Bolsonaro, agachado à direita, nos tempos de quartel: elogios e, depois, críticas pesadas (Reprodução)

A ficha do capitão que foi de herói a suspeito

Arquivos do Exército registram dois perfis diferentes do presidenciável nos tempos de quartel. No primeiro, ele é disciplinado, inteligente e trabalhador. No segundo, megalomaníaco, agressivo e ávido por dinheiro
25.05.18

Desgraçadamente, o soldado Celso não completou a pista de obstáculos no treinamento militar na Zona Oeste do Rio. Ele havia acabado de cair na lagoa do Campo de Instrução de Gericinó depois de escorregar de uma corda. Estava se afogando. Ato contínuo, um aspirante se lançou na água e conseguiu salvá-lo. O salvador da pátria naquele dia de 1978 era altamente benquisto na caserna. Da ficha pessoal até então imaculada no arquivo do Ministério do Exército, constava que ele “enchia de orgulho os superiores”, gozava de “inteireza moral” e dispunha de virtudes capazes de alçar a força terrestre à “glória”. Eram tempos de regime militar. Não demoraria para que o “herói” desenhado nos registros, Jair Messias Bolsonaro, perdesse a patente de bom moço e passasse a ser observado com rigor pelos seus superiores. Já às portas da política, Bolsonaro logo passaria a ser espreitado por informantes e agentes do serviço de inteligência, então preocupados em esquadrinhar a guinada radical do colega que agora tenta ser presidente do Brasil.

Nos últimos meses, Crusoé mergulhou nos arquivos oficiais que guardam registros da carreira do capitão da reserva do Exército. Os documentos revelam um Bolsonaro polêmico desde os primórdios de sua carreira militar. Os papéis tratam desde a fase em que ele, ainda no quartel, se lançou num movimento em defesa dos direitos dos colegas de farda até o período em que, finalmente, largou a caserna e entrou de vez para a política. Sempre observado, sempre vigiado, sempre metido em confusões. Em 1986, já capitão, ele publicou um artigo na imprensa, sem autorização dos superiores, para reivindicar aumento do soldo. Por isso, ficou preso por 15 dias. No ano seguinte, apareceu publicamente como protagonista de um plano para detonar bombas em unidades militares. Novamente, em protesto contra a propalada defasagem nos rendimentos. Foi alvo de uma investigação interna.

Depois de responder a 50 perguntas em cinco interrogatórios, foi condenado por unanimidade por uma corte interna da força, o Conselho de Justificação. Após o ministro do Exército dar sua anuência ao veredicto, o caso seguiu sigilosamente para o Superior Tribunal Militar (STM). Os ministros, contudo, o absolveram por maioria. Concluíram que não havia provas suficientes para condená-lo. O caso é conhecido. Ao longo do processo, porém, a carreira de Bolsonaro foi virada pelo avesso. Seus prontuários foram examinados à exaustão. Dessa análise emergiram, em dezenas de documentos, muitas curiosidades e relatos pormenorizados que serviram para traçar um perfil do homem que hoje se apresenta como candidato a presidente da República. Jair Messias Bolsonaro, o militar de número 1868-5, é tratado como um sujeito autoritário, megalomaníaco, ególatra e ávido por dinheiro.

Em um dos registros, Bolsonaro aparece como personagem de uma história que, para os padrões da época do Exército, era suficiente para levantar desconfianças sobre sua conduta. Em 1986, ele cortou três paraquedas, dos quais o quartel tinha decidido se desfazer por causa do desgaste do uso, e pediu que o alfaiate que servia à tropa aproveitasse a lona para produzir algumas bolsas. A ideia era vendê-las em seguida, dentro do quartel. Como tudo foi feito à revelia do comando, o episódio virou um problema. Um artigo do estatuto militar já proibia qualquer tipo de comércio. Dentro do quartel, tanto pior. Bolsonaro, instado a se explicar, disse que auferiu “lucro mínimo” com as bolsas. E jogou a responsabilidade maior para o alfaiate. O coronel Carlos Pellegrino, que comandava Bolsonaro à ocasião, observou que o então capitão costumava demonstrar apego a bens materiais e manifestar, no dia a dia, a vontade de ficar rico. Chamado a falar sobre Bolsonaro, o coronel disse que o subordinado costumava repetir “lendas e histórias” sobre “ouro, pedras preciosas e outros valores” na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, onde cresceu. Afirmou ainda que o capitão sempre fazia “relatos fantasiosos de fortunas feitas da noite para o dia”. Eram, para o Exército, sinais de que Bolsonaro tinha a intenção de enriquecer – e isso não era bem visto nos quartéis.

Pellegrino foi mais além. Em um depoimento por escrito prestado quando servia como adido na embaixada brasileira em Bogotá, o coronel afirmou que a “imaturidade” afastava Jair Bolsonaro do perfil daqueles que “pretendem progredir na carreira pelo trabalho e dedicação”. O capitão seguia como alvo. Na mesma época, circulou entre seus superiores uma carta em que um informante, sem se identificar, tecia comentários pouco elogiosos sobre Bolsonaro e sua família e o acusava de contrabandear “muambas paraguaias”. Era uma reação à liderança interna de Bolsonaro no quartel. O denunciante, referindo-se às iniciativas do capitão para cobrar soldos melhores, dizia que ele deveria parar de “denegrir a imagem do EB (Exército Brasileiro)”. Os superiores levaram a carta apócrifa a sério. Mandaram que as informações constantes do documento fossem checadas. E assim se fez.

