MarioSabino

Bolsonaro, o pai simbólico

22.02.19

“Todas as famílias felizes são parecidas; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”. A abertura do romance Anna Karenina, de Leon Tolstói, tornou-se um clichê de sites de frases célebres. Trata-se de uma facilitação literária, uma vez que há felicidades diferentes umas das outras e existem infelicidades muito parecidas entre si. Evoco a frase para falar da família de Jair Bolsonaro.

O clã presidencial projeta a imagem de felicidade. Bolsonaro tem cinco filhos de três casamentos e uma enteada.  É felicidade moderna, apesar do discurso conservador. E o vínculo com os seus três filhos mais velhos, Flávio, Eduardo e Carlos, é de uma força talvez invejável a muitos pais. Se fosse vivo, Roberto Civita o invejaria nesse aspecto, certamente, assim como invejava o vínculo de Roberto Marinho e o de Octavio Frias de Oliveira com os seus respectivos filhos. Os herdeiros de Marinho e de Frias continuaram a obra de ambos, ao contrário do que ocorreu no caso de Civita.

Bolsonaro tem nos seus filhos continuadores de uma obra ainda em aberto, se é que haverá obra e não destruição. Há diferenças nessa continuação. O senador Flávio parece tomar certa distância do pai, para estabelecer uma rota paralela, não sei se nas contas bancárias. O deputado Eduardo quer seguir estrada própria, mas em extensão à paterna. Os dois lembram o verso de Goethe, que li em Totem e Tabu, de Freud:  “O que herdaste de teus pais, conquista-o, para que o possuas”. Já Carlos é linha que se sobrepõe exatamente à de Bolsonaro. O risco para o vereador é de ela interromper-se quando a do pai chegar ao fim. No laço com Bolsonaro, cada um dos filhos é feliz à sua maneira.

Penso que, também por ser uma figura forte para os seus próprios filhos, o presidente adquiriu uma imagem paterna para milhões de brasileiros, num fenômeno diverso da demagogia de Getúlio Vargas e Lula, que se venderam como “pais dos pobres”. Bolsonaro, aliás, rejeita esse papel. Ele angariou adesões em todas as classes sociais com propostas que, além de ir ao encontro das urgências do país, atenderiam a uma necessidade de restauração de interdições básicas. Bolsonaro, para milhões de brasileiros, encarnaria assim um pai simbólico.

No Dicionário de Símbolos, um dos meus livros de cabeceira, o pai simbólico foi resumido da seguinte forma : “Símbolo da geração, da possessão, do valor. Nesse sentido, é uma figura inibidora; castradora, em termos psicanalíticos. É uma representação de todas as figuras de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, oprime, esteriliza, mantém na dependência. Ele representa a consciência em face das pulsões instintivas, dos ímpetos espontâneos, da inconsciência; é o mundo da autoridade tradicional diante das novas forças de mudança”. A síntese me faz perguntar se Bolsonaro não seria um pai simbólico até para a esquerda, mas com sinal trocado.

A encarnação de pai simbólico necessário explicaria o sentimento de revolta, externado por uma minoria, contra qualquer avaliação negativa da relação do presidente com seus filhos. A intensidade desse sentimento ultrapassa, a meu ver, o campo ideológico ou das circunstâncias políticas. É como se avaliações negativas dessacralizassem o totem Bolsonaro, infringindo um tabu. É como se ferissem o símbolo. A tese embute um problema. O plano simbólico não pode predominar na política, embora nela tenha parte importante, sob pena de, em busca da felicidade, virarmos uma família infeliz comandada por um pai que devora os filhos.

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