Cristiane Mattos/Futura Press/FolhapressA cena do crime: o número de mortos pode chegar a 300

Vale da morte

Como o modelo tucano de privatização, aliado ao aparelhamento petista dos fundos de pensão, resultou no crime ambiental que chocou o país
01.02.19

“De lama lâmina” é uma instalação de Matthew Barney, mais conhecido fora do circuito da arte contemporânea por seu relacionamento com a cantora islandesa Björk. Dentro de um domo feito de vidro e aço, um trator parece arrancar do solo uma árvore feita de resina. Arte contemporânea se tornou em larga medida um jogo de ler plaquinhas para se entender o que é visto, mas não é necessário recorrer a uma para saber o que Barney representou: a luta entre a preservação da natureza e a necessidade de violá-la em nome das matérias-primas sem as quais nenhuma civilização seria possível. Desde a sexta-feira, 25, a obra de Barney não pode ser mais vista por causa desse embate: “De lama lâmina” fica em Inhotim, o centro cultural de arte contemporânea ao ar livre que até a semana passada era o motivo da fama de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Há uma semana, a cidade ficou tristemente célebre pelo rompimento de uma barragem da Vale que matou um número ainda não determinado de pessoas, destruiu casas, deixou um rastro visível de dejetos e destroços sob uma crosta de lama e levou ao fechamento por tempo indeterminado do centro cultural.

“De novo?”, foi a pergunta feita por todos antes mesmo de ficar clara a extensão do desastre. Afinal, mal haviam se passado três anos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, que destruiu todo o distrito de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas. A Samarco tem como um dos acionistas majoritários a mesma Vale, e o acidente também poluiu o Rio Doce de onde a mineradora tirou seu nome original. A incredulidade com o acidente em Brumadinho não era só pelo rompimento em si. Era por ele repetir um outro que já havia suscitado indignação e — esperava-se — levado à adoção de medidas que garantissem que isso nunca aconteceria. Uma presunção que foi levada pela lama vazada do reservatório I do complexo da Mina Córrego do Feijão da Vale.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéNa entrada da cidade, a pichação acusa: “Vale assassina”
As investigações sobre as causas do acidente ainda estão em curso. Mas a proximidade temporal de Mariana e Brumadinho expôs a face macabra de uma característica da atuação da Vale na economia brasileira: o seu entranhamento nas instâncias políticas, econômicas e regulatórias que deveriam vigiá-la. A empresa está tão entrelaçada com legisladores, administradores e reguladores quanto a árvore de resina está unida ao trator na cúpula geodésica de Barney em Inhotim. Mas nesse caso, em vez de luta, há apoio mútuo — de quem deveria guardar uma prudente distância um do outro. A Vale foi privatizada ainda com o nome de Companhia do Vale do Rio Doce no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, num processo festejado por aqueles que sabiam que não havia outro jeito de a empresa manter a eficiência e de o estado se manter solvente, em meio aos protestos dos contrários de sempre — sindicalistas, partidos e militantes de esquerda.

A aparente polaridade apagou os tons de cinza da venda da companhia: no grupo que arrematou o seu controle acionário, havia uma forte presença dos fundos de pensão das empresas estatais. Poderosos captadores de poupança em um país onde guarda-se pouco dinheiro, os fundos sempre foram e ainda são, apesar de juridicamente independentes, controlados pelo governo federal, que indica seus dirigentes e, portanto, orienta os seus investimentos. A partir de uma operação de descruzamento de participações entre a Vale e a CSN, companhia que liderou o consórcio vencedor do leilão, depois de ela mesma ser privatizada com o apoio também dos fundos, esses fundos — ou seja, o governo federal — aumentaram sua presença no controle acionário. E, ao lado deles, o BNDES, que emprestou 22,5 bilhões de reais à Vale desde 2004, e o braço de participações do banco, o BNDESpar.

Atualmente, os fundos de pensão detêm 20,99% das ações da companhia, e o BNDESpar, 6,68%. No grupo controlador, com direito a voto, a participação é de 10,12% dos fundos, via Litel, e 2,3% do BNDESpar. Por um acordo celebrado em 2017, até o ano que vem o grupo controlador terá de acabar. Mas é preciso muito otimismo para acreditar que isso significará que o estado vai abdicar de seu poder de influência. “A Vale é estatal? É privada? Sei lá”, questiona o ex-diretor do Banco Central e economista Alexandre Schwartsman, conhecido pela clareza e contundência das análises que faz dos problemas brasileiros. Ele reconhece que o fenômeno não existe só no Brasil. Mas é mais forte aqui do que em outros países onde também vigora uma confusão do que é público e do que é privado.

Eduardo Knapp/Folhapress.Eduardo Knapp/Folhapress.Leilão da Vale, em 1997: a companhia continua forte dentro do estado e o estado continua forte na companhia
Da forma como foi feito, o processo de privatização criou um novelo com duas pontas: uma são os fundos de pensão para alavancar a compra de gigantescas companhias e sistemas estatais, apoiando grupos empresariais que fossem considerados os mais interessantes por boas ou más razões. A outra ponta são as agências reguladoras que iriam encarnar o novo papel do estado na economia: não mais como acionista, e sim como ente vigilante independente. Mas como fazer uma fiscalização segura de si mesmo? “Se você é professor, não pode dar a prova e responder às perguntas ao mesmo tempo”, compara Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura e autor do Instituto Millenium. Na visão de Pires, é cedo para afirmar que existe uma conexão automática entre Brumadinho e a participação estatal na Vale. Ele reconhece, porém, que há um problema nesse tipo de relação em que o estado aparece dos dois lados — como proprietário e fiscalizador. “O estado tem de aprimorar o seu papel de fiscalizar”, defende.

O consultor chama a atenção para um outro aspecto do “capitalismo de laços” brasileiro: o modelo sui generis que vigora no Brasil das corporações empresariais. Chamar a Petrobras de estatal é uma inexatidão, argumenta. A empresa é controlada pelo governo, mas tem acionistas privados, que negociam ou não suas participações diariamente no mercado de capitais. Assim como já ficou demonstrado que chamar a empresa a Vale de empresa privada não é totalmente correto. E o que dizer da Embraer, outra empresa que já foi estatal, mas dependeu da chancela governamental em uma novela que se arrasta do governo Temer para o Bolsonaro, para fundir sua divisão de aviões comerciais com a Boeing? Em todas elas, em menor ou maior grau, o governo mantém a sua interferência. E isso pode ser extremamente danoso financeiramente, como se viu no caso da Petrobras e da política desastrada de preços que a ex-presidente petista Dilma Rousseff tentou manter na marra. Também pode levar a sobressaltos que ocorrem apenas porque o governo quer, caso da retirada de Roger Agnelli, até então visto como um executivo bem-sucedido, da presidência da Vale pela gestão PT — que não teve dificuldades em obter a concordância de outros sócios poderosos, como o Bradesco e a japonesa Mitsui. Afinal, em um país onde o governo tem tanto poder, nem o mais poderoso banco vai querer se indispor com um sócio com tantos meios de se tornar um incômodo.

Gustavo Alves/CrusoéGustavo Alves/Crusoé“De lama lâmina”, a instalação de Barney no Inhotim: mensagem profética
Um dos meios de criar dificuldades ou facilidades é pelas agências reguladoras, e a do setor de mineração é vítima fácil do que Schwartsman chama de “captura do órgão regulador”. A expressão é usada para definir o processo em que  as empresas que deveriam se submeter às normas e à vigilância do ente público acabam ocupando-o de acordo com os seus interesses. E a Agência Nacional de Mineração é um alvo perfeito para sofrer este processo por uma das maiores mineradoras do mundo: como ser um expert na atividade, no Brasil, sem nunca ter trabalhado, mesmo que prestando serviços, ou mesmo sem ter estudado em alguma instituição acadêmica que de alguma forma a Vale não estivesse presente? E como não evitar um relacionamento amistoso entre vigilantes e vigiados que prejudique o público afetado pela atividade a ser supervisionada, como consumidor ou simplesmente por estar no meio do caminho quando algo dá errado, caso dos moradores da Vila do Feijão, em Brumadinho? É um alto risco, mas não é um destino inevitável, lembra o economista: ele evoca o Banco Central como um exemplo de órgão que vai ao mercado financeiro em busca de quadros, mas nunca deixou de exercer seu papel de vigiar de perto o sistema financeiro. “O Banco Central não dá moleza”, afirma.

Um provável incentivo para o Banco Central se comportar bem é a agência bancária da esquina: mesmo com a concentração do setor no Brasil, bancos são entidades presentes no dia-a-dia da maioria dos brasileiros, e seu bom ou mau funcionamento é vigiado de maneira instintiva por quem entra nele para pegar dinheiro, pagar contas, contrair um empréstimo, e sai ou não satisfeito. O mesmo não se pode dizer da mineração, atividade de onde se extrai a matéria-prima que é usada tanto nas carrocerias de automóveis quanto na composição dos shampoos — mas que ninguém que está de fora acompanha. O distanciamento da atividade a ser fiscalizada abre espaço para um outro risco em relação às agências regulatórias: seu aparelhamento pelo grupo que está no poder, como o PT fez em larga medida nos mandatos de Lula e Dilma.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéHelicóptero carrega mais um corpo: o horror virou parte da paisagem
O aparelhamento abre outra avenida de risco: a corrupção para favorecer irregularidades. Na mesma segunda-feira em que militares israelenses chegaram para auxiliar as buscas dos bombeiros em Brumadinho, a Polícia Federal realizou na Bahia a operação “Terra de Ninguém”, em que três ex-gerentes e mais três servidores da Agência Nacional de Mineração eram acusados de cobrar propina para a liberação de atividades minerárias irregulares no estado. O valor máximo que seria pedido, de 10 mil reais por liberação, choca menos do que o mínimo: as investigações apontaram que por 500 reais também era possível a obtenção de uma autorização. Por 500 reais, servidores da agência autorizavam uma agressão ao meio ambiente que poderia colocar em risco vidas humanas.

No caso da Vale, não se fala em corrupção. Mas a decisão anunciada pela companhia de acabar de vez com as reservas que, como a de Brumadinho, já estavam desativadas mas permanecem guardando rejeitos, e por isso representam risco de novas tragédias), leva à pergunta de por que isso não foi feito antes, talvez na esteira da catástrofe de Mariana. Isso não significa afastar definitivamente a ameaça de repetição: das cerca de 50 barragens do país que apresentam risco de rompimento, três são consideradas especialmente perigosas por especialistas bem informados em Brasília. Elas estão nos municípios de Paracatu, Sabará e Congonhas, todos em Minas Gerais. Na tragédia de Brumadinho, a Vale protagonizou a maior monstruosidade  da história trabalhista do Brasil, e teve a maior perda de valor em um dia só da história do mercado brasileiro: 71 bilhões de reais na segunda-feira, 28.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEm Brumadinho, o enterro de uma das vítimas da lama
O lento trabalho de resgate entrará pelos próximos dias, sob as lentes das câmeras que transmitem ao vivo as imagens de helicópteros içando sacos com corpos e de grandes caminhões frigoríficos estacionados ao lado da tenda transformada em IML. Há mais cenas dramáticas: bombeiros se movendo de joelhos sobre uma fina crosta de lama para não serem também engolfados pelo material movediço que pode ter matado centenas de pessoas, os enterros de moradores de Brumadinho, velhos e jovens, a luta para se localizar os ônibus que levavam empregados da empresa e o refeitório da companhia ainda cheio no início da tarde, quando a barreira se rompeu. A consternação deve permanecer e, para alguns, até aumentar, porque a partir de agora os bombeiros vão se dedicar a escavar os lugares mais profundos com a expectativa de nem retirar corpos inteiros, mas pedaços deles, arrancados pela violência da enxurrada de dejetos. Haverá quem nunca conseguirá enterrar seus parentes, conforme já avisam as equipes de busca.

O fato de uma tragédia se repetir mostra que, com o tempo, o peso econômico da mineração, com os empregos diretos e indiretos que cria, as relações que constrói com a comunidade e políticos locais, tende a atenuar a revolta e a busca por compensações. Em Mariana, já houve mais de uma manifestação para que a Samarco voltasse a operar na cidade, mesmo sem licença, tamanha é a dependência do município em relação à atividade mineradora. Deliberadamente ou não, uma série de pequenos e grandes interesses se uniram para que se permitisse à Vale trabalhar sem ser muito molestada pelos efeitos da escavação da terra, mesmo depois de Mariana. Mas talvez ao governo de Jair Bolsonaro não seja possível tal leniência, e ele deu mostras simbólicas de que entende isso ao ir a Brumadinho no dia seguinte ao acidente (Dilma sobrevoou Mariana sete dias após o rompimento da barragem). Nestes tempos em que se promete acabar com a impunidade, a irresponsabilidade dos que deixaram uma tragédia como essa acontecer não pode jamais ser desconsiderada. E que não se esqueça que o processo de privatização tucana, aliado ao aparelhamento petista, contribuiu muito para os mares de lama, reais e figurados, que tomaram conta do país nos últimos vinte anos. Privatizar  é imprescindível, mas com o estado totalmente do outro lado do balcão.

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