MarioSabino

Menos Lula e mais tango em 2019

21.12.18

Ontem, enquanto eu pensava na melhor forma de desejar um ótimo 2019 aos leitores da Crusoé, Marco Aurélio Mello concedeu aquela liminar indecorosa para tirar Lula da cadeia. E lá fui eu perder ainda mais tempo com o condenado, em O Antagonista, até que esse outro golpe fosse frustrado.

Certa vez, escrevi que o Brasil era interminável. Deve ser a sua sensação também. Tão interminável — e exasperante — que às vezes parece que a única coisa a fazer é tocar um tango argentino, como no poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira.

Pensei no poema de Manuel Bandeira depois das seis horas em que a liminar de Marco Aurélio Mello permaneceu válida, antes de ser suspensa por Dias Toffoli. E resolvi tocar um tango aqui na Crusoé. Um tango composto por mim, há mais de oito anos, quando ainda imaginava me tornar um escritor (medíocre) em tempo integral. Espero que, em 2019, haja menos Lula e mais tango nas nossas vidas. Um tango que, ao contrário do de Manuel Bandeira, seja para festejar boas sequências e um grande recomeço — o do país e o seu.

O meu tango se chama “O que faz de um tango um tango”. Ei-lo:

“O que faz de um tango um tango não são as letras lamuriosas. O que faz de um tango um tango não é o Gardel morto que canta cada vez melhor. O que faz de um tango um tango não são os passos ensaiados na tradição. O que faz de um tango um tango não é a orquestra com o ar cansado de quem tudo já viu. O que faz de um tango um tango não são as pernas altas da dançarina, calçadas em meias pretas. Não é seu cabelo preso ora com flor, ora com fita. O que faz de um tango um tango não é o chapéu antigo do dançarino. Não são os seus sapatos lustrosos. Não é o seu terno de risca-de-giz. Não é o seu lenço dobrado no bolso da lapela. O que faz de um tango um tango não é Buenos Aires. Não é qualquer geografia. O tango não está no mundo das latitudes, das longitudes, das cartografias, dos guias turísticos.

O que faz de um tango um tango é a atração e a repulsa. É a tentação e o medo. É o afeto e a raiva. O que faz de um tango um tango é ela seguindo na mesma direção dele, e ele seguindo na mesma direção dela, até que um tenta fugir e o outro tenta impedir, numa alternância de fugas que se querem e não se querem. O que faz de um tango um tango é a dor de um e de outro transformada em coreografia simétrica. O que faz de um tango um tango é o encontro que se desencontra e se reencontra. O que faz de um tango um tango são os volteios do amor dos poemas clássicos, das canções dos trovadores. Os volteios do amor que bebe no prazer e na fúria. Os volteios do amor que se amorna e logo torna a incandescer. O que faz de um tango um tango é o amor que, na iminência de um final que se prenuncia infeliz, acha o final feliz. Porque nunca em um tango que é tango os dançarinos terminam separados, descolados, deslocados.

O que faz de um tango um tango sou eu dentro de você na carne e você dentro de mim na alma, depois do último acorde, depois do último aplauso, depois da última lágrima, depois do último gozo. O que faz de um tango um tango é a música que se quer silêncio. O silêncio dos amantes.”

Volto na primeira semana do ano que vem.

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