MarioSabino

Socos de direita e esquerda

11.01.19

O agente da imigração no aeroporto de Marrakech leu a ficha que preenchi ainda no avião e perguntou, com a cara fechada:

“Jornalista?”

“Sim.”

“Jornal ou TV?”

“Site.”

“Escreva.”

Escrevi “site internet”.

“Não, o nome.”

Escrevi “O Antagonista”.

Ele leu em voz alta:

“O-An-ta-go-nis-ta?”

Repeti em voz ainda mais alta:

“Sim, O-An-ta-go-nis-ta.”

Ele começou a batucar o teclado do computador, provavelmente para buscar o site, e deve ter deparado com a foto do careca que estava ali na frente. Devolveu o meu passaporte, não disse nada e eu também não. Entrei no reino de Mohammed VI, considerado descendente direto do Profeta Maomé.

Se eu tivesse escrito “engenheiro” no campo “profissão” da ficha de entrada no Marrocos, o agente de imigração não teria perguntado qual era a empresa para a qual eu trabalhava. Se eu tivesse escrito “médico”, talvez ele até tivesse feito uma rápida consulta (parecia sofrer do fígado). Mas sou jornalista, um sujeito hoje igualmente perigoso no reino de Mohammed VI e nas democracias ocidentais.

Um dia antes, em Paris, o meu bairro havia sido vandalizado pelos coletes amarelos. Ao chegar da casa dos meus sogros, nos arredores da cidade, deparei com um cenário de guerra: o Boulevard Saint-Germain interrompido por barricadas e motos e tampas de bueiros queimadas. Já entrincheirado diante da TV, soube que um jornalista da emissora de notícias BFM havia sido agredido pela turba. Motivo: era jornalista da emissora de notícias BFM. Para compensar o ódio que os coletes amarelos nutrem contra a imprensa, a emissora BFM passou a veicular notícias simpáticas ao movimento. Não deu resultado.

Ninguém ligou muito para a agressão contra o jornalista da BFM, concentrados que estavam nas imagens de um boxista espancando policiais do batalhão de choque na ponte em dois níveis em frente ao Museu D’Orsay. O grandalhão avançou como se estivesse num ringue e, além de socos profissionais, desferiu pontapés num dos policiais caído. Não demoraram a descobrir que o boxista se chamava Christophe Dettinger, um campeão nacional, conhecido como “o cigano de Massy”.

O “cigano de Massy” foi colocado em prisão provisória até o seu julgamento, mas antes de apresentar-se à Justiça se justificou nas redes sociais. Afirmou que perdera a cabeça por causa da violência policial. As imagens mostram o contrário: Dettinger pulando para o nível da ponte onde poucos policiais isolados tentavam defender-se da fúria dos coletes amarelos.

Os coletes amarelos, todos com o poder de compra achatado pelas sucessivas crises, começaram o seu movimento depois que o presidente Emmanuel Macron criou um imposto ecológico sobre o preço dos combustíveis. Macron voltou atrás e agora os coletes amarelos querem que os ricos paguem mais impostos. Macron parece que vai recuar também nesse ponto, embora tenha se elegido com o voto dos ricos que pagam impostos demais. Não adianta: os coletes amarelos, além de continuarem a pedir a cabeça do fracote Macron, passaram a querer a “revolução”. Mais especificamente, a democracia direta. O chofer de táxi que me levou da estação de trem até o Boulevard Saint-Germain vandalizado foi bem direto. Partidário dos coletes amarelos, ele estava disposto a guilhotinar os ricos. Eu respondi que não era bem assim: os ricos são, em geral, empresários que criam empregos, pagam salários dos quais são deduzidos mais impostos e ainda pagam taxas sobre os lucros que obtêm. O chofer de táxi pareceu nunca ter pensado nisso. Mudou de alvo e afirmou que os políticos constituíam uma casta de privilegiados. Concordei. Firmamos a paz. Achei prudente não dizer que era jornalista.

No debate que corria na TV, em torno das cenas de brutalidade da qual o boxista Dettinger se tornou símbolo, jornalistas diziam que os coletes amarelos eram de extrema direita. Pois não havia gente fazendo até a “quenelle”, o gesto antissemita? Alguém sempre lembrava, no entanto, que Jean-Luc Mélenchon, líder da extrema esquerda, apoiava o movimento. E que os jornais esquerdistas também haviam tomado o partido dos coletes amarelos, pintados como coitadinhos do neoliberalismo. Dois dias depois, Matteo Salvini e Luigi di Maio, que comandam o bololô ideológico que está no poder na Itália, declararam apoio ao movimento francês. Picuinha com Macron, que se havia referido a ambos como “lepra” que ameaçava a Europa.

O boxista Dettinger demonstrou ser bom tanto nos socos de direita como de esquerda. É mais do que um símbolo da brutalidade dos coletes amarelos. É um emblema da confusão de ideários que vivemos. Para ajudá-lo a pagar os advogados no processo por agressão aos policiais, cidadãos resolveram fazer uma vaquinha virtual. Foram arrecadados 117 mil euros até o momento em que escrevo. Escândalo: que país se tornou a França, onde cidadãos ajudam o agressor de agentes da ordem? Outra vaquinha virtual foi organizada, mas para ajudar os policiais agredidos, por um integrante do partido de centro-direita que está cada vez mais parecido com o partido de Marine Le Pen, de extrema direita, que está cada vez mais parecido com o de Jean-Luc Mélenchon. A segunda vaquinha já arrecadou 1 mihão e 352 mil euros, boa parte deles doados por socialistas da centro-esquerda. O ultraesquerdista Jean-Luc Mélenchon é favor da vaquinha de Dettinger. A ultradireitista Marine Le Pen, por sua vez, permanece firme no suporte aos coletes amarelos (na companhia dos seus amigos transalpinos Salvini e Di Maio). Ela quer a cabeça de Macron, mas não está contra os policiais. Virou de centro em relação ao episódio. É a guerra das vaquinhas virtuais desgovernadas entre esquerda e direita.

Depois de assistir ao noticiário francês, entrei para ler O Antagonista. Na área de comentários, mais socos de esquerda e direita, versão brasileira. Na da Crusoé, idem. Quem atacava o arraigado fisiologismo petista agora defende o nascente fisiologismo bolsonarista. Quem defendia o arraigado fisiologismo petista agora ataca o nascente fisiologismo bolsonarista. E todo esse pessoal atacando os jornalistas de ambos os sites. Notícia de que não gostam é “fake news” ou “fofoca”. No fundo, estão defendendo a mesma coisa — e a plataforma comum deve aumentar, assim como ocorre na França. Algo me diz que as vaquinhas virtuais poderão ficar desgovernadas entre direita e esquerda também no Brasil.

Prestes a completar 57 anos, concluo que deveria ter estudado de verdade e seguido uma carreira honorável que me escudasse de tantos socos de direita e esquerda — e de ter de socar para todos os lados. Diante da impossibilidade, gostaria de um pouco de descanso antes de voltar ao ringue. Mohammed VI, faça o favor de me jogar numa das suas masmorras por vinte dias. Ninguém vai se importar muito com um jornalista preso e eu teria férias de verdade. Sua Majestade quer um pretexto? Um ministro do TSE invocou a ira do Profeta, para cortar a minha cabeça e as dos meus colegas de O-An-ta-go-nis-ta, durante o julgamento da chapa Dilma-Temer. Ainda dá tempo de a sua polícia secreta me prender. Só vou embora de Marrakech amanhã.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO