Adriano Machado/CrusoéJair Bolsonaro quer usar a posse para já dizer com quem seu governo pretende se relacionar

O beija-mão e o tapa na cara

Trump não vem para a posse de Jair Bolsonaro e não mandará nem seu vice para a festa. Mas, ao desconvidar Venezuela e Cuba, o futuro governo deixa claro que a direção da diplomacia mudou para valer
21.12.18

A presença de chefes de estado e de governo em cerimônias de posse de presidentes brasileiros sempre foi um problema. É uma missão enfadonha, capaz de atrair apenas vizinhos da América Latina, ditadores africanos e alguns europeus perdidos. O dia da festa, 1º de janeiro, é ingrato. Os convidados precisam trocar o réveillon em algum lugar bacana para um beija-mão de pouco mais de meia hora no calor do Planalto Central. Assim que recebe a faixa presidencial, o novo mandatário fica de pé ao lado do vice em cima de um tapete no Palácio do Planalto e começa a receber os cumprimentos, um de cada vez. Uma chatice, portanto, para poderosos com algum destaque na cena global.

A cerimônia que dará posse a Jair Bolsonaro não vai fugir desse script. Dos nove chefes de estado e de governo confirmados até a semana passada, seis eram da América Latina: Chile, Guatemala, Paraguai, Peru, Bolívia e Uruguai. No resto dos casos, serão os embaixadores ou os vice-presidentes que representarão seus países.  No próximo dia 1º, o evento ganhará uma dimensão inédita, mas não exatamente pelo grau de relevância dos convidados confirmados. A tradição deu lugar à política quando o presidente eleito, Jair Bolsonaro, e o futuro chanceler, Ernesto Araújo, publicaram mensagens anunciando que Cuba e Venezuela não serão convidadas. As duas nações foram excluídas da cerimônia oficial. “Naturalmente, regimes que violam as liberdades de seus povos e atuam abertamente contra o futuro governo do Brasil por afinidade ideológica com o grupo derrotado nas eleições não estarão na posse presidencial em 2019. Defendemos e respeitamos verdadeiramente a democracia”, escreveu Bolsonaro no Twitter.

A briga não é nova. Venezuela e Cuba têm sido criticadas por Bolsonaro desde a campanha. De 2003 até 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, esses dois regimes autoritários fortaleceram-se com o apoio dado pelos governos petistas e fecharam negociações desvantajosas que só beneficiaram seus dirigentes, além de construtoras e políticos brasileiros. A aversão a essas negociatas bilionárias obscuras compôs o caldo da última eleição presidencial. Também explica por que a fúria do governo transitório está concentrada nessas duas nações — outras ditaduras, como China, Arábia Saudita e Nicarágua não foram desconvidadas.

Em novembro, a burocracia do Itamaraty já havia enviado os convites protocolares a Havana e Caracas. O órgão seguiu a tradição de mandar cartas para todos os estados com os quais o Brasil mantém relações. Quando Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo se disseram contrários ao convite, o diplomata Paulo Uchôa Ribeiro Filho, que estava organizando o cerimonial da posse, foi demitido da função. O ditador Maduro rapidamente saiu dizendo que não tinha mesmo intenção de viajar a Brasília, apesar de ter comparecido à posse de Dilma Rousseff em 2015. Cada vez mais isolado, o venezuelano tentou passar a ideia de que a iniciativa de faltar ao evento foi dele. Os cubanos não se manifestaram sobre o tema.

Cuba MinRexCuba MinRexO cubano Díaz-Canel e o venezuelano Maduro: desconvidados oficialmente
As relações do Brasil com os dois países certamente irão piorar, mas nada que altere muito o status quo. Cuba e Venezuela não reconheceram o impeachment de Dilma e estão sem embaixadores brasileiros em suas capitais. “Ninguém estava esperando a vinda de Maduro e Díaz-Canel (o sucessor de Raúl Castro) e todos já contavam com um resfriamento ainda maior das relações entre os países”, diz o advogado Dorival Guimarães Pereira Júnior, professor de direito internacional do Ibmec, em Belo Horizonte. Os dois ditadores também sabem muito bem que são fonte de dores de cabeça para o Brasil. “Cuba criou um problema para o governo brasileiro ao retirar-se unilateralmente do Mais Médicos e milhares de venezuelanos continuarão vindo para cá. As relações já estavam precárias e não há muito como melhorá-las”, diz Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM, em São Paulo.

A importância que está sendo dada no Brasil à presença ou não de chefes de estado ou de governo não faria sentido em outros lugares. Os americanos jamais enviam convites especiais para a posse dos seus presidentes. Todas as nações com as quais eles mantêm relações diplomáticas recebem uma carta, mas quem comparece são os embaixadores. “Esse incidente que está acontecendo no Brasil, de natureza tipicamente político-diplomática, seria evitado caso nosso país adotasse a tradição dos Estados Unidos”, diz o embaixador Graça Lima, conselheiro do CEBRI e coordenador do Núcleo de Comércio Internacional, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, o presidente americano raramente viaja ao exterior para participar da posse de outros mandatários pelo mundo. “Eles têm coisas mais importantes para fazer em casa”, diz o historiador americano Warren Cohen, especializado em diplomacia e professor da Universidade de Maryland.

Para Brasília, o presidente americano nem sequer está mandando o seu vice. Na posse do segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2015, quem veio foi Joe Biden, vice de Barack Obama. No dia próximo 1º de janeiro, quem cumprimentará Bolsonaro será o secretário de estado, Mike Pompeo. O Brasil, assim, ganhou menos destaque que o México. Para a inauguração do mandato de Andrés Manuel López Obrador, em 1º de dezembro, Trump mandou à capital mexicana seu vice, Mike Pence, e sua filha, Ivanka Trump.

Sem alterar as relações com a Venezuela e com Cuba e politizando um ato de pouca relevância, o efeito maior da decisão de Bolsonaro e de Araújo será principalmente junto ao público interno. Foram os brasileiros que querem uma mudança de rumo no país os que mais aplaudiram a decisão. Para esses eleitores, a cerimônia de agora terá sabor mais palatável que as últimas. Em 2015, além de Maduro, Dilma abraçou os uruguaios José Mujica e Tabaré Vázquez (como presidente eleito), o boliviano Evo Morales e a chilena Michelle Bachelet. A argentina Cristina Kirchner não veio porque torceu o pé. Era uma época em que a América Latina estava muito mais à esquerda. Os tempos são outros. Da lista de convidados de Dilma, só Vázquez e Morales devem voltar para encontrar Bolsonaro. Como são países pequenos e dependem economicamente do Brasil, eles não têm outra opção. De qualquer forma, o evento não deixará dúvida de que os brasileiros trocaram de direção. Se o beija-mão dos aliados não será como esperado, ao menos o tapa na cara dos inimigos já foi dado.

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