Adriano Machado

A corrupção é um crime violento

28.12.18
Luís Roberto Barroso

O texto que se segue sintetiza algumas manifestações feitas em votos no plenário do Supremo Tribunal Federal a propósito do enfrentamento da corrupção no país.

Corrupção estrutural e sistêmica. A corrupção no Brasil não foi produto de falhas individuais ou de pequenas fraquezas humanas. O que nós tivemos foi uma corrupção sistêmica, com um espantoso arco de alianças que incluiu empresas privadas, empresas estatais, empresários, servidores públicos, partidos políticos (de todas as cores), membros do Executivo e do Legislativo. Foram esquemas profissionais de arrecadação e de distribuição de dinheiro público desviado. Como tenho dito, é impossível não sentir vergonha pelo que aconteceu no Brasil.

O pacto oligárquico. Esses esquemas se transformaram no modo natural de se fazer política e de se fazerem negócios no Brasil. A corrupção generalizada, no topo da pirâmide política, foi produto de um pacto oligárquico celebrado por parte da classe política, parte da classe empresarial e parte da burocracia estatal para saque do estado brasileiro e, em última análise, da sociedade e do povo brasileiro. O estado brasileiro é um estado apropriado privadamente. Aliás, como as investigações revelaram, duas empresas tinham o estado brasileiro na sua folha de pagamento. Talvez mais do que duas.

Reação da sociedade. Nos últimos tempos, houve uma expressiva reação da sociedade brasileira, que deixou de aceitar o inaceitável. Aonde se vai no Brasil hoje vê-se uma imensa demanda por integridade, por idealismo e por patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. A reação da sociedade impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência.

Mudanças no Judiciário. O processo do mensalão e a Operação Lava Jato representaram mudanças importantes nos ciclos de impunidade absoluta. No Supremo Tribunal Federal houve decisões importantes, como por exemplo: (i) a mudança de jurisprudência que passou a admitir a prisão após a condenação criminal em segundo grau, sem ter de aguardar o trânsito em julgado, válvula de escape dos corruptos de todo o gênero; (ii) a declaração de inconstitucionalidade do modelo mafioso que tínhamos de financiamento eleitoral por empresas; e (iii) mais recentemente, a restrição drástica do foro por prerrogativa de função, que era um privilégio dado a centenas de autoridades de serem julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, o que era feito com grande ineficiência e frequentemente acabava em prescrição.

Mudanças na legislação. Houve, também, importantes mudanças na legislação envolvendo crimes do colarinho branco, como a nova lei de lavagem de dinheiro, o agravamento das penas de corrupção, a lei da colaboração premiada, uma lei específica anticorrupção e a lei da ficha limpa (que exige que candidatos a cargos públicos não possam ter sofrido condenação criminal nem outras penas graves). Todas essas leis têm opositores radicais. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados porque o atraso é bem defendido.

A reação do pacto oligárquico. Há uma imensa resistência contra essas transformações por parte dos membros do pacto oligárquico. Na verdade, o combate à corrupção no Brasil, que avançou muito, ainda enfrenta três obstáculos poderosos, a saber: (i) parte do pensamento progressista acredita que os fins justificam os meios e que a corrupção não é mais do que uma nota de pé de página na história; (ii) parte do pensamento conservador brasileiro, parte das elites brasileiras, milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é a dos adversários, dos que não servem aos seus interesses; e (iii) os próprios corruptos. E aí há dois grupos: os que não querem ser punidos e um outro lote pior, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.

O paralelo com a Itália. Na Itália, a reação oligárquica da corrupção contra a Operação Mani Pulite (levada a efeito entre 1992 e 1996) teve sucesso. A classe política, para preservar a si e aos corruptos, (i) mudou a legislação para proteger os acusados de corrupção, inclusive para impedir a prisão preventiva; (ii) reduziu os prazos de prescrição; (iii) aliciou uma imprensa pouco independente; e (iv) procurou demonizar o Judiciário. E tudo acabou na ascensão de Silvio Berlusconi. Não foi o combate à corrupção, mas o não saneamento verdadeiro das instituições que impediu que a Itália se livrasse do problema. Não por acaso, por não ter aprimorado suas instituições, a Itália é o país que apresenta o pior desempenho econômico e os mais elevados índices de corrupção entre os países desenvolvidos.

No Brasil pode ser diferente. Tenho fé que isso não acontecerá no Brasil, por pelo menos três razões: (i) sociedade mais consciente e mobilizada; (ii) imprensa livre e plural; e (iii) Judiciário independente (apesar de ainda ser extremamente lento e ineficiente) e, sobretudo nas instâncias ordinárias, sem laços políticos.

