MarioSabino

O homem sem memória

25.01.19

Senhor 13 de Agosto: esse foi o nome dado por autoridades de Marselha ao homem que deu entrada naquela noite do verão de 2017 no centro de acolhimento a moradores de rua. Acometido de uma crise de nervos, foi internado num hospital psiquiátrico. Está lá até hoje.

Ele recebeu o nome de Senhor 13 de Agosto porque nem o próprio sabe como se chama. Não existe qualquer documento que o identifique e ninguém o conhece. Não há nenhum registro de que tenha passado por outro hospital ou agência governamental. Ele não tem ficha policial. Aparentemente, não fala francês. Aliás, não fala nada. Mas não é mudo ou surdo. Os seus traços asiáticos indicam que pode ser filipino. Alguém disse que talvez o vira a bordo de um navio das Filipinas. O embaixador do país despencou de Paris para tentar conversar com ele, acompanhado de um capelão fluente em tagalog, um dialeto. Ao ouvir tagalog, o Senhor 13 de Agosto murmurou algumas palavras em inglês. O embaixador acha que provavelmente ele não é filipino.

Em dezembro último, investigadores entraram no seu quarto, acompanhados de um intérprete em inglês, munidos de bandeiras de nações asiáticas e gravações dos respectivos hinos. Agitaram as bandeiras e tocaram os hinos. Zero. Desdobraram, então, um mapa-múndi. Ele apontou o dedo para o Laos e o Vietnã. Mas até agora nenhum indício foi encontrado de que seja proveniente de um desses países.

Um exame ósseo mostra que o homem sem memória tem cerca de 37 anos. É tudo o que se sabe a seu respeito. Ele passa a maior parte do tempo desenhando como uma criança. Médicos do hospital psiquiátrico ouvidos pelos jornais franceses descartam que o paciente esteja fingindo ter amnésia.“Se está interpretando um papel, então é o melhor ator do mundo”, disse uma médica ao jornal Le Parisien. Caso seja impossível conhecer a sua real identidade, ele deixará de ser o Senhor 13 de Agosto e ganhará um nome oficial, que combinará o do santo do dia em que foi encontrado com o do lugar em que se encontra. O resultado é Hyppolite Toulouse.

Seria um ótimo caso a ser analisado pelo neurologista americano Oliver Sacks. Pena que tenha morrido. Ele relatou o caso do maestro Clive Wearing, que perdeu a memória recente por causa de uma encefalite. Wearing só guardava lembranças por meio minuto. A cada trinta segundos, portanto, Wearing cumprimentava a sua mulher, Deborah, como se a estivesse vendo pela primeira vez. O amor perfeito. Sacks ainda vive por meio da sua obra, mas a tendência é que seja paulatinamente esquecido, até transformar-se em arquivo remoto na internet (pouco tempo atrás, virava-se ficha e tomo empoeirado de biblioteca). Todos seremos esquecidos, dos mais proeminentes aos mais anônimos, sem que se precise contrair encefalite. Você dificilmente sabe o nome dos seus bisavós e é improvável que os seus bisnetos saberão o seu. A História, e o que a ela se agrega nos mais diversos domínios, é uma luta contínua contra essa digestão natural da mente que é o esquecimento — e o revisionismo.

A imagem estomacal foi usada por Friedrich Nietzsche. Para o filósofo alemão, o esquecimento é essencial para a felicidade e a renovação. O super-homem de Nietzsche é um super-esquecido. Não de molhos de chaves, carteiras, óculos ou guarda-chuvas, mas do que lhe pode causar ressentimentos e impedi-lo de viver plenamente o seu próprio presente. A rememoração, para Nietzsche, resulta em fraqueza moral. O filosófo alemão acabou louco e a sua filosofia foi capturada pelo nazismo. Nietzsche imputava aos judeus a gênese dessa “moral dos fracos”.  A tradução italiana do seu“Genealogia da Moral”, a melhor jamais feita, é um tomo empoeirado na minha biblioteca. Eu a li na faculdade, para acompanhar um curso de um professor de esquerda – sim, porque o pensamento de Nietzsche também foi capturado pelos comunas, depois de uma pirueta hermenêutica, numa prova de que a ideologia é o campo mais fértil para o esquecimento. O filosofo alemão facilitou o trabalho por causa dos seus aforismos impenetráveis. Melhor esquecer Nietzsche.

Não há traço de que o Senhor 13 de Agosto tenha tido encefalite ou lido e interpretado Nietzsche de tal modo a esquecer completamente o passado. E, como ele não se expressa, é impossível recorrer a métodos psicanalíticos para saber se o seu esquecimento decorre de um processo traumático inusitado que remeteu a sua própria identidade ao plano do inconsciente. Acompanharei o Senhor 13 de Agosto até que ele venha a ser batizado de Hyppolite Toulouse, destino que parece inelutável. Depois o esquecerei, para continuar colado a esse eterno presente brasileiro e, assim, ajudar a escrever o primeiro rascunho de uma História que se sabe lá como será contada aos nossos bisnetos que não se lembrarão dos nossos nomes – e que provavelmente não se interessarão pelo relato.

O escritor Ivan Lessa, a quem me competiu a triste tarefa de demitir do quadro de colaboradores da Veja, por ele ter sido especialmente agressivo em relação à então direção da revista, disse que, a cada quinze anos, os brasileiros esquecem o que ocorreu nos últimos quinze anos. Sinto informar que esse tempo encolheu ainda mais, como mostram as redes sociais. Estamos como o maestro Clive Wearing, indo na direção do quadro apresentado pelo Senhor 13 de Agosto. Meio minuto atrás, não existia mais tolerância para a corrupção política de qualquer lado, havia se tornado impossível relativizar crimes, o foro privilegiado era uma invenção nefasta e o nepotismo estava enterrado. Agora, numa pirueta relâmpago, virou fofoca esquerdista noticiar que essas práticas continuam, mesmo quando aqueles que noticiam são os que sempre foram contra o PT e adjacências. Assim não dá, Hippolyte Toulouse.

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