MarioSabino

Como dizer que o STF é uma vergonha

07.12.18

Meu amigo Michel de Montaigne, que de vez em quando escapa do século XVI para dar um alô aqui, apareceu para me dizer o seguinte:

“Por que será que nossa língua, tão fácil em outros usos, torna-se obscura e ininteligível em contrato e testamento, e aquele que se exprime tão claramente, em tudo o que diz e escreve, não encontra neles forma de se exprimir sem dúvida e contradição?”

A língua de Montaigne é a francesa, mas ele me permitiu estender a sua observação também à portuguesa. Afinal de contas, é tradição latina rebuscar a linguagem jurídica não só em contratos e testamentos, mas em sentenças e julgamentos. Tradição que nossos advogados e juízes se esmeram em conservar tropicalmente de tal modo que, não raro, eles nem mesmo se entendem uns aos outros.

Para além de dar vazão a autoilusões literárias, essa linguagem jurídica rebuscada embute cálculo: nos desvãos do jargão, no recheio de citações romanas, nos labirintos das frases, nas cambalhotas hermenêuticas, moram o sofisma e o seu coroamento: o casuísmo. A linguagem jurídica rebuscada adultera a clareza da língua e, portanto, é uma forma de corrupção. Não se pede vênia para tratar a clareza como sinônimo de superficialidade e amadorismo, quando deveria ser o contrário, principalmente no Direito, área que rege até as nossas relações mais comezinhas – caso do meu convívio com Napoléon, que só a lei me impede neste momento de trancá-lo para sempre na solitária do quartinho de casa, para não ouvir os seus latidos estridentes. Se é que entendi a lei sobre cárcere privado e ela se aplica a yorkshires.

Embrulhado no universo corrompido pela linguagem jurídica rebuscada, em que as prosopopeias se fazem acompanhar por rapapés mais ou menos republicanos, posso imaginar o choque que Ricardo Lewandowski levou ao ouvir de um cidadão comum, embarcado no mesmo voo de São Paulo a Brasília, que o STF é “uma vergonha”. Ele ficou tão chocado com a singeleza da formulação que mandou prender o cidadão, dizendo que se sentiu no dever de defender a honra dos seus pares.

Por que cargas d’água o cidadão acha o STF “uma vergonha”? Só porque Lewandowski manteve os direitos políticos de Dilma Rousseff, depois de ela sofrer impeachment, em desacordo com a Constituição? Só porque Lewandowski queria que o condenado Lula desse entrevista antes da eleição, para atacar a Justiça que o prendeu e o proibiu de candidatar-se? Só porque Gilmar Mendes é sócio de uma faculdade que recebe patrocínios oficiais e nem tanto? Só porque Dias Toffoli recebe – ou recebia – uma mesada de 100 mil reais da mulher advogada e o Coaf não foi informado pelo banco? Só porque ministros vão a convescotes patrocinados por bacharéis com causas em tribunais superiores? Só porque Luís Roberto Barroso desabafou que havia gabinetes no Supremo “distribuindo senha para soltar corruptos”? Só porque e porquê?

Se o cidadão houvesse dito que o STF é “deontologicamente questionável”, talvez Ricardo Lewandowski não se sentisse ultrajado. E pudesse ter entabulado uma discussão cordial com o indignado da fileira ao lado, entre snacks veganos e Coca Zero gratuitos ou até entre lanches da Gol mais substanciosos (pagos com verba de viagem, evidentemente). Mas não. Lewandowski disse que ia mandar prender o cidadão e, quando desembarcaram em Brasília, lá estava a PF esperando o indignado, como se os agentes não tivessem mais o que fazer.

Aonde quero chegar? À Suprema Corte americana, um monumento do mundo anglo-saxão que teria encantado o meu amigo Montaigne. Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes da Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês e literatices encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam cristalinas e, portanto, inteligíveis a qualquer cidadão americano com instrução média. E, em 2014, passaram a exigir que as petições dos advogados também fossem em “plain terms” – objetivas, diretas, sem trololós.

Quando é clara, a linguagem traduz posições límpidas. Como forma é conteúdo, eu diria que também produz comportamentos transparentes. Um cidadão americano pode até não concordar com as decisões da Suprema Corte, mas jamais poderá dizer que ela é “uma vergonha”. Os seus juízes seguem um código de conduta rigoroso, estejam eles à direita ou à esquerda no espectro político. O conservador Antonin Scalia, que morreu em 2016, protagonizou um episódio exemplar no Brasil. Convidado para ir a um jantar no Copacabana Palace, organizado por ex-alunos de Harvard, ele foi informado de que um advogado brasileiro com uma causa na Suprema Corte americana estaria presente. Scalia solicitou, então, ao Consulado dos Estados Unidos que pedisse aos organizadores do jantar que gentilmente retirassem o advogado da lista. Tinha receio de que o sujeito tentasse aproximar-se dele. Os organizadores negaram-se a fazê-lo. Scalia não foi ao jantar.

Ainda teremos juízes no STF como os da Suprema Corte americana. Até lá, se você vier a encontrar um desses ministros que despertam os instintos mais primitivos, contenha-se. Se for impossível evitar a reprimenda, diga apenas que o tribunal é deontologicamente questionável.

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