Antonio Perrinho/DivulgaçãoPara Roberto Romano, o fisiologismo seguirá forte nos próximos anos

A corrupção é um dragão imbatível

Roberto Romano, professor de ética e filosofia, afirma que enquanto Brasília mantiver seus superpoderes o toma lá dá cá e a roubalheira não serão vencidos
18.01.19

Roberto Romano, professor aposentado de ética e filosofia da Unicamp, é personagem onipresente em discussões sobre a corrupção na máquina estatal brasileira. Ao longo das últimas décadas, juntamente com os demais brasileiros, ele viu governos começarem empunhando a barreira da probidade e saírem enxovalhados, manchados pela roubalheira. Foi assim, por exemplo, com Fernando Collor. E foi assim com o PT de Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro ex-presidente da República a conhecer a cadeia. A história recente faz de Romano um pessimista quanto às possibilidades de o Brasil vencer a corrupção. Mesmo depois de serem expostas as vísceras dos multibilionários esquemas de corrupção montados nos últimos anos, ele se mostra descrente. Não acredita que Jair Bolsonaro, eleito prometendo mudar as práticas reinantes em Brasília, vá conseguir grandes resultados nessa seara. “O grande dragão da corrupção não será vencido por um São Jorge. São Jorge não aguenta”, diz. O professor acredita que o grande empecilho está na estrutura de poder do Brasil: a centralização exacerbada, diz, favorece o toma lá dá cá. A seguir, os principais trechos da entrevista de Romano a Crusoé.

Estamos perto do fim do toma lá dá cá, como promete o governo?
Não. Não há como modificar esse modo de operação e de trato do Executivo com o Legislativo, e até mesmo com o Judiciário. Este governo, os governos anteriores, inclusive os de esquerda, mantiveram a estrutura do estado brasileiro. Isso quer dizer que você tem uma supercentralização das políticas públicas, dos impostos e de todas as iniciativas estatais na mão do Executivo. E essas prerrogativas são pagas justamente com esse toma lá dá cá. Como o governo tem essa supercentralização e precisa da autorização formal do Congresso para determinados decretos e iniciativas, e também como precisa da aprovação do sistema de Justiça, sobretudo das altas cortes, você tem sempre essa troca.

O sr. vê chances de esse tipo de prática acabar um dia?
Eu estarei no seio de Abraão e, lá, talvez ficarei 100 anos à espera. Não é um problema de pouco tempo. Temos 500 anos de práticas absolutistas. Herdamos isso, que se reitera cada vez mais. Fui convidado para falar na Câmara sobre aquelas dez medidas de combate à corrupção que o Ministério Público propôs. Me debrucei sobre as medidas, procurando uma que propusesse a modificação dessa estrutura de funcionamento do estado brasileiro. Não tinha uma. Todas as medidas tratavam das consequências, e não das causas. Aliás, quem comandava a comissão era o Onyx Lorenzoni. Mesmo pessoas que têm o desejo de corrigir o sistema corrupto brasileiro, em vez de descerem às causas e proporem mudanças, ficam colocando band-aid em cima do câncer.

Jair Bolsonaro vai conseguir enxugar a máquina pública?
Uma coisa que foi vendida pelo novo governo como maravilhosa é, na verdade, uma piora dessa centralização. Quando se diminui o número de ministérios, sem descentralizar, o que acontece? Concentra mais na mão de determinados ministros e do presidente da República todas as decisões importantes de políticas públicas no Brasil. Essa diminuição dos ministérios não corresponde a uma desburocratização ou democratização do exercício do poder. Pelo contrário. Você vai burocratizar ainda mais o sistema de troca de favores. A única maneira de atenuar essa troca é federalizar de fato o Brasil, dando mais autonomia, inclusive financeira, para municípios e estados, e descentralizar as políticas públicas, retirando-as do controle absoluto do Executivo. O que se vende como moralização, desburocratização é, na verdade, a perpetuação dessa prática nefasta da venda de votos, apoio e até mesmo de absolvição por tribunais superiores.

Divulgação/ UnicampDivulgação/ Unicamp“Ficam colocando band-aid em cima do câncer”
Seria, então, uma missão impossível?
Não é impossível. O problema é que nossa história, enquanto estado independente, é de centralização e de hegemonia do Executivo sobre os demais poderes. Além disso, você teve dois regimes de exceção no século XX que concentraram ainda mais os poderes nas mãos da Presidência da República. Essa história vem já da época da colônia, no sentido de garantir os territórios nacionais. Havia um grande medo no século XVIII e sobretudo no século XIX, a partir da independência, de que os estados brasileiros se tornassem autônomos, independentes em relação aos outros, com a criaçåo de pequenas nações, como Uruguai e Bolívia. O resultado é uma federação que não é uma federação. Para que fosse possível modificar essa forma de agir, seria necessário um movimento nacional e uma Constituição nova, que definisse melhor as prerrogativas dos municípios e estados diante do poder central. Enquanto você não tiver isso, evidentemente vai continuar com essa máquina obsoleta, concentradora, burocrática e ineficaz, que gera corrupção por todos os lados. Quando você diz que o poder Executivo libera verbas para determinadas bancadas ou determinados projetos para conseguir justamente a aprovação de projetos prioritários, isso tem um nome: corrupção. É compra e venda de lei.

Como deveria funcionar uma federação de fato?
Montesquieu, o grande teórico do estado moderno, dizia que em grandes extensões de terra com grandes massas populacionais é muito difícil que você tenha a república, e até mesmo a democracia. O governo que tende a surgir é um governo autoritário, autocrático. E por isso mesmo ele era defensor da federação. Quando você tem uma federação de fato, o poder se espalha, se distribui, em camadas menores de população e território. Quando se tem uma federação, não precisa ter um poder central tão truculento, violento e autoritário. Agora, quando se compara a federação brasileira à federação norte-americana é até covardia, não é? Nos Estados Unidos, embora o poder esteja altamente centralizado em Washington, os estados têm leis penais próprias, uma grande autonomia. É evidente que depois da guerra civil houve um reforço grande do poder Executivo nos Estados Unidos, com medo da secessão. Aqui no Brasil não temos uma federação. Temos leis impostas de alto para baixo e reformas políticas e econômicas que ignoram diversidades regionais, autonomia dos estados e municípios — o que só pode gerar a corrupção. “Brasília locuta, causa finita” (adaptação do ditado romano: “Roma falou, a causa acabou”).

O novo governo tende a ser ainda mais centralizador com a presença de muitos militares em postos importantes?
Não. Isso não é uma lei de ferro. É preciso também seguir um pouco o caminho das instituições. O período positivista, por exemplo, em que houve uma predominância muito grande de militares, com Floriano Peixoto, Benjamin Constant, não foi tão centralizador. Ele herdou um sistema centralizador do Império. Há militares que, devido à estrutura, inclusive mental, de disciplina e obediência, tendem a enfatizar o aspecto centralizador, mas há militares com uma grande percepção democrática. Marechal Rondon não tinha esse enquadramento. As Forças Armadas no período republicano tiveram que se impor ao poder oligárquico brasileiro. Sempre que se fala dos coronéis aqui no Brasil eram os grandes fazendeiros oligarcas que dominavam a política local e tinham sua guarda. Era a Guarda Nacional. Eles boicotaram o quanto puderam a instituição do Exército nacional. Muitas vezes parece que há um desejo excessivo de centralização dos militares, mas na verdade eles ainda estão respondendo a esses grandes oligarcas. O Brasil ainda é o país das oligarquias regionais, infelizmente. Os Sarney, Caiado, Bornhausen. Agora, não resta dúvida de que há um setor entre s generais que guarda ainda essa forma de pensar instituída pelo Estado Novo, do Getúlio Vargas, e depois reiterada pelo período de 1964.

O que é possível fazer para conter o apetite de congressistas por cargos?
Isso não vai mudar. Qualquer presidente da República, e eu digo isso para você com o peito aberto, se quiser conquistar e manter o mínimo de governabilidade, vai precisar do Congresso Nacional e, portanto, desses oligarcas nacionais. Quem faz a mediação sempre? Essas oligarquias. Entra governo, sai governo, entra gente prometendo moralização, e isso não muda. Para que o presidente chegue de fato a uma cidade pequena, de 100 mil habitantes, ele precisa das lideranças regionais, das oligarquias. E no Congresso ele paga o tributo. Enquanto não tivermos uma federalização do estado brasileiro, e uma atenuação desse superpoder da presidência da República, vamos ter um gigante de pés de barro. O presidente da República, na atual estrutura, é um gigante, mas precisa pagar sua permanência no pedestal.

