RuyGoiaba

Jesus enforcado e o Felipão do Zorra Total

25.01.19

Chegamos a um ponto em que –apesar dos esforços dos meus bravos colegas de O Antagonista e Crusoé e de ótimos repórteres em outros veículos — pessoas preferem acreditar no tiozão do WhatsApp que repassa o boato da mamadeira de piroca a crer na imprensa. É gente que certamente sabe das sacanagens dos governos porque um passarinho contou, e não pela “mídia”.

“Ah, a imprensa é tendenciosa.” Não raro, é. Mas, mesmo quando não é, as pessoas não querem informação – querem se sentir bem, na definição precisa de um brilhante amigo meu. Querem consumir só o que confirme aquilo que elas já pensam, porque, como dizia outra pessoa sábia (minha avó), a verdade não é bonita. E o bonde da dissonância cognitiva segue sem freio, reforçado pelas bolhas (ou câmaras de eco, escolha sua metáfora) de WhatsApp e redes sociais.

Dá até saudade dos erros da imprensa tradicional. Não os sérios (aqueles terríveis de fato, que podem destruir reputações e até vidas), mas os que são motivo de piada – coisas absurdas que, no entanto, foram publicadas, porque o papel aceita tudo. Vi muitos deles em todos esses anos nesta indústria vital.

Por exemplo, a escola de inglês Coronel Lep. Os poços cartesianos (“penso, logo perfuro”, diria Descartes). A peste na Índia transmitida por “filhotes de perdiz” — o primeiro significado que o redator encontrou para “perdigotos” quando foi consultar o dicionário. Ou o grande rei zulu Malcolm 10. Essa merece explicação do contexto: repórter vai a Nova York e manda matéria de turismo citando Malcolm X, ainda pouco conhecido no Brasil (foi anos antes do filme de Spike Lee). Pessoa gênia na redação lê o texto, pensa “hm, nós não usamos algarismos romanos” e bingo: Malcolm X se converte em Malcolm 10. Isso saiu, juro.

Os campeões da modalidade, porém, continuam sendo o grande homem de imprensa que entrevistou o Felipão do Zorra Total achando que fosse o de verdade – e, depois de receber um cartão do sósia com os dizeres SÓSIA, continuou achando que era o Felipão verdadeiro tirando um sarro — e o Jesus enforcado. Repórter vai à Bienal de artes plásticas, vê uma instalação com ternos em forma de cruz chamada “Neo-Gólgota” e – numa daquelas distrações fatais — mete uma explicação didática: “Gólgota é o lugar onde Jesus foi enforcado”.

Neste ponto, é lícito perguntar: por que você quer que a gente confie numa imprensa que publica essas enormidades? E eu respondo: porque a boa imprensa se corrige, por mais vexatório que tenha sido o erro (“diferentemente do que foi publicado no texto X, Jesus não foi enforcado, e sim crucificado”). Fosse um boato de WhatsApp, correríamos o risco de milhares passarem a achar que Jesus foi mesmo enforcado, mas “a mídia escondeu”. Daí para o pessoal fazer o sinal-da-forca ao passar na frente de uma igreja é um pulinho.

Reprodução/MASPReprodução/MASPEsse é o “Cristo Abençoador”, do Ingres, na coleção do Masp. Mas pode
ser também a cara que Jesus fez ao ler que ele foi enforcado: “Aff”.
 

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A GOIABICE DA SEMANA

Jair Bolsonaro cancelou uma coletiva em Davos – alegadamente, por recomendação médica. Depois deu uma entrevista à Record, que certamente também constava da receita médica (“conversar só com a imprensa amiga”). E declarou que no seu discurso na Suíça, em poucos minutos, fez “uma retrospectiva do Brasil do futuro”.

Ou o presidente não conhece a palavra “perspectiva” ou é um grande e insuspeito fã de Renato Russo (“o que aconteceu ainda está por vir e o futuro não é mais como era antigamente”). Que país é este?

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