Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Diplomata e blogueiro, com amor e coragem

A nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de chanceler não dirime as dúvidas sobre como será a política externa brasileira, mas ao menos uma vitória já pode ser comemorada
15.11.18

Até a tarde da quarta-feira, a expectativa em torno de quem seria o chanceler do Brasil tinha duas vertentes. A primeira era a de que o escolhido seria um moderado capaz de conter os instintos mais radicais que Jair Bolsonaro externou durante a campanha. A segunda temia que o presidente eleito nomeasse um novato sem qualquer amparo entre seus colegas, com risco de empurrá-lo para atitudes extremadas, como a de brigar com a China ou transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. “Informo a todos a indicação do Embaixador Ernesto Araújo, diplomata há 29 anos e um brilhante intelectual, ao cargo de Ministro das Relações Exteriores”, escreveu Bolsonaro no Twitter às 16h23. Minutos depois, uma conturbada coletiva de imprensa, em que o nomeado pouco falou, não contribuiu para desvendar para qual dos dois lados vai o Itamaraty.

Araújo conta com uma longa trajetória no serviço público. Concluiu o Instituto Rio Branco, a escola brasileira de diplomatas, em 1991. Começou trabalhando com o Mercosul e depois seguiu para a Europa, na Missão do Brasil junto às Comunidades Europeias, em 1995. Em seguida, foi lotado nas embaixadas de Ottawa e Washington até chegar ao posto de ministro-conselheiro. “Eu o conheço muito bem pois já trabalhamos juntos. Araújo é competente, sério e trabalhador. Inicia uma grande renovação geracional no Itamaraty”, diz Rubens Barbosa, que foi embaixador em Washington entre 1999 e 2004. Na mesma quarta-feira em que o nome foi anunciado, o atual chanceler, Aloysio Nunes, que militou na esquerda durante sua juventude, afirmou que seu sucessor está “mais do que talhado” para a função, por sua competência, dedicação e espírito público. Araújo tornou-se ministro de primeira classe em julho e não chegou a ter um posto de chefia no exterior, algo que até alguns anos era um pré-requisito para comandar o Itamaraty. Entre os colegas, é considerado um “embaixador júnior”.

O que o alçou ao estrelato foi um artigo publicado em uma revista de relações exteriores chamada Cadernos de Política Exterior, da Fundação Alexandre de Gusmão, em Brasília. O texto, “Trump e o Ocidente”, saiu no ano passado e não recebeu muita atenção no início. Este ano, o anonimato acabou quando Olavo de Carvalho, escritor que vive no estado americano da Virgínia e é guru de parte da direita brasileira, teceu elogios. “Por incrível que pareça, ainda há vida inteligente no alto funcionalismo brasileiro”, disse Carvalho. A proximidade entre o autor que vive nos Estados Unidos e o presidente eleito completou o quadro. Os dois se conhecem desde 2014 e um dos livros de Carvalho, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (Record), estava em cima da mesa quando o futuro presidente fez sua primeira declaração após os resultados eleitorais. Estavam dadas, assim, as condições para que o alto funcionário cuja inteligência fora reconhecida por Olavo de Carvalho ascendesse na hierarquia do poder sob Bolsonaro.

Mais recentemente, em 2016, Ernesto Araújo ocupou o cargo de diretor do Departamento dos EUA, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores. Sua identificação com o governo de Trump, eleito no final daquele ano, foi imediata. Em setembro deste ano, com a campanha presidencial brasileira já em curso, Araújo estreou o blog Metapolítica 17. No site, sua verve discorre livre, sem freios e contrapesos. Seu objetivo declarado é ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia “globalista”. Para o escritor online, “globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente, é um sistema anti-humano e anti-cristão”. Os textos destoam em muito da linguagem burocrática e monótona tão exercitada pelos diplomatas. Na nota que divulgou na quarta-feira, Araújo pareceu seguir na mesma toada. Disse que seu lema é “Bolsonaro com amor e com coragem!”. Também prometeu o “amor pelo Brasil”. “Amor infinito por esta nação gigante, chamada pelo destino para ajudar a construir um mundo mais humano e mais livre. Amor a Deus, para aqueles que creem. Amor ao próximo e à Justiça para todos”, escreveu.

