Reprodução

O rachid volta à cena

O caso do ex-motorista de Flávio Bolsonaro lança luz sobre um condenável esquema operado por parlamentares: a caixinha de gabinete, em que eles ficam com uma parte do salário dos funcionários
14.12.18

Em novembro, o Ministério Público Federal realizava mais um desdobramento da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. O objetivo era prender dez deputados estaduais acusados de receber propina. O pedido foi feito em um documento com 303 páginas e 106 anexos, com as mais diversas informações sobre o esquema. Nesse pacote estavam sete páginas de um relatório de inteligência financeira que, com algum retardo, semanas depois, colocaria Jair Bolsonaro no meio de uma crise antes mesmo de tomar posse e deixaria na berlinda o futuro senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente eleito.

No centro do caso está o até então desconhecido Fabrício Queiroz. Policial militar da reserva, ele aparece no relatório como o titular de contas pelas quais passou, entre entradas e saídas, a cifra de 1,2 milhão de reais. A existência do documento que listou as transações atípicas foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo. Começaram, então, os esforços para compreender o que há por trás da movimentação, também objeto de uma apuração do Ministério Público do Rio.

Fabrício Queiroz, o policial, deverá dar as suas explicações nos próximos dias e, ao que tudo indica, sacará da manga um roteiro calculado para eximir o filho de Jair Bolsonaro e o restante do futuro clã presidencial de qualquer responsabilidade. Os elementos colhidos até aqui pelos investigadores apontam, porém, para uma prática conhecida nas sombras das casas legislativas. É o “esquema rachid”, em que funcionários de gabinetes são instados a devolver uma parte do salário que recebem como contrapartida à própria contratação. O dinheiro, na maioria dos casos, é usado para bancar despesas dos titulares dos mandatos.

O caso de Fabrício Queiroz ainda dependerá do desdobramento das investigações, evidentemente, mas por várias razões coloca o policial, há anos ligado à família do presidente eleito, como suspeito de operar o “rachid” no gabinete do deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. O PM, que trabalhava como motorista do deputado, recebeu dinheiro de sete assessores de Flávio Bolsonaro entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Havia sincronia de depósitos em dinheiro vivo em dias próximos dos pagamentos de salários na assembleia. Uma parte significativa dos valores era sacada. E ao menos uma transação tem potencial para gerar ainda mais dor de cabeça para a família presidencial. Da conta de Fabrício Queiroz saíram 24 mil reais que compensaram um cheque destinado à futura primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O relatório foi produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, órgão de inteligência vinculado ao Ministério da Fazenda e que será transferido para o Ministério da Justiça de Sergio Moro. As transações foram listadas a pedido do Ministério Público, que pediu um levantamento geral das operações bancárias dos servidores da Assembleia fluminense. A soma dos valores repassados por meio de transferências bancárias pelos funcionários do gabinete a Fabrício Queiroz chega a 116 mil reais. Além disso, ele recebeu 216 mil em dinheiro vivo. Boa parte dos depósitos, repita-se, em datas próximas ao pagamento de salários dos funcionários. No período, o policial sacou 324 mil em uma agência bancária localizada dentro da Assembleia do Rio.

Flávio Bolsonaro (à esquerda) com o irmão Carlos: aliados dizem que ele ficou abalado com o caso
A suspeita de que as movimentações sejam a ponta de um esquema organizado de coleta irregular de dinheiro reforça a necessidade de Fabrício Queiroz se explicar – e de o Ministério Público ir a fundo no caso. O mesmo relatório que colocou o policial em evidência lista transações também atípicas de 75 assessores de 20 deputados, de partidos como PT, PSC e PSOL. As movimentações listadas pelo Coaf envolvendo esses funcionários chegam a 207 milhões de reais.

O episódio mais recente envolvendo rachid em gabinetes vem da Câmara dos Deputados, em Brasília. O deputado Lúcio Vieira Lima é acusado, juntamente com o irmão, Geddel, de ter acumulado 51 milhões e escondido no notório bunker em Salvador, onde sete malas continham a montanha de dinheiro. Apesar dessa fortuna obtida por meio de corrupção, a Procuradoria-Geral da República descobriu que a dupla não dispensava qualquer oportunidade de arrecadar, o que incluía cobrar até 80% do salário de assessores. A crônica recente é farta em casos similares. No PT, uma prática semelhante – que obviamente não torna menos grave qualquer outro caso, como o que atinge o filho de Bolsonaro – chegou a ser institucionalizada, com funcionários de gabinetes petistas obrigados a destinar parte de seus salários para o partido.

Há outros casos pelo Brasil afora. No Rio Grande do Sul, um deputado foi denunciado em 2015 por funcionários do próprio gabinete, em um esquema estimado em 800 mil reais por ano. A mesma prática ocorreu no Paraná, onde um deputado e outros três servidores foram denunciados pelo Ministério Público por peculato. Os desvios aconteciam com servidores fantasmas, o que viabilizava a devolução do dinheiro. A própria Assembleia do Rio foi alvo de investigação em 2008, com deputados estaduais recorrendo ao velho truque de morder um pedaço do holerite dos funcionários. Em Goiás, o Ministério Público estadual denunciou 30 funcionários de um deputado e dois vereadores. Eles devolviam até 90% do que recebiam, de acordo com a investigação. Em troca, não precisavam trabalhar.

Oficialmente, nem Flávio Bolsonaro nem Fabrício Queiroz são investigados até o momento. Mas os indícios levantados pelo Coaf a pedido do Ministério Público Federal levaram a um outro inquérito, no Ministério Público estadual do Rio. Fabrício deverá prestar depoimento em breve. Crusoé apurou que ele pretende dizer que os valores recebidos eram provenientes de pequenos negócios que realizava, como venda de eletrônicos importados. A explicação terá, claro, que ser esmiuçada pelos promotores.

Como o Coaf apenas se atém a algumas transações, sem detalhá-las, uma quebra de sigilo bancário pode ser determinante para esclarecer o que houve. Há um dado relevante: se os responsáveis pelo caso considerarem importante para o inquérito, o próprio Flávio Bolsonaro, que em fevereiro assume uma cadeira no Senado, poderá ser investigado em primeira instância. Em maio, o Supremo Tribunal Federal decidiu que um senador só tem direito a foro privilegiado na corte quando o assunto sob investigação tiver relação com o mandato em curso.

Embora a apuração esteja apenas no começo, o próprio Jair Bolsonaro se colocou na linha de frente do episódio ao dizer que os 24 mil na conta da futura primeira-dama eram, na verdade, para ele. O presidente eleito até admitiu que o dinheiro era devolução de um empréstimo, não declarado ao fisco. Fabrício Queiroz, o policial, já trabalhou com o próprio Jair Bolsonaro, com quem costumava pescar (leia mais aqui).

José Cruz/Agência BrasilJosé Cruz/Agência BrasilA futura primeira-dama Michelle Bolsonaro: cheque de 24 mil reais
Bolsonaro e seus filhos chegaram ao poder com a promessa de acabar com as velhas práticas na política. O rachid, por enquanto, é uma suspeita que deverá ser esclarecida. Mas o episódio envolvendo Fabrício Queiroz já mostrou que, nos gabinetes do próprio Jair e também de Flávio Bolsonaro, não eram apenas os critérios técnicos que vigoravam na hora de contratar funcionários. Ao citar as transações financeiras do PM-motorista, o Coaf acabou por revelar a influência dele junto à família: além do cargo que ele próprio ocupava, Fabrício Queiroz emplacou a mulher e as duas filhas — uma delas, personal trainer de celebridades no Rio — em cargos comissionados nos gabinetes do clã, incluindo o do deputado federal Jair Bolsonaro.

Queiroz trabalhou com Flávio Bolsonaro por dez anos (o último salário dele estava na faixa de 10 mil reais). Sua mulher, Márcia, também foi funcionária do gabinete em 2017 (recebia 12 mil reais). Nathália, a filha personal trainer, começou a trabalhar com Flávio em 2016 e, quando deixou o cargo (salário de 9,8 mil reais), em dezembro, foi nomeada no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados (10 mil reais). Para o lugar dela, Flávio Bolsonaro nomeou outra filha de Queiroz, chamada Evelyn, com o mesmo salário. Na história, há mais um dado que chama atenção. Como Crusoé revelou, Fabrício Queiroz deixou o gabinete de Flávio Bolsonaro dois dias antes de o Ministério Público pedir à Justiça autorização para realizar a Operação que mirava os colegas do filho do presidente eleito na Assembleia do Rio. No mesmo dia, Nathália, a filha dele, foi exonerada do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara, em Brasília.

De acordo com o Coaf, Nathália repassou ao pai 84 mil reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. No mesmo período, ela recebeu 89 mil reais da Assembleia, em valores líquidos. Ou seja: na prática, ela repassou cerca de 95% do que embolsou. Uma pergunta cuja resposta se impõe e deverá ser considerada na investigação é como ela conciliava a profissão de personal trainer badalada de personalidades cariocas com as atividades de gabinete. Crusoé enviou um rol de perguntas a Flávio Bolsonaro, mas não obteve respostas. A suspeita, óbvia, é que o suposto rachid pudesse envolver salários de funcionários fantasmas, que nem sequer apareciam para trabalhar e cujos salários eram usados para engordar o caixa administrado por Fabrício Queiroz. Na quarta-feira, 12, o Jornal Nacional mostrou que o servidor Wellington Sérvulo passou 284 dias fora do país no período de um ano e cinco meses em que figurava, formalmente, como funcionário do gabinete de Flávio Bolsonaro. No documento do Coaf, Wellington Sérvulo aparece como remetente de um depósito de 1.500 reais a Fabrício Queiroz.

No meio político, não faltam leituras de que o caso enfraquece Bolsonaro e seus filhos. Especialmente pelo fato de o presidente eleito ter se consagrado nas urnas entoando o discurso da probidade. As alfinetadas já se sucedem. Uma delas veio de Hamilton Mourão, o vice-presidente eleito. Em entrevista a Crusoé, ele disse que seria “burrice ao cubo” um assessor fazer caixinha de gabinete usando transferências bancárias. Eduardo, o irmão deputado, preferiu se distanciar e disse ser a “pessoa errada” para responder perguntas sobre o episódio. Deltan Dallagnol, procurador da Lava Jato e alvo de elogios públicos de Jair Bolsonaro, cobrou agilidade nas investigações.

Flávio Bolsonaro, que até então se colocava como a voz do novo governo no Senado, submergiu. Aliados repetiam que ele estava “muito abalado”. Nesta quinta, nas redes sociais, ele disse que “não fez nada de errado e é o maior interessado em que tudo se esclareça”. Onyx Lorenzoni, o futuro ministro da Casa Civil, repetiu a estratégia de petistas e preferiu atacar governos do passado, ao dizer que o Coaf deveria ter agido 13 anos atrás, no mensalão. Jair Bolsonaro já se antecipou ao risco que o episódio ainda pode representar à sua imagem. “Se algo estiver errado, que seja comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos aí a conta deste erro, porque nós não podemos comungar com erro de ninguém”, afirmou, em uma live no Facebook.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO