MarioSabino

O pênis místico de João de Deus

14.12.18

“A brevidade da nossa vida, o embotamento dos nossos sentidos, o torpor da nossa indiferença, a futilidade da nossa ocupação nos permitem saber pouco, e esse pouco é logo abalado e depois arrancado da mente por aquele traidor da aprendizagem, madrasta hostil e infiel da memória, o esquecimento”. A frase, em fiapos, veio à minha cabeça depois de um exame médico de rotina por que passei na semana que corre. Foi uma endoscopia. Você é sedado com o mesmo remédio no qual Michael Jackson se viciou (a informação é da médica) e acorda sem lembrar de nada do que se passou nos últimos vinte minutos.

Tenho 56 anos e desde os 40 a sedação se tornou algo corriqueiro na minha vida. A mais forte foi há dez anos, quando passei por uma cirurgia no intestino. Acordei enregelado (é normal) na sala de recuperação inteiramente branca, ao lado de outros recém-operados. Achei que havia morrido e ido parar num desses hospitais do além-túmulo de que falam os espíritas. Foi uma certeza rápida, porque logo vi nos lençóis a Estrela de David do logotipo do hospital. Assegurei-me de que estava vivo porque, como sou de família católica, pensei que jamais iria parar num limbo judaico. Não me ocorreu que talvez o limbo pós-morte seja igualmente compartimentado por religião – ou exista um único limbo de outra religião, a comprovar que a sua própria crença era a errada.

A sedação, uma pequena morte, é a demonstração química da frase de João de Salisbury, citada no início deste artigo. João de Salisbury foi um eminente professor e teólogo do século XII. Eu o li um pouco quando traduzi “Arte e Beleza na Estética Medieval”, de Umberto Eco, lá na década de 1980. A sedação nos dá a dimensão da brevidade da nossa vida, embota os nossos sentidos e nos faz esquecer até de nós mesmos (desconfio de que Michael Jackson gostava especialmente de esquecer de si próprio).

Fui até João de Salisbury, nas asas da sedação química, para falar de outro João – o de Deus. Que não é de Deus, e sim do diabo, a crer em todas as denúncias de abuso sexual e estupro que surgiram até agora. Ele é definido como médium, mas, canônico que sou, vou chamá-lo de curandeiro. É uma monstruosidade aproveitar-se do desespero alheio dessa forma, mas de monstros o mundo está cheio desde muito antes da época de João de Salisbury. O que me impressiona é alguém segurar no pênis de um curandeiro ou se deixar penetrar por um pênis de um curandeiro, acreditando estar em contato com um espírito.

Que fique claro: não estou culpando as vítimas de jeito nenhum. É sórdido atribuir a culpa do estupro a quem é estuprado. Mas as mulheres que até agora denunciaram o curandeiro não parecem ser ignorantes — ou ignorantes ao extremo — , nem são crianças ingênuas. É gente de classe média, com grau razoável de estudo, e algumas são estrangeiras de bom nível social. O que as fez sucumbir a tamanho engano, acreditando estar em contato com o divino?

Minha explicação é a sedação mística. Estou parafraseando o sapo alemão barbudo e fedorento, mas não acho que a religião seja o ópio do povo – pelo menos, não a religião de João de Salisbury. O misticismo, sim, é um opiáceo poderoso. Ele anestesia contra o grande milagre que é o universo e tudo o que ele proporciona. Alguém anestesiado pelo misticismo torna-se cego para o fato de que divinas mesmo são as leis da física que nos permitem voar de avião e nos lançarmos ao espaço; as telas digitais numa das quais batuco este artigo que depois será enviado também digitalmente para milhares de pessoas no Brasil e no exterior; as lentes multifocais que permitem não trocar de óculos para enxergar de longe e de perto (e trituram a minha cervical); as moléculas sintetizadas em laboratórios que nos curam de doenças antes sinônimos de morte ou adiam a sua letalidade.

Acreditar na capacidade da ciência – e igualmente nos seus limites – é uma forma de religiosidade, porque nos conecta com o mundo visível e nos faz reconhecer a nossa impotência perante o invisível (ou o imprevisível). Acreditar no pênis de João de Deus – e na sua falta de limites – é uma demonstração de misticismo, porque nos aliena do que é visível no mundo e faz crer que se é potente diante do invisível (ou imprevisível). Tudo era bem visível no pênis de João de Deus, mas elas, as vítimas, não viram e acreditaram que um falo pudesse ser potente para além de uma simples ereção causada por sangue em estruturas cavernosas. Estavam sedadas pelo misticismo, outro traidor da aprendizagem.

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