Andy Katz/Brazil Photo Press/FolhapressAndy Katz/Brazil Photo Press/FolhapressDonald Trump: referência para Bolsonaro e, agora, também para o futuro chefe do Itamaraty
Com as vertentes contraditórias de diplomata e blogueiro coexistindo no mesmo personagem, as previsões sobre o futuro da política externa brasileira ficaram mais nebulosas. As nuvens só começarão a se dissipar à medida que Araújo começar a dar mais declarações e a se expor ao contraditório, respondendo a perguntas e tendo de apaziguar opiniões discrepantes.

Apesar da falta de certezas em relação ao novo ministro, há pontos em relação a Jair Bolsonaro que podem acalmar os nervos. Ainda que ele tenha feito declarações polêmicas em sua campanha, o presidente eleito tem sabido voltar atrás quando é criticado. Também tem delegado poderes, o que fez notadamente com Paulo Guedes e com Sergio Moro. Nesses dois casos, os escolhidos terão suas capacidades turbinadas. No caso do Itamaraty, contudo, há a possibilidade de que o órgão perca relevância. O presidente eleito pensa em deixar para outras pastas a missão de garimpar, negociar e auxiliar empresas brasileiras a fazerem transações comerciais relevantes no exterior.

Também é preciso levar em conta que as previsões mais dramáticas sobre a política externa no futuro governo beiraram o apocalipse. Bolsonaro fez declarações nacionalistas contra a China durante a campanha. “A China está comprando o Brasil”, reclamou ele várias vezes. Um editorial do jornal China Daily chegou a dar o troco, ameaçando uma retaliação. “O custo econômico pode ser duro para a economia brasileira”, dizia o texto. O país asiático é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009 e compra commodities como petróleo, minério de ferro, soja e celulose. Embora o jornal seja estatal e a matéria publicada em inglês tenha sido redigida com o intuito de alcançar uma plateia no exterior, no Brasil os empresários chineses não chegaram a se alvoroçar. “Eles perguntam sobre o novo governo, mas fizeram isso mais como medida de cautela do que por estarem propensos ao terror psicológico que a imprensa tem espalhado”, diz o advogado José Ricardo dos Santos Júnior, do escritório Braga Nascimento, que realizou três viagens este ano para a China e está em contato constante com os empresários chineses. O embaixador chinês, Li Jinzhang,visitou Bolsonaro no Rio de Janeiro, no dia 5 de novembro. O encontro também serviu como calmante.

A China não estaria propensa a escalar nenhuma retaliação, além do palavreado. “Qualquer reclamação sobre exploração de recursos naturais não é uma grande surpresa para o lado chinês”, diz o cientista político Dali Yang, da Universidade de Chicago e autor de três livros sobre a economia de Pequim. “Os chineses estão habituados a trabalhar globalmente e sabem como podem ganhar acesso à maior parte dos recursos por meio dos mercados”. A redução do crescimento da economia faz com que eles estejam ainda mais preocupados em obter as matérias-primas de que necessitam e assegurar a exportação dos seus produtos de maior valor agregado.

Valter Campanato/Agência BrasilValter Campanato/Agência BrasilO presidente eleito com o futuro ministro: o escritor Olavo de Carvalho os aproximou
Outra hipótese, a de que países árabes poderiam se unir para boicotar a importação de alimentos brasileiros por causa da promessa de transferir a embaixada para Jerusalém, não passa de suposição. Quando os Estados Unidos anunciaram essa mudança, a repercussão foi pífia. Grupos terroristas, líderes autoritários e teocratas falaram que isso abriria os portões do inferno, que seria um grande erro ou que representava uma grande falha. Mas, tirando as manifestações, nada de concreto foi feito. Nenhum país tirou sua embaixada dos Estados Unidos. Argumenta-se que o Brasil, por ser um país menos destacado na cena global, encorajaria mais represálias. O cerne da questão é que uma ação conjunta de países muçulmanos é altamente improvável. “Os árabes são incapazes de fazer qualquer boicote contra o café, a carne ou o chocolate brasileiro. A última vez que fizeram algo assim foi nos anos 1970, na crise do petróleo”, diz o historiador israelense Edy Cohen, do Centro de Estudos Estratégicos Begin-Sadat. O conflito entre israelenses e palestinos não está na pauta dos xeiques, que nos últimos anos têm se aproximado de Israel. “Se os árabes forem se juntar contra alguém, o mais provável é que seja contra os palestinos”, diz Cohen. Sim, é isso mesmo que você leu.