Jair Bolsonaro ainda continuaria, por um bom tempo, a ser alvo dos arapongas do Exército. Em 22 de março de 1988, campanando o capitão, eles se deram conta de uma festa em sua casa. Bingo! Todos os convidados foram reconhecidos e tiveram seus nomes listados em um documento. Anotaram os observadores: “O motivo provável do evento seria a comemoração do aniversário do nominado, ocorrido na véspera”. Nem na sua festa de 33 anos o “nominado” saiu do radar. Era o ano da primeira campanha eleitoral de Bolsonaro. Os relatórios mencionam que ele se aproveitava da relação com os colegas de farda para pedir votos, numa campanha “intensa” e repleta de “proselitismo político”, a fim de conseguir uma vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Bolsonaro dizia a colegas que gostaria de processar o ministro do Exército, panfletava e pregava adesivos dentro do alojamento militar, em caixas de correio, postes e orelhões. Isso só fazia aumentar a vigilância sobre ele. Um dos documentos juntados à sua ficha registra que ele foi visto em comício pessoal no Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste. “Residindo no conjunto residencial da Esao (Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais), causa repercussão negativa o fato de o nominado trajar camisetas com sua propaganda eleitoral”, diz outra anotação em sua ficha, datada de setembro de 1988.

Alguns anos antes, o retrato de Bolsonaro nos registros internos do Exército era bem outro. “Louvo-o pelo esforço, tenacidade, zelo e dedicação revelados nos treinamentos e na apresentação do Corpo de Cadetes durante o desfile de 7 de setembro, em comemoração ao Dia da Pátria, caracterizados pelo garbo, precisão de movimentos e marcialidade, honrando as tradições mais caras da Academia”, escreveu seu comandante em 1975. “Disciplinado, inteligente, educado e trabalhador”, anotou outro chefe em 1979. O atleta de pentatlo, vôlei, cabo-de-guerra e basquete ostentava “futuro promissor”, diz documento de 1982. Era o retrato da ordem e do progresso. Além de ter socorrido um soldado do afogamento quando era aspirante, naquele episódio do início desta reportagem, Bolsonaro trabalhou por dois dias como mergulhador voluntário ajudando os bombeiros “em condições adversas” durante o resgate de passageiros de um ônibus que caíra em um córrego. Tudo começou a mudar depois que ele passou a agir como um sindicalista de quartel. No relatório do julgamento a que foi submetido pouco mais de uma década depois, Bolsonaro é pintado com outras tintas. O documento diz que ele pensava ter “liderança messiânica”, deixava transparecer certa “megalomania” e ser “imaturo”.

Mesmo depois de deixar o Exército (ele entrou para a reserva remunerada em dezembro de 1988, logo após ser eleito vereador), Bolsonaro permaneceu na mira dos homens da inteligência do Exército. Em 1989, oficiais registraram na ficha pessoal de Bolsonaro que ele vinha alardeando ser vítima de aparelhos de escuta supostamente escondidos em seu apartamento. Mais não dizem. Tentando surfar na eleição presidencial daquele ano, o então vereador distribuiu um papel — cuja cópia foi prontamente anexada à ficha — em que anunciava ter cobrado de todos os presidenciáveis um “compromisso com demandas da classe militar”. Em 1993, já como deputado federal, os agentes o monitoraram em uma viagem a Salvador, onde era “convidado especial” de um evento de militares da reserva e pensionistas. A convocação para a reunião foi parar no prontuário de Bolsonaro. “Vamos reaver o que nos pertence, pois o homem que por qualquer razão não reivindica os seus direitos certamente não será capaz de cumprir com os seus deveres”, dizia o documento. Pronunciamentos do deputado na Câmara exigiam atenção especial do setor de inteligência. Em outro relatório, os agentes assinalam que Bolsonaro registrou, em plenário, que fora impedido de participar de uma reunião com mulheres de militares – e que, na esteira da queixa, responsabilizou o ministro do Exército e o então presidente da República, Fernando Collor de Mello.

Bolsonaro foi monitorado, ainda, em conversas com políticos de esquerda – o que preocupava os militares. Era 1991. Um dos documentos, sob o título “Deputado federal Jair Bolsonaro – contatos com a esquerda”, registra que ele procurou líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) às vésperas do congresso da sigla. Ao então deputado federal Roberto Freire, hoje no PPS, o ex-capitão manifestou “preocupações com relação aos baixos salários dos militares” e queixou-se do “abandono a que a tropa vem sendo submetida pelo presidente da República (Fernando Collor) e (pelos) ministros militares”. Os agentes registraram mais: que Bolsonaro iria procurar outras legendas de esquerda, “como o PT e o PDT”, para que se unissem à causa. O documento registra até o que Roberto Freire teria respondido. “Fica difícil prever-se o que poderá acontecer se levarmos militares descontentes às ruas”, teria dito Freire, acrescentando que a situação poderia “gerar uma pré-revolução” que “fatalmente seria aproveitada pela direita radical”.

Em outro informe, tarjado como confidencial e produzido três meses antes do impeachment de Collor, os militares descreviam uma “mobilização para desestabilizar” o então presidente. Bolsonaro é mencionado como um dos críticos contumazes de Collor. Lá pelas tantas, os analistas do Exército traçam um retrato do quadro político, prevendo que a confusão poderia se agravar: “O Congresso Nacional está desacreditado perante a opinião pública, seus dirigentes acusados de corrupção e os partidos políticos são apontados por empresários e autoridades governamentais como empecilhos ao desenvolvimento da política nacional”. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO