tempos em que ele comandava o Senado, Wagner Portugal contava aos amigos que era também uma espécie de “orientador espiritual” do ex-presidente. A depender do grau de confiança no interlocutor, ia além: dizia ser o confessor oficial de Sarney.

Suas multifunções rendiam bons frutos às várias partes que ele procurava aproximar nas constantes viagens que fazia no eixo Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo: a Igreja, de um lado, os empreiteiros e políticos de outro.

Juntamente com outro cardeal de quem também foi próximo por muitos anos, Dom Raymundo Damasceno, hoje arcebispo emérito de Aparecida, Wagner Portugal foi o articulador do esforço para reformar o Mosteiro de São Bento, em São Paulo. A missão era nobre: o mosteiro, encravado no Centro da capital paulista, receberia o papa Bento 16. A visita papal estava programada para 2007 e era preciso reformar o prédio histórico. Padre Wagner pôs-se a procurar benfeitores que pudessem arcar com as despesas.

Sua proximidade com os acionistas da Camargo Corrêa, a quem costumava prestar favores, facilitou o processo. A empreiteira que anos depois cairia na malha da Lava Jato topou arcar com a reforma dos aposentos que serviriam a Bento 16.

Wagner Portugal era muito próximo de Fernando de Arruda Botelho, um dos principais acionistas do grupo, morto em 2014 em um acidente de avião – Botelho era casado com Rosana Camargo, uma das três herdeiras do império deixado pelo empreiteiro Sebastião Camargo.

Cristina Indio do Brasil/Agência BrasilOrani Tempesta, o cardeal arcebispo do Rio: ligação estreita com Wagner Portugal
Essa proximidade lhe rendeu tarefas sensíveis. Quando estourou a Operação Castelo de Areia, na qual a Polícia Federal e o Ministério Público acharam o mapa da mina que poderia antecipar em alguns anos as descobertas da Lava Jato, com pagamentos a políticos em troca de facilidades no setor público, o padre foi escalado para uma operação de contenção de danos em Brasília.

A ordem era para que ele procurasse os poderosos da hora para buscar uma maneira de evitar o que poderia ser uma grande desgraça para ambos os lados – para a Camargo Corrêa, como corruptora, e para os políticos, como os destinatários da propina. Crusoé conversou com testemunhas primárias desse processo.

A ação de Wagner Portugal foi o pontapé inicial para o que, mais tarde, seria a solução do problema. Ele procurou amigos senadores e começou, ali, a construir a “saída jurídica” que a Camargo Corrêa tanto queria para a Castelo de Areia, em uma articulação que contou também com a ajuda de figuras estreladas do então governo petista. A operação morreu após uma decisão monocrática do então presidente do Superior Tribunal de Justiça, Cesar Asfor Rocha, que baseou o despacho no fato de a investigação ter sido deflagrada a partir de uma denúncia anônima.

Wagner Portugal tinha acesso a muitos gabinetes importantes de Brasília. Entre os grão-petistas, sua relação só não era muito boa com Gilberto Carvalho, com quem travava uma disputa surda pelo papel de interlocutor preferencial entre a Igreja e o governo. O lobista que usava o nome de Deus tinha bons canais para abrir portas, inclusive no Palácio do Planalto. No Congresso, onde costumava aparecer com o figurino de padre, era tão desenvolto que parecia um parlamentar. Além de Sarney, tinha acesso privilegiado a Romero Jucá, Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves – os todo-poderosos de então por ali – e mais um tanto de parlamentares influentes.

DivulgaçãoDivulgaçãoA fachada do Mosteiro São Bento, no Centro de São Paulo: o padre articulou reforma para receber Bento 16
Ele usava sua posição junto ao clero para catapultar interesses alheios, mas também era útil aos interesses da própria Igreja. Quando havia algo a resolver na burocracia de Brasília, como pendências relacionadas às emissoras de rádio e tevê católicas, por exemplo, via-se acionado. Quando era preciso angariar apoio financeiro para projetos especiais, como a reforma do mosteiro, também. Na via oposta, mantinha todos os que topavam ser parceiros em suas empreitadas próximos da cúpula da Igreja. Era sempre uma via de mão dupla.

Com o tempo, a proeminência do padre começou a lhe causar embaraços com os companheiros de batina. Houve quem estranhasse, bem antes das descobertas que a Lava Jato faria, a vida que ele levava, com luxos incomuns à maioria dos religiosos. Ainda assim, seguiu influente e desenvolto.

Da mesma forma que operava grandes favores, Wagner Portugal tratava de administrar situações comezinhas na interlocução entre os bilionários da empreita e os bispos. Em uma história contada e recontada por amigos próximos, um dos chefões da Camargo Corrêa mandou comprar um lote de tablets personalizados para distribuir entre um grupo de religiosos amigos – incluídos aí alguns com posição de destaque na hierarquia da Igreja no Brasil. Era um agrado que ele queria fazer. Depois de resolvido um percalço na Receita Federal, que barrou a entrada dos aparelhos, coube a Wagner Portugal  a tarefa de orientar a distribuição dos mimos. Naquele tempo, as suspeitas de malfeitos envolvendo a Camargo Corrêa eram cuidadosamente administradas nas altas rodas do poder. Receber um presente da empreiteira, portanto, não era lá um grande problema. A Lava Jato era algo distante. Tão distante que nem os representantes de Deus na Terra imaginavam que, anos mais tarde, correriam o risco de ver expostas as suas relações mais perigosas com o pecado.

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