À parte as exaltações dos últimos dias, há uma área em que a política externa de Bolsonaro inegavelmente poderá progredir: a América Latina. Para muitos que lutam contra regimes opressores, os elogios de Bolsonaro à ditadura e à tortura são passado. “O socialismo do século XXI só foi possível porque os governos de Venezuela, Brasil e Argentina seguiram juntos no mesmo caminho destrutivo, no início dos anos 2000. Agora, só falta a democracia voltar à Venezuela”, diz o ex-presidente da Bolívia Jorge Tuto Quiroga, que governou entre 2001 e 2002. Para ele, as consequências dessa trinca para o seu país foram trágicas. No governo de Evo Morales, que teve início em 2006, negócios escusos foram fechados entre grupos de amigos petistas, construtoras brasileiras e bolivianos. Como Morales presidia seis federações de cocaleros do Chapare, o governo nacional em La Paz também passou a fazer vista grossa aos plantadores de coca e aos produtores de pasta de coca, origem do crack, e cocaína. “Bolsonaro não será cúmplice do narcotráfico nem da corrupção”, afirma Quiroga. “Ele quer diminuir a criminalidade em São Paulo e no Rio de Janeiro, e essa violência brasileira está diretamente ligada à droga boliviana.”

Na Venezuela, a expectativa em torno da diplomacia brasileira também é alta. “O Brasil é o país com a maior economia e com a maior população da região. Desde já, é razoável esperar uma liderança em sua política exterior”, diz a opositora Maria Corina Machado, em Caracas. “É impensável que os países do hemisfério permaneçam impassíveis e indiferentes frente à instalação de um estado criminoso na Venezuela, que não apenas está assassinando milhares de pessoas e expulsando milhões, mas é uma ameaça em questões de narcotráfico e terrorismo”. Para ela, Bolsonaro terá uma posição firme, não irá tolerar a ditadura de Nicolás Maduro depois de eleito e vai priorizar os direitos humanos. Pois é. “Para os venezuelanos, Bolsonaro é sem dúvida uma esperança”, diz Maria Corina.

Em meio às incertezas sobre como será o seu governo em política externa, Bolsonaro ao menos já tem uma vitória inquestionável. Na quarta-feira 14, o governo cubano anunciou que deixará o programa Mais Médicos em protesto contra a promessa do presidente eleito de mudar os termos do acordo feito com a Organização Panamericana de Saúde. Bolsonaro retrucou sem meias palavras, publicando três mensagens no Twitter. Disse que a decisão cubana aconteceu porque ele queria que os médicos passassem por um teste de capacidade e recebessem salário integral, sem ser obrigados a repassar a maior parte para a ditadura de Havana. Os doutores, segundo Bolsonaro, também deveriam ter liberdade para trazer suas famílias. “Eles estão se retirando do Mais Médicos por não aceitarem rever esta situação absurda que viola os direitos humanos”, escreveu o presidente eleito. Cuba é a ditadura mais longeva da América Latina e deve sua resiliência nas últimas duas décadas principalmente a aliados na região. Cortar uma das principais fontes de receita do regime comunista e chamá-lo pelo que é, uma ditadura, já representa um ótimo começo. Quanto aos problemas de atendimento na área da Saúde que isso acarretará, uma solução terá de ser encontrada de qualquer forma. Virou ponto de honra para o governo.

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