ReproduçãoCaracas, 23 de janeiro de 2019: milhares de venezuelanos foram às ruas contra o ditador

O começo do fim

O líder da oposição na Venezuela se autoproclama presidente, ganha apoio do Brasil e de outros países e dá um largo passo para derrubar a ditadura de Nicolás Maduro, amigo do PT
25.01.19

Uma sincronia perfeita, elaborada com esmero ao longo de semanas, desaguou em um momento histórico. Em uma praça no bairro de Chacao, em Caracas, o deputado Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, ungiu-se no meio de uma multidão presidente interino da Venezuela. Foi na quarta-feira. Às 13h44, começo da tarde em Caracas, Guaidó estendeu a mão direita aberta e disse: “Vamos levantar a mão hoje, 23 de janeiro. Na minha função de presidente da Assembleia Nacional e diante de Deus e da Constituição, juro assumir os poderes do Executivo como Presidente da Venezuela, para conseguir a cessação da usurpação, um governo de transição e eleições livres”. Menos de uma hora depois, o secretário de estado americano, Mike Pompeo, tuitou: “Os Estados Unidos reconhecem a corajosa decisão de Juan Guaidó de assumir o papel de presidente interino. Apoiamos os esforços da Assembleia para estabelecer um governo de transição e preparar a Venezuela para eleições livres e justas”. Depois de Pompeo, Donald Trump fez o mesmo, afirmando que “os cidadãos da Venezuela sofreram por muito tempo nas mãos do regime ilegítimo de Maduro”. Logo em seguida, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, de Davos, na Suíça, publicou um tuíte dizendo também reconhecer Guaidó. Nos dois dias seguintes, ao menos vinte países reconheceram a investidura máxima da Venezuela na figura do deputado de 35 anos, que cresceu no movimento estudantil e não passava de um desconhecido até o final do ano passado.

A aprovação internacional de Guaidó foi articulada principalmente no âmbito do Grupo de Lima, formado em 2017 para tentar devolver a democracia para a Venezuela. Guaidó já foi apoiado por Brasil, Estados Unidos, Paraguai, Colômbia, Argentina, Canadá, Chile, Equador, Costa Rica, Peru, Honduras, Guatemala e Panamá. O México, que integra o Grupo de Lima mas é presidido pelo esquerdista López Obrador, não se pronunciou. Outros passaram perto de apoiar, mas se limitaram a criticar Maduro e pedir eleições.

A União Europeia contestou a autoridade do ditador, mas não legitimou Guaidó. O francês Emmanuel Macron escreveu no Twitter que a Europa apoia a restauração da democracia no país. A Alemanha só disse que o Parlamento venezuelano tem um “papel especial” para a garantia da liberdade. A Inglaterra contestou a eleição que deu um segundo mandato a Maduro. E várias nações não aceitaram a posse de Guaidó em meio ao povo. China, Rússia, Irã, Turquia, Cuba, Bolívia e Nicarágua ficaram ao lado de Maduro. Na quinta-feira, os Estados Unidos convocaram uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para discutir o caso, mas é improvável que países como China e Rússia, que integram esse grupo de potências mundiais, aceitem colocar o aliado Maduro contra as cordas.

Ainda assim, a conjunção da ação diplomática com a mobilização interna, com centenas de milhares de pessoas nas ruas da Venezuela, elevou ao máximo a pressão contra o ditador Nicolás Maduro. Ele reagiu, primeiro, afirmando que cancelaria as relações com os Estados Unidos. Pompeo, de Washington, afirmou que as relações seriam mantidas — com Juan Guaidó, o interino. A tréplica veio com Diosdado Cabello, um chavista histórico que já andou às turras com Maduro, mas que se uniu ao ditador para evitar a queda do regime em que os dois se lambuzaram. Cabello ameaçou cortar a água e a luz da embaixada americana, já que as relações formais não existem mais. “O que eles estão cometendo é um absurdo terrível que acabará prejudicando eles próprios”, disse.

É difícil prognosticar como um governo interino de Guaidó funcionaria na prática. Apesar de aceito no exterior e contar com apoio de 80% da população da Venezuela, ele não tem como fazer que uma ordem seja cumprida por algum braço do estado venezuelano. “Ele é um símbolo da oposição e da resistência à ditadura. Tem força moral, mas não comanda a polícia ou as Forças Armadas. Não tem poder de fato”, diz Gunther Rudzit, cientista político e professor da ESPM, em São Paulo.

A menos que haja uma intervenção externa pouco provável até este momento, quem decidirá se a Venezuela começará ou não uma fase de transição não será Guaidó, mas Maduro ou os militares que o acompanham. É o ditador que, apesar do isolamento internacional, tem o poder nas mãos. Em sua posse para o segundo mandato de seis anos, no dia 10 de janeiro, compareceram apenas os ditadores de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e da Nicarágua, Daniel Ortega, além do presidente boliviano Evo Morales. Não enchem uma mesa. Mas Maduro é quem conta com o monopólio da força. O ditador não inovou nos métodos do seu antecessor Hugo Chávez, apenas atiçou ainda mais a repressão, sem nunca dar um passo atrás. Ele segue no mesmo rumo, espalhando o terror entre a população. Só nos dois primeiros dias de protestos da semana passada, dezesseis cidadãos venezuelanos morreram baleados. “O que importa agora é descobrir qual será a próxima resposta do governo. Maduro pode usar a via Bashar Assad, ditador da Síria, que atuou com mais truculência. Ou pode adotar a via do russo Mikhail Gorbachev e perder rapidamente o controle. Essa decisão estará diretamente ligada à maneira como o Exército vai se comportar”, diz Carlos Gustavo Poggio, especialista em relações internacionais e pesquisador da Georgetown University.

AsambleaVEAsambleaVEJuan Guaidó se autoproclama presidente da Venezuela
As forças de segurança, que incluem os militares, os policiais e as milícias, serão, portanto, o fiel da balança. Há 2.000 generais no país, muito mais do que no Brasil, que conta com apenas 300. Eles ocupam funções em áreas que não são militares. Dirigem empresas de alimentos, ocupam autarquias na estatal de petróleo, coordenam operações de logística de portos e comandam a segurança interna. A área de alimentos é uma das prioridades dos generais. Ao decidir quais venezuelanos podem receber comida, eles conseguem amainar os rancores contra o governo. Os militares ainda possuem um banco só para eles, um canal de televisão, uma companhia de transportes e uma empresa agrícola. Além dos favores, a vigilância é rigorosa. Todos os que se rebelaram ou elevaram suas críticas acabaram presos ou tiveram de ir para o exílio.

Estima-se que existiam, até a deflagração da mais recente ofensiva contra Maduro, 150 soldados nos cárceres da Venezuela. A conta subiu para quase 180 na semana passada. Na segunda-feira, 21, um grupo de 27 militares de baixa patente da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) roubou armas em um comando no bairro de Petare, onde fica a maior favela de Caracas, e gravou vídeos em um quartel em Cotiza, no oeste de Caracas. Os rebelados incitaram a população a sair às ruas e disseram que padeciam dos mesmos males. “Vocês queriam que a gente saísse para as ruas? Aqui estamos. Precisamos do apoio de vocês.” Quando uma patrulha do Exército chegou ao local, eles se renderam. Escoltado de dentro de um tanque, um dos rebelados conseguiu levantar a mão e gritar: “Liberdade!”. Por ser um braço armado criado para estar mais próximo da população, a GNB sente mais as penúrias do que as demais forças. A principal delas é a dificuldade para comprar comida. O salário mínimo, equivalente a 2,40 dólares, só é suficiente para levar para casa um quilo de carne. Mas mesmo os altos escalões dos militares, beneficiados com bônus em dinheiro e promoções pelo governo de Maduro, sofrem com a crise.

