Vale da morte
“De lama lâmina” é uma instalação de Matthew Barney, mais conhecido fora do circuito da arte contemporânea por seu relacionamento com a cantora islandesa Björk. Dentro de um domo feito de vidro e aço, um trator parece arrancar do solo uma árvore feita de resina. Arte contemporânea se tornou em larga medida um jogo de ler plaquinhas para se entender o que é visto, mas não é necessário recorrer a uma para saber o que Barney representou: a luta entre a preservação da natureza e a necessidade de violá-la em nome das matérias-primas sem as quais nenhuma civilização seria possível. Desde a sexta-feira, 25, a obra de Barney não pode ser mais vista por causa desse embate: “De lama lâmina” fica em Inhotim, o centro cultural de arte contemporânea ao ar livre que até a semana passada era o motivo da fama de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Há uma semana, a cidade ficou tristemente célebre pelo rompimento de uma barragem da Vale que matou um número ainda não determinado de pessoas, destruiu casas, deixou um rastro visível de dejetos e destroços sob uma crosta de lama e levou ao fechamento por tempo indeterminado do centro cultural.
“De novo?”, foi a pergunta feita por todos antes mesmo de ficar clara a extensão do desastre. Afinal, mal haviam se passado três anos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, que destruiu todo o distrito de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas. A Samarco tem como um dos acionistas majoritários a mesma Vale, e o acidente também poluiu o Rio Doce de onde a mineradora tirou seu nome original. A incredulidade com o acidente em Brumadinho não era só pelo rompimento em si. Era por ele repetir um outro que já havia suscitado indignação e — esperava-se — levado à adoção de medidas que garantissem que isso nunca aconteceria. Uma presunção que foi levada pela lama vazada do reservatório I do complexo da Mina Córrego do Feijão da Vale.
A aparente polaridade apagou os tons de cinza da venda da companhia: no grupo que arrematou o seu controle acionário, havia uma forte presença dos fundos de pensão das empresas estatais. Poderosos captadores de poupança em um país onde guarda-se pouco dinheiro, os fundos sempre foram e ainda são, apesar de juridicamente independentes, controlados pelo governo federal, que indica seus dirigentes e, portanto, orienta os seus investimentos. A partir de uma operação de descruzamento de participações entre a Vale e a CSN, companhia que liderou o consórcio vencedor do leilão, depois de ela mesma ser privatizada com o apoio também dos fundos, esses fundos — ou seja, o governo federal — aumentaram sua presença no controle acionário. E, ao lado deles, o BNDES, que emprestou 22,5 bilhões de reais à Vale desde 2004, e o braço de participações do banco, o BNDESpar.
Atualmente, os fundos de pensão detêm 20,99% das ações da companhia, e o BNDESpar, 6,68%. No grupo controlador, com direito a voto, a participação é de 10,12% dos fundos, via Litel, e 2,3% do BNDESpar. Por um acordo celebrado em 2017, até o ano que vem o grupo controlador terá de acabar. Mas é preciso muito otimismo para acreditar que isso significará que o estado vai abdicar de seu poder de influência. “A Vale é estatal? É privada? Sei lá”, questiona o ex-diretor do Banco Central e economista Alexandre Schwartsman, conhecido pela clareza e contundência das análises que faz dos problemas brasileiros. Ele reconhece que o fenômeno não existe só no Brasil. Mas é mais forte aqui do que em outros países onde também vigora uma confusão do que é público e do que é privado.
O consultor chama a atenção para um outro aspecto do “capitalismo de laços” brasileiro: o modelo sui generis que vigora no Brasil das corporações empresariais. Chamar a Petrobras de estatal é uma inexatidão, argumenta. A empresa é controlada pelo governo, mas tem acionistas privados, que negociam ou não suas participações diariamente no mercado de capitais. Assim como já ficou demonstrado que chamar a empresa a Vale de empresa privada não é totalmente correto. E o que dizer da Embraer, outra empresa que já foi estatal, mas dependeu da chancela governamental em uma novela que se arrasta do governo Temer para o Bolsonaro, para fundir sua divisão de aviões comerciais com a Boeing? Em todas elas, em menor ou maior grau, o governo mantém a sua interferência. E isso pode ser extremamente danoso financeiramente, como se viu no caso da Petrobras e da política desastrada de preços que a ex-presidente petista Dilma Rousseff tentou manter na marra. Também pode levar a sobressaltos que ocorrem apenas porque o governo quer, caso da retirada de Roger Agnelli, até então visto como um executivo bem-sucedido, da presidência da Vale pela gestão PT — que não teve dificuldades em obter a concordância de outros sócios poderosos, como o Bradesco e a japonesa Mitsui. Afinal, em um país onde o governo tem tanto poder, nem o mais poderoso banco vai querer se indispor com um sócio com tantos meios de se tornar um incômodo.
Um provável incentivo para o Banco Central se comportar bem é a agência bancária da esquina: mesmo com a concentração do setor no Brasil, bancos são entidades presentes no dia-a-dia da maioria dos brasileiros, e seu bom ou mau funcionamento é vigiado de maneira instintiva por quem entra nele para pegar dinheiro, pagar contas, contrair um empréstimo, e sai ou não satisfeito. O mesmo não se pode dizer da mineração, atividade de onde se extrai a matéria-prima que é usada tanto nas carrocerias de automóveis quanto na composição dos shampoos — mas que ninguém que está de fora acompanha. O distanciamento da atividade a ser fiscalizada abre espaço para um outro risco em relação às agências regulatórias: seu aparelhamento pelo grupo que está no poder, como o PT fez em larga medida nos mandatos de Lula e Dilma.
No caso da Vale, não se fala em corrupção. Mas a decisão anunciada pela companhia de acabar de vez com as reservas que, como a de Brumadinho, já estavam desativadas mas permanecem guardando rejeitos, e por isso representam risco de novas tragédias), leva à pergunta de por que isso não foi feito antes, talvez na esteira da catástrofe de Mariana. Isso não significa afastar definitivamente a ameaça de repetição: das cerca de 50 barragens do país que apresentam risco de rompimento, três são consideradas especialmente perigosas por especialistas bem informados em Brasília. Elas estão nos municípios de Paracatu, Sabará e Congonhas, todos em Minas Gerais. Na tragédia de Brumadinho, a Vale protagonizou a maior monstruosidade da história trabalhista do Brasil, e teve a maior perda de valor em um dia só da história do mercado brasileiro: 71 bilhões de reais na segunda-feira, 28.
O fato de uma tragédia se repetir mostra que, com o tempo, o peso econômico da mineração, com os empregos diretos e indiretos que cria, as relações que constrói com a comunidade e políticos locais, tende a atenuar a revolta e a busca por compensações. Em Mariana, já houve mais de uma manifestação para que a Samarco voltasse a operar na cidade, mesmo sem licença, tamanha é a dependência do município em relação à atividade mineradora. Deliberadamente ou não, uma série de pequenos e grandes interesses se uniram para que se permitisse à Vale trabalhar sem ser muito molestada pelos efeitos da escavação da terra, mesmo depois de Mariana. Mas talvez ao governo de Jair Bolsonaro não seja possível tal leniência, e ele deu mostras simbólicas de que entende isso ao ir a Brumadinho no dia seguinte ao acidente (Dilma sobrevoou Mariana sete dias após o rompimento da barragem). Nestes tempos em que se promete acabar com a impunidade, a irresponsabilidade dos que deixaram uma tragédia como essa acontecer não pode jamais ser desconsiderada. E que não se esqueça que o processo de privatização tucana, aliado ao aparelhamento petista, contribuiu muito para os mares de lama, reais e figurados, que tomaram conta do país nos últimos vinte anos. Privatizar é imprescindível, mas com o estado totalmente do outro lado do balcão.
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