A fotografia do momento atual. Um instantâneo do momento atual brasileiro revela a existência de ações penais ou condenações por corrupção envolvendo: (i) o atual presidente da República, dois de seus antecessores e um ex-candidato ao cargo; (ii) dois ex-chefes da Casa Civil; (iii) três ex-presidentes da Câmara dos Deputados; (iv) um ex-presidente do Senado Federal; (v) um ex-secretário de Governo da Presidência da República; e (vi) diversos ex-governadores de Estado. Alguém poderia supor que há uma conspiração geral contra tudo e contra todos. O problema com essa versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas de dinheiro, os apartamentos repletos, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra.

Ninguém pede desculpas. Uma coisa que impressiona no Brasil é que ninguém assume os próprios erros e pede desculpas ao povo brasileiro. Todos alegam que estão sendo vítimas de perseguição política. Ou seja: não houve corrupção nem desvio de dinheiro! Foi tudo uma miragem, uma invenção de procuradores, de juízes e da mídia opressiva. Uma razão para essa atitude, além de uma dose elevada de cinismo, é que as coisas erradas foram naturalizadas de uma tal maneira que as pessoas simplesmente perderam o senso crítico.

Os custos econômicos da corrupção. Não é fácil estimar os custos econômicos da corrupção. Trata-se de um tipo de crime difícil de rastrear, porque subornos e propinas não vêm a público facilmente nem são lançados na contabilidade oficial. Nada obstante, noticiou-se que apenas na Petrobras e demais empresas estatais investigadas na Operação Lava Jato – isto é, em uma única operação – os pagamentos de propinas chegaram a 20 bilhões de reais. No início deste ano, a Petrobras fez acordo de cerca de 3 bilhões de dólares em Nova York, em class action movida por investidores americanos, e de 853 milhões de dólares com o Departamento de Justiça.

Custos sociais e morais da corrupção. Os custos sociais estão na ausência ou deficiência dos serviços públicos e nas decisões tomadas com as motivações erradas, invertendo prioridades. O custo moral está no ambiente geral de desconfiança e de desonestidade que se cria na sociedade, a partir do mau exemplo que vem de cima. Se o estado não é correto, o cidadão também acha que pode ser incorreto.

Não há diferença se o dinheiro vai para o bolso ou para a campanha. Há uma falsa distinção moral que se procura fazer na matéria, levando em conta o destino do dinheiro. Porém, o problema da corrupção não está em para onde o dinheiro vai, mas sim de onde ele vem. E ele vem de uma cultura de propinas, achaques, fraudes e superfaturamentos que gera o excesso de caixa que vai ser distribuído aos partidos e aos políticos.

A corrupção é um crime violento, praticado por gente perigosa. É um equívoco supor que a corrupção não seja um crime violento. Corrupção mata. Mata na fila do SUS, na falta de leitos, na falta de medicamentos. Mata nas estradas que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas, deficiências de estrutura e equipamentos. O fato de o corrupto não ver nos olhos as vítimas que provoca não o torna menos perigoso.

A corrupção é um crime racional, incentivado pela impunidade. A crença de que a corrupção não é um crime grave gerou um ambiente geral de leniência e de impunidade que nos trouxe até aqui, a esse quadro sombrio em que recessão, corrupção e criminalidade elevadíssima nos atrasam na história, nos retêm como um país de renda média, que não consegue furar o cerco.

Consequências da impunidade. As consequências da impunidade são um país no qual (i) altos dirigentes ajustam propinas dentro dos palácios de onde deveriam governar com probidade; (ii) governadores transformam a sede de governo em centros de arrecadação e distribuição de dinheiro desviado; (iii) parlamentares cobram vantagens indevidas para aprovarem desonerações; (iv) membros de comissões parlamentares de inquérito achacam pessoas e empresas para não as submeterem a constrangimentos e humilhações públicas; (v) dirigentes de instituições financeiras públicas cobram para si percentuais dos empréstimos que liberam; (vi) dirigentes de fundos de pensão de empresas estatais fazem investimentos ruinosos para os seus beneficiários em troca de vantagens indevidas.

O combate à corrupção deve ser sério, mas dentro da Constituição e das leis. O enfrentamento à corrupção não precisa de punitivismo ou de vingadores mascarados. Nem Robespierre nem Savonarola. Basta aplicar a lei com seriedade, sem o compadrio tradicional da formação nacional, que acredita que alguns estão fora e acima da lei. Mas é preciso derrotar a crença de que devido processo legal é o que não termina nunca e que garantismo significa que ninguém que ganhe acima de cinco salários mínimos jamais será punido por coisa alguma, não importa o que tenha feito.

O trem já saiu da estação. O Brasil é o 96º colocado no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Somos a quarta maior democracia do mundo, uma das dez maiores economias do mundo e estamos entre os piores em matéria de integridade governamental. Menos de 1% dos presos no sistema penitenciário lá estão por crimes do colarinho branco. São números constrangedores. Porém, a sociedade brasileira já mudou e nada será como antes. Estamos andando na direção certa, ainda que não na velocidade desejada. É trabalho para mais de uma geração. Mas precisa começar em algum momento. A hora é essa. O lugar é aqui.

Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO