Geraldo Magela/Agência SenadoA urna usada na eleição: 81 senadores, 82 votos

Farra no Senado

De apartamentos funcionais cedidos irregularmente a gastos ilegais com cartões corporativos, uma elite de funcionários do Congresso se esbalda nas benesses do poder graças aos padrinhos poderosos
22.02.19

“O Senado brasileiro é como o céu. Com uma vantagem: não é preciso morrer para estar dentro dele.” A frase foi imortalizada pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que ocupou uma das 81 cadeiras do plenário azul do Congresso Nacional entre 1991 e 1997. Darcy Ribeiro referia-se às muitas mordomias que os senadores tinham (e continuam tendo), que vão desde um plano de saúde caríssimo e vitalício bancado pelo contribuinte até os amplos gabinetes repletos de funcionários para servi-los. As excelências, porém, não gozam sozinhas das gostosuras do paraíso. Há ali outra casta que, graças à relação de compadrio construída com o grupo político do MDB que comandou a casa quase sem interrupções nas últimas duas décadas, também se beneficia de vantagens incomuns aos cidadãos pagadores de impostos.

Esse grupo seleto de servidores se reveza em posições de comando na estrutura da casa. Integra uma categoria especial de servidores públicos. É, por assim dizer, a elite da elite da burocracia brasiliense. Com salários próximos aos dos próprios senadores, esses altos funcionários acabam usando a proximidade que têm com o poder para traçar planos ousados de ascensão na carreira. Dessa casta já saiu ministro de tribunal, por exemplo. Também já saiu servidor que acabou por entrar, com sucesso, para a política. O milagre se dá, quase sempre, por um motivo simples: eles dependem dos senadores, mas antes de tudo os senadores dependem deles no dia a dia. Seja para interesses comezinhos, seja para dar vazão às conveniências políticas de momento das excelências.

É justamente nos favores prestados aos chefes nas coisas que dependem da boa vontade da burocracia que está o segredo do sucesso. E as vantagens advindas dessa relação reproduzem, em boa medida, os abusos praticados pelos próprios políticos. De apartamentos funcionais cedidos irregularmente a gastos ilegais com cartões corporativos, há de tudo um pouco. Um caso recém-descoberto, e a cujos registros Crusoé teve acesso, revela a existência de uma espécie de ato secreto que deu a um dos mais destacados burocratas dessa estrutura o direito de usufruir de um apartamento funcional que, em condições normais, segundo os próprios auditores, só poderia ser utilizado por um dos senadores.

O beneficiário do tal ato é o atual secretário-geral da mesa diretora do Senado, Luiz Fernando Bandeira de Mello. Já há algum tempo, ele é o maior expoente dessa elite de servidores da casa. Próximo de Renan Calheiros, Bandeira é tratado nos corredores do Senado como uma espécie de 82° senador. Ganhou a simpatia e a confiança de Renan e da cúpula emedebista graças aos serviços prestados como responsável por orientar os trabalhos de quem comanda as sessões – sempre postado ao lado da cadeira de presidente, é o encarregado de administrar o desenrolar das reuniões, de dirimir dúvidas regimentais e de resolver impasses que, por vezes, parecem insolúveis em meio às quedas de braço do plenário.

Jonas Pereira/Agência SenadoJonas Pereira/Agência SenadoRenan: ele não ganhou a disputa com Alcolumbre, mas mantém tentáculos fortes na burocracia do Senado
Não por acaso, quando Renan era presidente do Senado, em 2016, ele chegou a ser cogitado para assumir a embaixada do Brasil na Bélgica. Iria por indicação política, evidentemente. Hoje, por obra e graça de seus padrinhos do MDB,  acumula a função de secretário-geral da mesa com a de representante do Congresso no CNMP, o Conselho Nacional do Ministério Público, onde costuma ser rigoroso com promotores e procuradores que causam embaraços a políticos. Em um exemplo vistoso de como seu papel é relevante, na eleição para a presidência do Senado, no início do mês, Davi Alcolumbre teve de afastá-lo do posto de secretário da mesa para evitar obstáculos a sua estratégia de presidir a sessão e garantir que a votação não se desse por voto eletrônico e secreto. Tão logo o renanzista José Maranhão assumiu a cadeira para conduzir a polêmica votação, Bandeira foi devolvido ao posto, onde permanece até hoje.

O ato que concedeu o apartamento funcional a Bandeira é ilustrativo de seu poder. Desde 2017 ele ocupa o imóvel de 260 metros quadrados localizado na Asa Sul, zona nobre de Brasília. O ato que permitiu que o apartamento fosse usado por ele não foi publicado, como é praxe ocorrer com a grande maioria dos expedientes do Senado. O caso foi objeto de duas auditorias internas a cujos relatórios Crusoé teve acesso. Neles está o histórico do favor. O apartamento funcional foi cedido a Bandeira pelo então presidente do Senado Eunício de Oliveira, também do MDB e aliado de Renan, em abril de 2017. A irregularidade, segundo a auditoria, era patente: um ato de 2013 proibia que apartamentos funcionais fossem cedidos a quem não fosse senador.

