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Uma emergência fabricada

Apesar de não existir urgência na fronteira com o México, nada poderá deter a construção do muro prometida por Trump
22.02.19

Ao declarar estado de emergência nacional, que lhe deu acesso a 8 bilhões de dólares para construir um muro na fronteira com o México, o presidente americano Donald Trump foi sincero além da conta. “Eu fui até o Congresso. Fiz um acordo. Consegui quase 1,4 bilhão de dólares quando não deveria receber um dólar, nem um dólar. Bem, eu ganhei 1,4 bilhão de dólares, mas não fiquei feliz com isso”, disse Trump no jardim da Casa Branca na sexta-feira, dia 15, ao responder a uma pergunta de um jornalista. “Eu poderia demorar para erguer o muro. Eu não precisava fazer isso (declarar estado de emergência). Mas preferi fazer tudo muito mais rápido… A única razão de estarmos falando disso é por causa da eleição.”

Não havia, pois, qualquer necessidade para que Trump fizesse o que fez: declarar emergência nacional para realocar recursos de outros setores, desrespeitando uma determinação do Congresso. Foi ele mesmo quem disse isso. A sua confissão atabalhoada acabou sendo usada, dias depois, por diversas organizações civis e por uma coalizão de dezesseis estados –todos eles, menos um, governados por democratas– para tentar minar a decisão da Casa Branca.

Flick Casa BrancaFlick Casa BrancaTrump e militares na fronteira com o México: nada de urgência
Nos dias seguintes, não houve especialista que se levantasse para defender a decisão de Trump. No discurso, o presidente até tentou justificar a medida, algo que ele já sabia inútil. “Estamos falando de uma invasão do nosso país com drogas, com traficantes de seres humanos, com todos os tipos de criminosos e gangues”, disse Trump. É uma afirmação que só convence os já convertidos. Não há nada atualmente na fronteira com o México que inspire tanta necessidade. A quantidade de pessoas que atravessa a divisão em busca de uma vida melhor nos Estados Unidos hoje é um quarto do que foi em 2000. Um dos principais fatores dessa redução foi o estouro da bolha imobiliária, em 2008. Os empregos na construção civil nos Estados Unidos minguaram e muitos acharam melhor voltar para a casa. Desde então, a quantidade de mexicanos sem documentos no país só diminuiu. Os que atravessam a fronteira para o norte são tão numerosos quanto os que cruzam para o sul. “Além do estouro da bolha, o crescimento das indústrias no México e da agricultura de exportação fez com que muitos desistissem de emigrar”, diz o sociólogo e antropólogo mexicano Agustín Escobar Latapí, do Centro de Investigações e Estudos Superiores em Antropologia Social, na Cidade do México. Quando um mexicano chega aos Estados Unidos, ele geralmente está com os documentos em ordem e possui visto de trabalho.

Com os centro-americanos, que saem de Honduras, El Salvador e Guatemala, a situação é diferente. Eles deixam suas casas fugindo da violência das gangues e da falta de hospitais e escolas. Ao chegar aos postos de entrada, eles apresentam provas de que estão correndo risco de vida e pedem asilo. Falam de ameaças e casos de familiares mortos e sequestrados. Contudo, como os pedidos de asilo têm sido rejeitados de imediato, eles tentam cruzar a fronteira em locais ermos, a pé ou a nado. “Ao encontrar a patrulha, eles se entregam rapidamente. Fazem isso porque querem forçar a aprovação dos pedidos de asilo”, diz Agustín. Esse fluxo de gente da América Central, contudo, não chega a compensar, nem de longe, a queda verificada entre os mexicanos que antes tentavam a travessia ilegal.

Não são esses imigrantes que se arriscam pela fronteira que transportam a maior parte das drogas para os Estados Unidos. Hoje, parte do que é consumido pelos americanos é produzido e processado dentro de suas fronteiras. Para os grandes traficantes, que movem quantidades volumosas, esse exército de formiguinhas a pé não interessa. Os carregamentos pesados seguem em aviões, barcos ou em caminhões que levam mercadorias legais para os Estados Unidos. Há também muitos túneis. Em relação ao tráfico de verdade, o muro não terá efeito nenhum.

Não é a realidade, pois, que move Trump. “A construção de um muro na fronteira é mais um símbolo do que uma política efetiva”, diz Kevin Johnson, reitor da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, em Davis. O que empurra o presidente são outros motivos. O primeiro, mais óbvio, é o de animar sua base de eleitores e garantir a reeleição no ano que vem. Afinal, o muro foi uma promessa de campanha. Ainda que a maioria dos americanos entenda hoje que a imigração ajuda mais do que atrapalha, entre os republicanos a percepção de que é preciso reforçar as barreiras ainda impera. No grupo dos eleitores de Trump, o apoio ao muro é de 96%.

White House/Shealah CraigheadWhite House/Shealah CraigheadTrump com eleitores na Flórida: muro como bandeira para a reeleição
O presidente também acompanha muito de perto e tenta seguir a opinião dos profissionais de imprensa que o apoiam. “O presidente acha que precisa fazer de tudo para manter sua base de apoiadores, além de entender que deve seguir as diretivas dos nomes fortes da mídia conservadora, como Sean Hannity e Rush Limbaugh”, diz o cientista político americano Robert Shapiro, da Universidade de Columbia. Hannity, da Fox News, é chamado de “chefe de gabinete de fato”. Dois dias antes, ele publicou um editorial dizendo como Trump deveria atuar, passo a passo, e falou da possibilidade de um decreto de emergência. A sugestão foi cumprida com esmero. Ainda na sexta-feira, ao falar da emergência, Trump disse que Limbaugh era um grande cara, capaz de ficar três horas falando ininterruptamente.

A decisão de Trump dificilmente será revertida pelo Congresso. A Câmara dos Representantes, comandada pelos democratas, esbarraria no Senado, de maioria republicana. Na história americana, o Congresso jamais barrou uma emergência nacional. Quem poderia causar problemas para Trump seria a Justiça. Mas nada que chegue perto de cancelar o decreto que possibilita o erguimento do muro. Não há, na lei de 1976 que estabeleceu essa modalidade, uma definição exata do que seria uma emergência nacional. A falta de nitidez conceitual faz com que seja impraticável dizer que não há uma urgência que justifique a realocação de fundos. Cabe ao presidente, portanto, dizer o que é uma ameaça ou uma emergência. Uma análise dos processos pela Suprema Corte demoraria cerca de dois anos, praticamente o tempo que falta para a próxima eleição. E Trump, vale lembrar, conta com a maioria dos magistrados. Os processos na Justiça poderiam até atrasar o muro, mas nos Estados Unidos é o presidente quem tem a palavra final.

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