Flávio Bolsonaro e o contrato assinado com Valdenice

No gabinete e na campanha

Flávio Bolsonaro pagou com dinheiro da Assembleia do Rio funcionária contratada para gerenciar as contas de sua campanha
22.02.19

Em maio de 2018, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro entregou a gestão das contas eleitorais do PSL do Rio a uma promotora de eventos. Valdenice Meliga tinha como missão cuidar das tarefas burocráticas do diretório fluminense do partido, presidido pelo filho mais velho de Jair Bolsonaro. Pelo trabalho, não consta nenhum pagamento a ela na prestação de contas do partido à Justiça Eleitoral. Em agosto, Flávio e Valdenice fizeram um novo acordo. O contrato, obtido por Crusoé, é claro: ela trabalharia de graça na campanha dele para o Senado. Entre uma negociação e outra, houve mais um acerto. Por esse trato, a promotora de eventos seria enfim remunerada. O dinheiro viria da Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj. Um dia após combinar serviços para o PSL a pedido de Flávio Bolsonaro, em maio, Valdenice Meliga tornou-se funcionária da liderança do partido na casa. O líder era Flávio.

A sincronia das datas mostra que, ao mesmo tempo em que pôs Valdenice para cuidar de suas contas eleitorais, Flávio Bolsonaro deu aval para que ela começasse a receber salários da Assembleia. O salário dela na Alerj, curiosamente, era bem próximo dos 5 mil reais que depois ela atribui como valor estimado do serviço que seria prestado à campanha de Flávio. Na ponta do lápis, 5.124,62 reais. Que serviço uma promotora de eventos prestaria na Assembleia ou na campanha? Valdenice afirma que trabalhou duro e “nunca foi fantasma”. “Ralei para caramba. Se você pedir, (as imagens) das câmeras (da Alerj) vão mostrar isso. Eu entrava e saía todos os dias. Meu trabalho é rua. É o que gosto de fazer e dei conta o recado. Está aí eleito o senador”, disse ela, ao ser procurada por Crusoé nesta quinta-feira, 21. Deu-se o seguinte diálogo:

A senhora tinha um contrato de trabalho na campanha do senador, não é?

Valdenice – É. Quem te falou isso? Você viu esse contrato, tem na sua mão? Pode me mandar? Vamos lá outra pergunta, outra pergunta.

A senhora tinha um contrato. Como a senhora conseguia….

Valdenice – Não, não. Você não pode afirmar em hipótese nenhuma. Você viu o contrato?

Tenho o contrato na mão.

Valdenice – Então vou falar uma coisa para você: qualquer coisa hoje que jornalista colocar em meu nome, e não provar, eu vou para as redes sociais pedir ajuda de todo o povo brasileiro, principalmente os bolsonarianos, para que o jogue o nome desse jornalista na lama. Nós não fizemos nada de errado.

É só para a senhora esclarecer.

Valdenice – Esclarecer o quê? Eu não quero esclarecer nada. Meu querido, se eu quisesse esclarecer ia para as redes sociais, sentava e falava: ó, eu não sou culpada disso.

Nas eleições de 2018, Flávio tinha pela frente não só a disputa por uma vaga no Senado, mas também a coordenação dos gastos eleitorais do diretório do PSL, que lançou 173 candidatos a deputado estadual e a deputado federal, quase o dobro do MDB, que mandava no estado. A campanha para senador e o diretório movimentariam cerca de 1 milhão de reais.

Exatamente em de 10 de maio de 2018, Flávio entregou a gestão das contas eleitorais do PSL à promotora de eventos, também tesoureira do partido – e que no dia seguinte acumulou ainda o trabalho na Alerj. As finanças partidárias das quais um tesoureiro cuida não se confundem com as despesas na eleição. São departamentos separados. Em 15 de agosto, Flávio pôs Valdenice para administrar as finanças de sua campanha a senador. Sozinha ou junto com o candidato, ela ordenaria todas as despesas contratadas, que ao final chegariam a 490 mil reais.

Em 28 de setembro, por exemplo, assinou um cheque de 10 mil reais em nome de Flávio Bolsonaro, para a locação de uma sala em Madureira para servir de comitê de campanha. Na função dada por Flávio, a promotora de eventos também orientava o contador sobre os atos que seriam escriturados, e ainda zelava pelo cumprimento das normas da legislação eleitoral. Tudo ao mesmo tempo em que acumulava o cargo na Alerj. O seu intenso trabalho na campanha só acabaria com a prestação final de contas, apresentada à Justiça Eleitoral em 8 de novembro.

Cheque assinado por Valdenice: serviços à campanha, mas salário pago pela Assembleia
Enquanto topou fazer os serviços de graça para Flávio Bolsonaro, o candidato, ela foi muito bem remunerada com dinheiro público pelo outro Flávio Bolsonaro, deputado e líder do PSL. À custa da Alerj, ela recebeu cerca de 40 mil reais entre maio e dezembro. Foi exonerada no último dia 11 de fevereiro. Durante a campanha, dois familiares de Valdenice acabaram também ganhando uns trocados. O diretório do PSL no Rio destinou 7.500 reais ao sobrinho dela, em troca de um contrato de locação de veículos. Já o irmão da promotora de eventos recebeu para trabalhar na campanha de uma candidata, bancada estritamente com dinheiro do PSL.

Valdenice conhecia a família Bolsonaro muito antes da eleição. Chegou a ser prestigiada até pelo hoje presidente da República. Em 1º de outubro de 2017, Flávio e Jair Bolsonaro posaram para uma foto ao lado dela e de seus irmãos gêmeos, os policiais militares Alan e Alex Rodrigues de Oliveira. Ao fundo, havia alguns balões de aniversário. Todos pareciam felizes. Os gêmeos haviam completado 47 anos alguns dias antes. Flávio Bolsonaro, o filho Zero Um do presidente, fez um comentário na foto publicada em sua conta no Instagram: “Essa família é nota mil”. Uma frase que, mais tarde, se mostraria infeliz. Depois do tal aniversário, os policiais apareceriam como suspeitas de envolvimento em transações heterodoxas. O comentário inocente na rede social se transformaria em mais um infortúnio para Flávio, já abalroado pelas ligações com outro PM, o agora notório Fabrício Queiroz.

Jair e Flávio Bolsonaro posam com Valdenice e os irmãos dela, Alan e Alex
Uma investigação do Ministério Público do Rio afirma que Alan e Alex Rodrigues pagavam propina mensal de 1 mil reais a agentes da 36ª Delegacia da Polícia Civil, localizada em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste carioca. Em troca, os agentes fechariam os olhos para um loteamento ilegal que os gêmeos vendiam. Um delator do esquema contou que chegou a receber propina de Alan Rodrigues no meio de uma blitz – um clássico da corrupção miúda. Em janeiro de 2018, Alan foi preso em flagrante no loteamento irregular. Os PMs irmãos Valdenice voltariam a ter contato com Flávio Bolsonaro meses depois, já na campanha eleitoral. Ao jornal O Estado de São Paulo, ela admitiu que os irmãos Alex e Alan Rodrigues atuavam no staff de Flávio como “voluntários” nos dias de folga. Eles participaram da agenda do filho do presidente até agosto, quando foram presos sob a acusação de pagar propina aos agentes da Polícia Civil.

A operação que prendeu os gêmeos, batizada de “Quarto Elemento”, alcançou outras 46 pessoas, a maioria policiais com algum tipo de ligação com extorsões e milícias. Entre os presos, havia três policiais que receberam “moção de louvor” por obra do então deputado Flávio Bolsonaro. Os irmãos Alex e Alan Rodrigues, segundo a denúncia do MP, integravam uma quadrilha perigosa e fortemente armada. A lista de envolvidos incluía uma espécie de “senhor das armas”, o policial civil Rafael Luz Souza, conhecido como Pulgão, preso com seis fuzis, quatro pistolas, um rifle de uso militar calibre ponto 30, 24 carregadores e 560 cartuchos de diferentes calibres. Em dezembro, Pulgão foi intimado a prestar esclarecimentos em um outro caso, talvez o mais rumoroso da crônica político-policial recente do Rio. Era a investigação que apura o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, e do motorista dela Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Não se sabe, ainda, a razão da intimação.

Procurado, o advogado dos irmãos Alan e Alex Rodrigues informou que eles respondem a processo em liberdade e preferiu não comentar o caso. Flávio Bolsonaro não retornou os contatos da reportagem por telefone e e-mail. A história do senador com os irmãos da família “nota mil” é mais uma que o liga a policiais enrolados com a Justiça. O caso mais rumoroso é o que envolve Fabrício Queiroz, seu ex-assessor que movimentou 1,2 milhão de reais em cerca de um ano, foi pilhado em um relatório do Coaf e agora é alvo de uma investigação do Ministério Público. Outro episódio que deixou o agora senador na berlinda tem como personagem o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega. Em junho de 2005, Flávio concedeu a Magalhães a medalha Tiradentes, a mais alta condecoração da Assembleia Legislativa do Rio. Quando da homenagem, Nóbrega estava preso, acusado de homicídio. A mulher e a mãe do ex-capitão estiveram empregadas no gabinete de Flávio até novembro de 2018. No mês passado, o mesmo Magalhães foi o alvo principal de uma operação deflagrada para prender milicianos que controlam a região de Rio das Pedras, na Zona Oeste carioca. Acusado de ser o chefe da milícia local, ele está até hoje foragido. Adriano Magalhães foi expulso da PM no começo de 2014 sob acusação de envolvimento com a máfia dos jogos. Àquela altura, na tentativa de convencer os oficiais que julgavam a sua expulsão, apresentou a condecoração que recebera na Alerj por recomendação de Flávio Bolsonaro. Não colou.

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