MarioSabino

O suicídio do Brasil

23.11.18

Os professores do meu filho caçula dizem aos alunos que eles deveriam andar mais por São Paulo. A pé, de bicicleta, ônibus ou metrô, é que se conhece verdadeiramente uma cidade. Eu também acho, óbvio, desde que você não tire o celular do bolso, não use relógio, leve consigo sempre o dinheiro do ladrão e fique atento ao menor movimento suspeito de gente querendo exercer os próprios direitos humanos sobre o próximo.

“Fui com a escola ao centro da cidade, lembra?”, perguntou-me o garoto. “Lembro, claro”, respondi. “Tem cheiro de xixi e um monte de mendigos”, ele disse. Era mesmo hora de levar o meu filho para dar uma longa caminhada.

Escolhi como destino a escola pública onde cursei boa parte do que é hoje o ensino fundamental. Pelo caminho, fui mostrando aspectos dos bairros que atravessávamos, as casas de antigos amigos, o prédio no qual morei logo depois de casar (pela primeira vez), a casa do meu avô paterno, o restaurante italiano frequentado por mim quando o dinheiro era bem mais curto (agora com um horrendo letreiro vermelho)… Até o posto de gasolina mereceu referência no meu itinerário sentimental. Chegamos, então, à escola.

Eu não esperava encontrá-la aberta num domingo, mas o que vi do lado de fora foi suficiente para imaginar o seu interior. Lixo se acumulava no quarteirão ocupado pelo edifício histórico (era uma escola modelo do estado de São Paulo). A entrada do ginásio onde jogávamos basquete e vôlei – e que servia de auditório para exibições de orquestras sinfônicas –, tornou-se abrigo de mendigos, com direito a varal. Ao olhar pela fresta de um dos portões, deparei com uma pilha de carteiras velhas na entrada de um dos prédios com vidros quebrados. Com ar desolado, ouvi: “Até que não está tão ruim, pai”.

Na volta, um pensamento insinuou-se na paisagem: o suicídio. Não o meu, não pretendo me matar, não se preocupe (ou não se alegre). Mas o do país. “O Brasil é suicida. Uma república das bananas de dinamite amarradas à cintura”, pensei. “Está matando de fome e ideologia a educação pública, está matando o meu passado e o passado de um monte de gente, está matando de morte matada 63 mil pessoas por ano (sem contar as 37 mil em acidentes de trânsito), está matando a paisagem (a favela da Rocinha voltou a expandir-se freneticamente num dos cartões-postais do Brasil), está matando de corrupção os doentes pobres. Tudo está despencando pelas nossas mãos, é um suicídio coletivo.” E me veio à cabeça o escritor Albert Camus. Não sei se ele continua a ser lido no Brasil, mas a moçada gostava bastante dos seus livros até a década de 1980. Pelo menos a moçada que andava a pé, de ônibus ou metrô, na qual eu me incluía.

Em “O Mito de Sísifo”, Camus (que morreu num acidente de carro) escreveu: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.”

Tenho uma relação ambígua com esse ensaio. Ele é brilhantemente vertiginoso nos argumentos, mas parte de uma premissa que considero falsa – a de que o suicídio seria um problema filosófico que coloca o absurdo da existência no centro da discussão. O sentimento de absurdo, segundo Camus, surge quando constatamos ser impossível enquadrar a realidade universal num princípio racional e razoável. “Nasce desse confronto entre o apelo humano (por um sentido) e o silêncio irracional do mundo”, disse ele. Dessa impossibilidade, brotaria a angústia suicida, inclusive a filosófica. Fui ligeiramente suicida num artigo publicado na Veja, em 1995, sobre duas moças que se mataram em Brasília. Ao citar incompleta e elipticamente Camus, dei a entender que ele defendia o suicídio como solução. Fui criticado por gente letrada, porque se trata do contrário: Camus faz a defesa da vida, uma vez que o absurdo é uma criação humana. Sem o pensamento do homem, que busca dar sentido ao mundo, o absurdo não existiria. O mundo é o que é, independentemente de nós. Não se trata, portanto, de evadir-se do absurdo, por meio do suicídio, mas de enfrentá-lo na condição de homens que incorporam o absurdo como algo que os une ao mundo – como Sísifo do mito grego, condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra até o alto de uma montanha, para depois vê-la rolar pela encosta. “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”, escreveu Camus.

Ele rejeita o suicídio, mas ao declarar que o tema do seu livro “é justamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo”, Camus acaba reconhecendo uma saída no gesto extremo, apesar de repudiá-lo. A citação ligeira no artigo da Veja se referia a esse ponto. A minha posição é prosaica: há várias causas para o suicídio e nenhuma delas é um problema filosófico. Até há certa lucidez em algumas dessas causas, mas sempre gerada pelo desespero mais visceral. Acho que tratar o suicídio como problema filosófico é tentar reduzi-lo a um princípio racional, embora irrazoável.

Como sou um “bostão que escreve bosta”, na amável definição de um leitor da Crusoé, dei toda essa volta, mais longa que a caminhada com o meu filho caçula, para concluir que o suicídio do Brasil ocorre porque nos falta a resiliência de um Sísifo. Na minha opinião, como qualquer suicídio, o nosso está longe de ser um problema filosófico. Muitos explicam a nossa escassez de resiliência, sem falar em suicídio, como questão sociológica. Não importa. Basta. Temos que superar essa questão, se quisermos viver. Construir — e manter — um país civilizado é carregar a mesma pedra até o alto da montanha todos os dias. E, ao verificar que ela rolou pela encosta, sentir felicidade em devolvê-la ao cume, como recomenda Camus. Saio de Saint-Germain, em Paris, e vou a pé para o nosso sertão. “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos”, escreveu Euclides da Cunha. Alegremo-nos com essa sentença de vida. É absurdamente necessário cumpri-la. Rejeito o suicídio e quero a minha escola pública consertada, limpa e bem cuidada.

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