MarioSabino

Napoléon e as máquinas de amar

08.02.19

Napoléon é o nome do meu cachorro. É um york, hoje com quatro anos. Quando o comprei, descobri que cachorros são como carros – um lulu da Pomerânia é um Porsche; um york é um Hyundai. Adquiri o Hyundai a pedidos insistentes da minha mulher, recém-chegada ao Brasil e então sem amigos e trabalho por aqui. Ela precisava de companhia. Quatro anos depois, minha mulher, sem amigos e trabalho por aqui, voltou a viver a maior parte do tempo em Paris, a sua cidade natal. Sobrei com Napoléon. Ele não se aclimata ao antro da esquerda caviar.

Eu jamais havia cogitado ter um cachorro ou qualquer outro animal de estimação. (Daí o meu desconhecimento sobre o status social que os cachorros podem conferir, a depender da raça.) Nem plantas tenho em casa, porque não quero me dar ao trabalho de regá-las. Assim sendo, não aprendi muito bem como me comportar com Napoléon. Não importa. Ele me ama. Constatei que o francês Michel Houellebecq, um dos meus escritores preferidos, estava certo quando escreveu: “O que é um cachorro, senão um máquina de amar? É apresentado a um ser humano, dando-lhe a missão de amá-lo – e, por mais feio, perverso, deformado ou estúpido que seja, o cachorro o ama. Essa característica era tão surpreendente e tão impressionante para os antigos que a maioria – todos os testemunhos concordam – passou a amar o cachorro em troca. O cachorro era, portanto, uma máquina de amar para efeito de treinamento – cuja eficácia, no entanto, restava limitada a outros cães e nunca se estendia a outros homens”. Amar cachorros nos ensina a amar cachorros, assim como o xadrez é um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez, na memorável definição de Millôr Fernandes.

Napoléon não me ensinou a amar outros cachorros. Nem mesmo sei se amo realmente Napoléon. Neste exato instante, por exemplo, tenho de interromper estas linhas para impedir que ele continue roendo minhas meias…

… Pronto, meias salvas. Ele agora está amuado, no quartinho. Como ia dizendo, nem mesmo sei se amo realmente Napoléon. Mas tento recompensá-lo pelo amor incondicional que sente por mim. Por exemplo, colocando-o para assistir à DogTV. É um canal de TV que surgiu de repente no meu pacote de assinatura. Se você pesquisar na internet, será informado de que se trata da “primeira rede de televisão feita especificamente para cães. A programação, criada com a ajuda de especialistas em comportamento de cães, é ajustada em cores para atrair cães e possui segmentos de 3-6 minutos projetados para relaxar, estimular e expor o cão a cenas da vida cotidiana, como campainhas ou andar de carro”.

Para o meu desapontamento, o desprezo de Napoléon pela invenção americana é absoluto. Ele literalmente vira-se de costas para as cores e segmentos destinados a atrair cachorros. O cachorro sou eu. A DogTV me hipnotiza e relaxa. Recomendo como soporífero. Napoléon prefere que eu atire bichos de pelúcia para ele pegar — como se fossem os ratos que os seus antepassados yorks caçavam nas fábricas inglesas, antes de a raça virar xodó das madames do século XIX e um Hyundai da classe média brasileira. Mas atirar bichos de pelúcia me cansa.

Tenho de preencher a existência de Napoléon de outra maneira. Talvez brincando que sou o seu líder totalitário. Ele está pronto a ser liderado por um totalitário. Líderes totalitários querem que cidadãos sejam máquinas de amar. Toda a engenharia social perpetrada por socialismo e nazifascismo foi pensada nesse sentido: criar uma massa acrítica que amasse incondicionalmente os seus líderes. Na então União Soviética, as teorias genéticas malucas do biólogo Trofim Lysenko serviram para embasar cientificamente, por assim dizer, a doutrinação que visava a criar o “novo homem” socialista; na Alemanha hitlerista, foi-se mais longe na seleção da “raça”.

Na verdade, acho impossível ser o líder totalitário de Napoléon. Não sei se o amo, porque rejeito máquinas de amar. E também me recuso a ser uma. Sou como o gato Garfield. Na verdade, o fato de Napoléon continuar a roer as minhas meias é um dado da sua personalidade canina que me aproxima dele. Se Napoléon morrer antes de mim, sentirei saudade não das suas manifestações amorosas, mas das meias roídas por ele.

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