Jefferson Coppola/FolhapressJefferson Coppola/Folhapress“O dragão da corrupção alimenta o funcionamento do estado”
Bolsonaro afirma que todos os ministros foram escolhidos por critérios técnicos, embora uma parte deles tenha filiação a partidos ou seja ligada a grupos fortes, como o do agronegócio. O governo, afinal, está ou não loteado?
Dizer que não houve loteamento é falso, porque havia a expectativa da bancada ruralista, do setor dos bancos, da bancada evangélica. O único elemento que não entra na receita tradicional do estabelecimento de ministérios é a presença bastante forte de militares. Quase todos têm perfil mais técnico do que político. Isso pode ser visto como uma virtude ou não, mas é a novidade. Todo postulante ao poder promete o que pode e o que não pode fazer. Isso aconteceu com governos de direita e de esquerda. Os franceses dizem que aquele que é candidato ao governo diz qualquer coisa.

Sergio Moro conseguirá de fato implantar um plano nacional anticorrupção?
Ele vai ter aquelas pessoas que condenou dizendo que ele tinha alvos políticos. Em segundo lugar, o Ministério da Justiça não tem a força do Executivo na sua totalidade. Longe de ser um ministério jurídico, é um ministério político, coisa para a qual Moro não foi treinado. Ele foi treinado para analisar processos, considerar, julgar e condenar. Agora mesmo ele já está enfrentando problemas, com essa denúncia do Flávio Bolsonaro (o caso do motorista Fabrício Queiroz, que movimentou 1,2 milhão de reais). A figura do grande justiceiro, sob a qual ele angariava tanta popularidade, vai se desgastar, porque não há governo que seja composto por santos. Não existe. Gosto de lembrar de Santo Agostinho, que diz que, retirada a Justiça, todos os estados são grandes quadrilhas, e todas as quadrilhas são pequenos estados. Não existe essa possibilidade de você ter um ministério de santos, uma bancada de santos. Ele vai ter que enfrentar isso. Pessoas que estão vendendo seu apoio para o governo, e esse apoio é essencial, terão que ser defendidas pelo Moro.

Que implicações esse caso traz para o discurso de Bolsonaro?
Esse caso aí é típico. As pessoas estão percebendo, de uma maneira bastante brutal, que aquele mito era mito. Não passava disso. É uma constatação de realidade. Uma coisa é a propaganda de uma fé política. Outra é a realidade da máquina do estado. E quando você tem uma estrutura de poder viciada como essa, evidentemente você vai ter sempre esse tipo de comportamento. É uma maneira de as pessoas deixarem um pouco de sonhar com essa doença brasileira que é a corrupção. A corrupção é uma coisa tremenda, que deve ser combatida. Mas muitas vezes as pessoas, em vez de assumirem de fato programas de combate à corrupção, assumem slogans. E usam determinadas figuras políticas como se fossem grandes salvadores da pátria. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, Lula. Nos primeiros dias do primeiro governo do Lula, ele ao lado do José Dirceu prometia que iria acabar com a corrupção no Brasil. No entanto, o que aconteceu? A estrutura de poder não foi modificada. Eu me lembro quando eu era menino, da musiquinha do Jânio Quadros: “Varre, varre, vassourinha, varre, varre a bandalheira, que o povo já está cansado de tanta roubalheira”. O homem durou sete meses. Depois vieram os militares, disseram que iriam acabar com a corrupção. Não acabaram. Em vez de combater a corrupção de verdade, você cria o grande fantasma da corrupção a ser vencido. O grande dragão da corrupção não será vencido por um São Jorge. São Jorge não aguenta. Depois de um certo tempo, ele está cercado de corrupção, porque a estrutura do estado é viciada. O dragão da corrupção alimenta o funcionamento do estado brasileiro.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO