Antonio Cruz/Agência Brasil

O antissistema procura o sistema

Após a vitória, Jair Bolsonaro tem dado mostras de que, para o governo funcionar sem maiores percalços, fará concessões ao establishment
15.11.18

Jair Bolsonaro foi eleito com forte discurso contra tudo o que está aí. Durante a campanha eleitoral, deixou bem claro que era o candidato antissistema. “O único que pode romper essa barreira, o establishment, a máquina, o sistema, é Jair Messias Bolsonaro”, declarou em um dos dois debates de que participou. Após a vitória, porém, Bolsonaro tem dado mostras de que, como forma de fazer o governo funcionar sem maiores percalços, fará concessões ao sistema. Escalou um representante dos bancos para o governo. Fez do DEM, o antigo PFL, seu maior aliado na política. Estabeleceu laços com as cortes superiores de Brasília. Amplia espaços do Exército em seu governo, como prometeu que faria, mas privilegiando a ala “política” da caserna. E dá sinais de que apoiará a demandas do setor produtivo. Eis alguns dos sinais.

Os acenos ao mercado

Muito embora a agenda ultraliberal do superministro da Economia Paulo Guedes tenha o apoio do setor financeiro do país, sua falta de experiência na administração pública e de interlocução com a cúpula dos bancos privados do país fez com que ele buscasse alguém que unisse esses dois atributos: Joaquim Levy. O ex-secretário do Tesouro Nacional de Lula, ex-secretário de Fazenda de Sergio Cabral, ex-ministro da Fazenda de Dilma Rousseff e ex-dirigente do Bradesco foi escolhido oficialmente para ser presidente do BNDES. Mas, na prática, terá também o papel de elo entre o governo e os bancos.

Tanto que não demorou muito para que o presidente do Bradesco elogiasse os rumos do novo governo. Dois dias após a nomeação de Levy, Octavio de Lazari Júnior, disse em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo estar “otimista com as perspectivas do Brasil para os próximos anos, o que não ocorria há pelo menos uma década”. Sobre Levy, declarou que se trata de “um técnico de primeiro time, respeitado pelo mercado, inclusive internacional”. “É uma pessoa extremamente qualificada”, emendou.

Levy, assim como Guedes, é um “Chicago Boy”, como são conhecidos os economistas adeptos ao receituário liberal cujo templo maior é a Universidade de Chicago. Assim, a expectativa é de que ambos estejam afinados na tentativa de implementar medidas para zerar o déficit fiscal em 2019, uma das promessas de Guedes. Para tanto, serão necessários muitos cortes no orçamento, uma eficiente reforma da Previdência e a ampliação das receitas do governo, provavelmente por meio de um programa de privatizações. Resta saber se Levy abrirá mesmo a tal caixa preta do BNDES.

Na quinta-feira, Roberto Campos Neto, do Santander, foi escolhido para ser o presidente do Banco Central. A Faria Lima adorou.

A aliança com o DEM

Mesmo tendo apoiado formalmente o candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, e com uma bancada muito aquém da planejada, com 29 deputados e seis senadores, o DEM caminha para ser o partido com maior representação no governo Jair Bolsonaro. O antigo PFL será uma espécie de fiador político do novo governo. Dois integrantes da legenda na Câmara já foram confirmados como ministros. Onyx Lorenzoni, para a Casa Civil, e Tereza Cristina, para a Agricultura. Além disso, o também deputado federal Luiz Mandetta é cotado para o Ministério da Saúde. Na semana passada, Bolsonaro se reuniu com o governador eleito por Goiás, Ronaldo Caiado. “Vamos dar muito certo”, disse o presidente eleito a ele.

Para receber formalmente o apoio do DEM, só falta Bolsonaro acenar para a reeleição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Na quarta-feira pela manhã, eles se reuniram por mais de uma hora em um café da manhã. Saíram mudos. Para o deputado federal Heráclito Fortes, é a inexperiência política do PSL, partido de Bolsonaro, que tem feito ele buscar a legenda. “Como sente que o partido dele não tem quadros consolidados, está se aproximando com quem se identifica ideologicamente. Ninguém governa sem o establishment”, diz.

Os gestos ao Judiciário

Desde que foi eleito, Bolsonaro já se reuniu com os presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Superior Tribunal Militar (STM). Em todos os encontros, sobraram afagos aos magistrados. A Dias Toffoli, do STF, o presidente eleito disse que irá procurá-lo muitas vezes antes de tomar uma decisão. A João Octávio de Noronha, do STJ, brincou dizendo que a responsabilidade para tirar o país da crise é dele também. A Rosa Weber, do TSE, pediu desculpas por ter dado “caneladas” na corte durante a campanha. A Brito Pereira, do TST, pediu que contasse com ele para “juntos” administrarem o país e “em conjunto” aperfeiçoarem a legislação. “Tenham-me como um amigo, um colega”, disse. A José Coêlho Ferreira, do STM, colocou-se à disposição para assuntos e sugestões que possam contribuir para seu futuro governo.

Para além do protocolo cerimonioso de um presidente recém-eleito com autoridades, a humildade tem um motivo adicional especial. Há a avaliação no entorno de Bolsonaro de que o Judiciário deverá ser a maior fonte de problemas para ele. Primeiro, pelos pontos polêmicos da agenda que o futuro presidente pretende levar adiante e que tendem a ser analisados pela Justiça, como a redução da maioridade penal, a permissão para que policiais possam matar suspeitos armados pesadamente e o projeto Escola sem Partido. Além disso, há ação de investigação eleitoral que analisa se houve irregularidades em sua campanha – algo que por ora não representará grandes percalços, mas a depender do curso do governo pode funcionar como uma espada do Judiciário sobre a cabeça do novo presidente. “É bem provável que esses ministros todos tenham que decidir questões em que ele tem interesse e já estão nos tribunais, assim como outras questões que poderão vir a estar”, disse a Crusoé Ivar Hartmann, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.

A ponte com a “ala política” das Forças Armadas

Bolsonaro nomeou nesta semana o novo ministro da Defesa, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva. Trata-se de um dos militares mais “políticos” das Forças Armadas. Trabalhou próximo aos presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Dilma Rousseff. Também foi assessor parlamentar do Exército, período em que se aproximou e conheceu o jogo político no Congresso Nacional. Seu último cargo era uma assessoria especial do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. O general é um ardoroso defensor de que militares e civis convivam pacificamente, distantes de qualquer ameaça de turbulências institucionais. Sua nomeação é um sinal luminoso para dois destinatários. Para as tropas, indica que o novo governo pretende zelar pelo sistema democrático. A mesma mensagem vale para os civis preocupados com as inúmeras declarações de Bolsonaro em sua carreira de apoio e admiração à ditadura militar brasileira.

Por outro lado, já está colocado um primeiro problema que Azevedo e Silva terá de tratar daqui em diante: o incômodo da Marinha e da Aeronáutica de mais uma vez terem de ser chefiadas por um integrante do Exército. O presidente Michel Temer foi o primeiro a nomear um militar para o cargo desde a criação da pasta por Fernando Henrique Cardoso. Escolheu um integrante do Exército, o que Bolsonaro agora repete. Agora, como pululam integrantes desta força na Esplanada, inclusive o presidente e seu vice, Hamilton Mourão, a Marinha nutria expectativa de chefiar a Defesa. Não levou e não gostou.

As concessões ao setor produtivo

Bolsonaro já admitiu fundir o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura e o da Indústria e o do Trabalho com o da Economia. Já defendeu que o Brasil saísse do acordo de Paris, que tem metas contra o aquecimento global, e anunciou a intenção de transferir a Embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Recuou e voltou atrás do recuo mais de uma vez. Não decidiu ainda sobre nenhuma delas. Enquanto segue indeciso, por trás desses movimentos há uma grande pressão do setor produtivo para contê-los. O motivo é o eventual prejuízo que turbulências provocadas por decisões do presidente podem provocar.

No caso do Meio Ambiente, o apelo para que ele voltasse atrás da ideia da fusão partiu dos próprios ruralistas. Eles alegam que há critérios de preservação ambiental considerados por muitos compradores no mercado mundial das principais commodities brasileiras, como soja, açúcar e café. Qualquer sinal de que o respeito ao meio ambiente no Brasil está em xeque poderia representar largas perdas, porque parte dos clientes fatalmente deixaria de comprar do Brasil. O mesmo raciocínio vale para o ensaiado fechamento do Ministério do Trabalho, que apesar de ter virado um antro de corrupção para sindicalistas e políticos que o habitam, tem atribuições que são relevantes nas negociações externas, como o combate ao trabalho escravo, por exemplo. A mudança da embaixada em Israel é outro ponto que pode prejudicar parte dos negócios brasileiros no exterior. Tão logo a ideia foi anunciada pelo presidente eleito, os países árabes, quinto destino das exportações nacionais, indicaram que podem deixar de fazer negócio com o Brasil. Eles blefam, mas o imbróglio causa ruído. Bolsonaro analisa todos os argumentos e ainda não bateu o martelo em nenhum deles. Mas já mostra claramente que não será um fio desencapado, como muitos acreditavam (e temiam) que seria.

 

Há uma regra na política que estabelece que um presidente só cai se perder o apoio simultâneo de três pilares que o sustentam no cargo. A elite econômica, representada pelos setores financeiro e produtivo; a elite política, concentrada no Congresso Nacional; e o apoio popular. Fernando Collor caiu em 1992 quando esses três eixos ruíram. O fenômeno se repetiu com Dilma Rousseff em 2016. Sempre com a participação de outros atores. Em ambos os casos, por exemplo, os processos de impeachment foram referendados pelo Judiciário. No de Dilma, teve apoio dos militares nos bastidores. No breve período da transição de seu governo, o presidente eleito Jair Bolsonaro já busca se fiar nesses tradicionais sustentáculos do poder para garantir que conduzirá seu mandato sem percalços. Aos poucos, ele vai deixando de lado os arroubos da campanha e os gritos contra o sistema para acenar a ele. Só não pode, evidentemente, se curvar a ponto de aceitar também os vícios que historicamente acompanham essas relações.

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