MarioSabino

É preciso gostar de polícia

15.02.19

Tenho um desvio de caráter: gosto de polícia.

Pessoalmente, não tenho motivo para gostar de polícia. Ela sempre falhou comigo em casos graves ou situações comezinhas. A polícia jamais conseguiu prender os assaltantes de que eu e familiares fomos vítimas. Acho mesmo que nem se deu ao trabalho. Policiais tentaram me intimidar como jornalista, a mando de poderosos. Certa vez, um investigador me pediu caixinha para liberar um carro que havia sido encontrado depois de roubado. Alguns policiais recebem afagos dos donos dos bares que perturbam o sossego público no meu bairro. Muitos tocam a sirene sem necessidade, para eu abrir caminho no trânsito. O meu avô anarquista foi perseguido politicamente pela polícia de Getúlio Vargas, em conluio com os fascistas de Mussolini (dou um desconto nesse caso, porque concordo com o que escreveu George Bernard Shaw: “O anarquismo é um jogo em que a polícia pode bater em você”).

No entanto, em que pesem as decepções, insisto em chamar a polícia, não o ladrão. E também em fazer a sua defesa.

Lembro que, no início da minha carreira profissional, na Folha de S. Paulo, fiquei espantado com a reação indignada de colegas do caderno Ilustrada com a prisão de integrantes de uma banda de rock conhecida. Os músicos foram em cana porque escondiam droga pesada. “Ué, a polícia tem razão”, disse a eles. Olharam-me com espanto e ali comecei a perceber que não duraria muito no meu primeiro emprego. Quando houve o massacre no Carandiru, comentei com companheiros de Istoé que os policiais mandados para dentro de um presídio amotinado, sem nenhum preparo para isso, eram também vítimas de um sistema perverso que gosta de ver pobre matando pobre. O episódio todo era injustificável. Gosto tanto de polícia que costumava brincar na redação da Veja que o meu epitáfio seria o seguinte: “Aqui jaz um homem que sempre esteve do lado certo do batalhão de choque”.

No mês passado, fui visitar pela primeira vez o Museu da Polícia, em Paris. É uma espécie de anti-Louvre. Fica numa delegacia, tem apenas trezentos metros quadrados e está sempre às moscas, numa cidade que adora apedrejar policiais, os “flics”. Foi criado em 1909 e mostra a evolução da polícia francesa, desde a sua criação, como instituição, em 1667. Luís XIV incumbiu o ministro Jean-Baptiste Colbert, o posto Ipiranga do Rei Sol, de “encontrar um homem que soubesse cumprir com rigor uma missão resumida em três palavras: nitidez, clareza e segurança”. Nitidez, clareza e segurança podem ser noções muito subjetivas. Numa carta a Joseph Fouché, datada de 1800, Napoleão Bonaparte resumiu: “a arte da polícia é não ver o que é inútil que ela veja”. A missão dada a Colbert 130 anos antes foi cumprida e, no balanço geral, a polícia viu muita coisa que era útil que ela visse. Não só a francesa, evidentemente.

O acervo do Museu da Polícia parisiense é uma preciosidade, mas seria tedioso elencar aqui todos os itens que me impressionaram. Há originais de “lettres de cachet”, por meio das quais se enviava gente para a prisão ao arrepio de processos legais, a lâmina de uma guilhotina e registros sobre a tentativa de homicídio perpetrada por Paul Verlaine contra Arthur Rimbaud, seu amante, episódio que entrou para a história da poesia (fato bem mais prosaico: Verlaine prestou queixa contra um vizinho policial que o ameaçava nas horas vagas). Para quem gosta de séries como CSI, há uma parte dedicada aos primórdios da aplicação da ciência no desvendamento de crimes. Os fãs de espionagem vão deparar com documentos sobre Mata Hari.

Já estava começando a elencar todos os itens que me impressionaram, vou parar. O aspecto mais fascinante foi examinar a história de uma perspectiva que não é a habitual. No Museu da Polícia, a revolta estudantil de maio de 1968 é uma coleção de artefatos que eram usados para atingir os policiais encarregados de conter a desordem. A Revolução Francesa tem como capítulo importante o massacre dos guardas suíços que protegiam Luís XVI, Maria Antonieta e filhos no Palácio das Tulherias, irremediavelmente incendiado por revolucionários em 1871. As jornadas protoesquerdistas de 1848 são abordadas via ações policiais para deter a destruição da Paris que hoje é patrimônio da humanidade. Dentre os mea culpa expostos no anti-Louvre, há a participação das forças de segurança na deportação de judeus para campos de concentração nazistas. Não se é civilizado sem autocrítica.

É bom visitar o lado de lá do batalhão de choque. Não raro, a repressão policial nos defendeu de nós mesmos, como um superego de distintivo ou uniforme. Saí do museu parisiense gostando ainda mais de polícia e convicto de que a sua demonização permanente — operação ideológica concomitante à romantização ideológica do crime — é que fertiliza o cometimento de arbitrariedades, a incompetência investigatória, o surgimento de esquadrões da morte e a formação de milícias. Aqui, na França ou em qualquer latitude.

É preciso gostar de polícia, apesar da polícia, para ter uma boa polícia. Gostar de polícia não pode ser um desvio de caráter. Cuidemos dela para que ela cuide de nós.

 

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