Nesse ponto, a atitude dos governos internacionais e dos venezuelanos de apoiar Guaidó pode ter consequências. Se os Estados Unidos e outros países apertarem ainda mais a economia, Maduro pode perder o apoio que ainda lhe resta na elite militar. “Com a decisão americana de reconhecer Guaidó, os venezuelanos perderão o controle sobre os ativos nos Estados Unidos e sua capacidade de obter dinheiro para sustentar as finanças do país. Isso poderia retirar o apoio militar, que é o último elo da cadeia que liga Maduro ao Palácio de Miraflores, a sede do Executivo”, diz o cientista político venezuelano José Vicente Carrasquero, professor da Universidade Simón Bolívar.

Atualmente, as finanças venezuelanas vão de mal a pior. Hugo Chávez e, depois, Nicolás Maduro, sucatearam as estatais e expropriaram as empresas privadas. De um país exportador de alimentos, a Venezuela passou a importar boi em pé, em navios. O país tem hoje 576 estatais, quatro vezes mais do que o Brasil. Cerca de 75% delas já sofreram denúncias públicas por algum tipo de desvio. O maior símbolo da ineficiência estatal está na petroleira PDVSA. Antes de Chávez, a estatal produzia 3 milhões de barris de petróleo por dia. Este ano pode baixar para 500 mil barris, o suficiente apenas para o consumo interno. A Venezuela, com isso, deixaria de ser uma exportadora de petróleo, o que arruinaria sua única forma de conseguir divisas para importar bens, alimentos e remédios. Mas a situação é ainda mais trágica porque, por força de contratos, o país precisa continuar mandando barris para a China e para a Rússia, a fim de sanar dívidas acumuladas. E ainda tem que enviar outro tanto para a ditadura cubana. São vendas que não geram um único dólar. O que rende dinheiro é a exportação para os Estados Unidos e para a Índia, mas o Departamento de Estado americano está planejando suspender as compras. Não há como uma situação assim ser sustentável no longo prazo.

ReproduçãoReproduçãoMaduro prometeu resistir e (você já viu isso por aqui) chamou a oposição de golpista
Para honrar compromissos dentro do país, Maduro tem impresso papel moeda sem qualquer limite. Com isso, a inflação este ano pode chegar a impressionantes 12.000.000%. Quando os venezuelanos atravessam a fronteira com a Colômbia com suas notas e tentam comprar algo em bolívares soberanos, não há quem aceite os maços. Os papéis não valem nada. São, assim, obrigados a mendigar ou a trabalhar em serviços braçais ou com prostituição. Nas ruas colombianas, os venezuelanos são facilmente identificados pelos bonés, bandeiras e uniformes esportivos que levam as cores da bandeira venezuelana. As peças que eles ganharam de graça do governo chavista são hoje o que usam para despertar piedade e sobreviver mais um dia. A situação se repete entre os venezuelanos que buscam refúgio no Brasil.

Se a falência econômica levar os militares a retirar o apoio a Maduro (nesta quarta eles declararam apoio ao ditador), então cairá a última peça do dominó da esquerda autoritária na América do Sul. É essa a principal esperança. Não é por acaso que Guaidó tem sido muito cauteloso e estratégico ao se dirigir às Forças Armadas. Após o motim em Cotiza que terminou com 27 presos, ele gravou um vídeo em que pedia ao Exército para defender a Constituição e a família. Não os confrontou. Pelo contrário, os acolheu. E ofereceu um futuro, ao prometer anistia àqueles que abandonassem o ditador. “Não estamos pedindo que deem um golpe de Estado. Não estamos pedindo que disparem. Pedimos que defendam juntamente conosco os direitos que tem nosso povo de ser escutado, de ser feliz e livre.”

Guaidó não está, portanto, esperando que Maduro voluntariamente realize suas próprias vontades. O que ele quer é que Maduro seja tirado de seu lugar, da forma mais pacífica possível. O ditador é tão iracundo quanto as figuras que o rodeiam. Sua chance de mudar de opinião é ínfima. “Maduro não governa com um partido, mas com uma seita. Eles não querem ouvir, vivem em eterno processo de negação”, diz Maristela Basso, professora de direito internacional da USP.

A seita tem seguidores fervorosos fora da Venezuela. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, é um desses que se negam a enxergar a realidade e não mudam de opinião. No dia da autoproclamação de Juan Guaidó, ela declarou: “Vamos ter daqui a pouco os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, de outros países, interferindo na soberania e na autodeterminação dos países? Isso é muito grave. E acho mais grave ainda o governo brasileiro se posicionar favorável porque isso leva a uma intervenção que, para ser realizada, levará à força bruta”. Gleisi é capaz de igualar o reconhecimento de um presidente sem poderes, à frente de uma Assembleia Nacional legitimada pelo voto, a intervenção militar. São coisas diferentes. Outro que esperneou foi Guilherme Boulos, candidato a presidente do Brasil pelo PSOL no ano passado. “Bolsonaro apoia golpe na Venezuela ao reconhecer o deputado Juan Guaidó como presidente. Com isso, a diplomacia brasileira se torna extensão do Departamento de Estado dos Estados Unidos. A crise na Venezuela precisa de solução democrática e pacífica, sem ingerência externa”, escreveu Boulos no Twitter. Presidente interino no Brasil com a ida de Jair Bolsonaro para Davos, o general Hamilton Mourão descartou qualquer aventura maior. “O Brasil não participa de intervenção. Não é da nossa política externa intervir nos assuntos internos dos outros países”, disse Mourão.

Gleisi defende o ditador não só por cegueira ideológica, mas também porque seu partido foi um dos grandes beneficiados pelo autoritarismo na Venezuela. No auge do governo Lula, empresários brasileiros ganharam muito dinheiro exportando alimentos com a destruição da cadeia produtiva local. A Odebrecht e a Andrade Gutierrez financiaram campanhas eleitorais e pagaram propinas para os políticos chavistas, com o objetivo de ganhar licitações de grandes obras, como teleféricos, pontes e linhas do metrô de Caracas. Em parte, o dinheiro dos financiamentos saiu do BNDES. O elo entre as construtoras e o governo venezuelano foi feito por José Dirceu, pelo marqueteiro do PT, João Santana, e por sua mulher, Mônica Moura. Projetos feitos em comum entre os dois países, como a Refinaria de Abreu e Lima, no Pernambuco, tocados pela Petrobras e pela PDVSA, não levaram a lugar algum, com o posterior calote da Venezuela. Os valores iniciais, contudo, foram devidamente embolsados pelos políticos e pelas empreiteiras. O PT faturou alto.

Nem mesmo 3 milhões de refugiados, a maior leva humana desde o fim da II Guerra Mundial, farão com que essa turma de lunáticos, incluindo Maduro, enxergue o que se passa na superfície da Terra. Guaidó não espera converter um ninho reduzido de fanáticos. O que ele quer é tornar realidade a vontade da maioria dos venezuelanos de recuperar a democracia. Os demais países podem dar um empurrão, mas não é dizendo que alguém se torna presidente interino que mágicas acontecem. Não existe a possibilidade, por ora, de intervenção externa, como já se disse. Mas essa pode se tornar uma via mais próxima, caso Maduro aumente ainda mais a repressão. Na quarta-feira passada, Trump voltou a afirmar que todas as opções continuam sobre a mesa. A menos traumática seria se ocorresse a abertura para um diálogo sincero com a oposição que resultasse no fim da ditadura.

Nesta quinta-feira, 24, o ditador disse que aceitaria dialogar com a oposição, com a mediação de México e Uruguai. “O governo do México e do Uruguai propuseram que se crie uma iniciativa internacional para alcançar um tratado de paz. Eu digo publicamente aos governos do México e do Uruguai: estou de acordo com uma iniciativa diplomática para o diálogo nacional na Venezuela, estou pronto para o diálogo, para o entendimento, para a negociação, para o acordo”, disse ele, em discurso aos seus fantoches no Tribunal Supremo de Justiça.

Maduro precisa aceitar que o seu fim começou.

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