A despeito do impedimento legal, Eunício e Ilana Trombka, até hoje diretora-geral do Senado e outra integrante do grupo de que Bandeira é parte, autorizaram a liberação por meio de um ato administrativo que não foi divulgado. O “empréstimo” previa que o funcionário deveria pagar 3,8 mil reais por mês, mas o valor, de novo segundo a auditoria, não foi pago. Mais um detalhe interessante: o processo de cessão do apartamento foi mantido oculto no sistema eletrônico do Senado. Como a auditoria apontou irregularidades, o trio correu para legalizar a situação. Em outubro de 2018, Eunício editou outro ato para declarar legal a cessão do apartamento.

Há outras marcas das mordomias autoconcedidas pela turma que passou anos com o comando do Senado sob seu absoluto controle. Uma terceira auditoria, a cujo resultado Crusoé também teve acesso, revelou uma verdadeira farra na utilização dos cartões corporativos do Senado. Para se ter ideia, no primeiro ano em que os cartões foram utilizados, o gasto total foi de 20 mil reais. Mas apenas no primeiro semestre do ano passado, chegou a 1,3 milhão de reais. Um salto de mais de 6.000%. E tudo isso gasto por um seleto grupo de 46 funcionários que tinham os cartões a seu dispor – e que deveriam usá-los apenas para gastos de interesse do Senado. O trabalho dos auditores revelou diversas irregularidades, como gastos fora do limite, pagamentos de despesas pessoais e falta de prestação de contas. Uma parte das descobertas chegou a ser revelada pelo portal Metrópoles.

Mateus Bonomi/CrusoéMateus Bonomi/CrusoéAlcolumbre: aconselhado a destronar a casta que domina a burocracia da casa
Bandeira, de novo ele, era um dos portadores dos cartões cujas faturas caíram na malha fina da auditoria. A lista de despesas incluía pagamento de contas em restaurantes caros de Brasília e de outras cidades. Uma delas, de 711 reais, foi paga ao final de um jantar no refinado restaurante Satyricon, em Ipanema, no Rio. Bandeira, um funcionário do Senado, estava na companhia do então governador Luiz Fernando Pezão, hoje preso pela Lava Jato. O encontro se deu em uma sexta-feira à noite. Bandeira estava, segundo ele próprio, em viagem de cunho pessoal na cidade. Na justificativa apresentada aos auditores, o funcionário apresentou sua defesa: disse que “recebeu uma solicitação do presidente do Senado para que explicasse às autoridades fluminenses os passos legislativos” da intervenção federal na cidade.

Um dos cartões auditados, usado por uma assessora de Bandeira, tinha na fatura o pagamento de uma compra em uma loja de produtos alimentícios para atletas – a lista incluía pelo menos um pote de whey protein, alimento proteico que ajuda a desenvolver os músculos. Após a constatação da compra, ele explicou que, por um erro de comunicação, sua assessora usou o cartão funcional para o pagamento. E devolveu, em janeiro deste ano, 4,3 mil reais relativos a esses gastos. De toda sorte, o auditor responsável por realizar as auditorias acabou removido do posto, em despacho assinado por Eunício de Oliveira. O lugar dele passou a ser ocupado por um aliado do próprio Bandeira.

A Crusoé, o secretário-geral do Senado disse que é alvo de perseguição interna no Senado e que, por isso, seu nome foi envolvido nos relatórios de auditoria. Ele afirmou que mora até hoje no apartamento funcional cuja cessão foi objeto de uma das apurações. “Não estamos falando em nenhum momento de eventual infração a lei. A legislação que regulamenta isso eu cumpro de A a Z.” Ele também negou que a não publicação do ato que o beneficiou tenha sido uma maneira de favorecê-lo. “Nunca foi (publicado) nenhum ato de cessão. Nenhum ato, nem os atuais. Isso nunca é publicado.” E por que ele usa um apartamento funcional que, segundo os auditores, deveria ser privativo para senadores? “Qualquer servidor de ministério, coordenador-geral, a partir de DAS 4 no Executivo tem direito a usar funcional. Qualquer um tem. Basta preencher os requisitos legais e eu preencho todos eles”, disse.

Davi Alcolumbre, eleito presidente do Senado há 20 dias, tem sido aconselhado a afastar definitivamente dos postos de comando os servidores ligados a Renan, como o próprio Bandeira e a Ilana Trombka, a diretora-geral. Seria, dizem os aliados, até uma forma de evitar sabotagens a sua gestão. Até o momento, porém, ele vem mantendo tudo como era antes.

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