Ricardo Moraes/FolhapressPara Gabeira, o que destruiu as chances do PT foram as "provas ocêanicas" colhidas pela Lava Jato

“Não era a democracia que estava em jogo”

Para Fernando Gabeira, a esquerda usou uma falsa questão para se contrapor a Jair Bolsonaro na eleição. O que importava, avalia, era a luta contra a corrupção e a criminalidade. De acordo com ele, a esquerda depende mais de Lula do que a direita de Bolsonaro
09.11.18

Fernando Gabeira estava na luta armada contra o regime militar enquanto o presidente eleito Jair Bolsonaro aspirava um posto como oficial do Exército, nos anos 1970. As histórias de ambos se cruzariam mais de duas décadas depois, quando passaram a conviver no Congresso após a volta dos civis ao poder. Mais especificamente a partir de 1994, com a primeira eleição de Gabeira para deputado federal. No começo, ele e Bolsonaro defendiam agendas opostas. O militar focava nas causas de interesse dos colegas dos quartéis, principalmente. O jornalista, egresso das fileiras do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR8, empunhava a bandeira da defesa do meio ambiente. Com a chegada do PT ao poder, em 2003, começou a haver convergência de discurso entre os dois. As críticas à corrupção da era petista os tornaram próximos.

Aos 77 anos, e agora mais voltado para o jornalismo do que para a política, Gabeira enxerga o atual momento do Brasil com moderação, ao contrário da maioria da esquerda brasileira. Ele não vê Bolsonaro como ameaça à democracia. E diz que os adversários do capitão da reserva falharam na tática para tentar vencê-lo. “A esquerda criou no Bolsonaro uma determinada ameaça à democracia e se colocou imediatamente como a defensora e guardiã da democracia. Era uma tática. E uma tática que talvez não tenha dado tanto certo porque não era a questão da democracia que estava em jogo.” Eis a entrevista:

Como era a sua relação com Jair Bolsonaro na Câmara?
Ele e eu nos conhecemos no Parlamento. Tínhamos divergência quanto ao que defendíamos, mas nunca houve ruptura ou discussão. Sempre mativemos respeito mútuo. Além disso, as condições do exercício do mandato faziam com que viajássemos a Brasília e ao Rio nos mesmos voos em algumas ocasiões. Muitas vezes fomos companheiros de viagem. Ao longo do tempo, fizemos campanha simultaneamente no Rio. A gente se cruzava e se cumprimentava. Bolsonaro nunca foi meu competidor. Meus eleitores não votariam nele, nem os dele em mim. Nossas agendas por vezes até se encontraram, principalmente nessa questão de combate à corrupção. Sobretudo na condenação da corrupção da esquerda.

O sr. o considera um radical?
Depende do tema, das circunstâncias. Se você levar em conta as frases, os posicionamentos escritos ou falados dele, talvez o considere um radical. Mas Bolsonaro gosta muito desses choques que chamam a imprensa. Ele tem tendência a fazer declarações bastante bombásticas para os jornalistas. Mas observo que ele é flexível. Trinta anos de Câmara dos Deputados o obrigam a entender a negociação política.

O Jair Bolsonaro presidente será o mesmo Jair Bolsonaro deputado?
Já vi muitas pessoas entrando na Presidência e mudando. O primeiro momento é sempre de autoestima elevada, há uma enorme sensação de poder. Você acaba de ser eleito com milhões de votos. É paparicado, tem beija-mão de autoridades, deputados, senadores, diplomatas. É um momento de autoafirmação. Esses momentos são perigosos porque a pessoa às vezes não percebe os seus limites. Até agora não vi nada nele que demonstrasse arrogância, embora veja com reserva algumas medidas que ele anunciou.

Quais, por exemplo?
Levar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. Não que eu tenha  problema com o fato de ele acreditar que isso seja bom, seja por motivos políticos ou religiosos. Bolsonaro se batizou naquela região (foi batizado no Rio Jordão, em 2016). Mas a mesma crítica que fiz ao PT em relação à Venezuela é válida para a decisão dele de mudar a embaixada de Israel para Jerusalém. A política externa do Brasil não pode ser reflexo de um partido nem de uma cabeça, ela depende de consenso e só pode ser alterada se mudadas as condições. E, ainda assim, em um processo de acordo para que haja mudança. Não quero dizer que ele não possa dar seu tom à política externa, na linha de ser mais alinhado aos Estados Unidos do que os outros presidentes foram. Acho normal que se desenvolvam relações mais próximas com os americanos. No entanto, é importante saber que não somos os Estados Unidos. (Bolsonaro declarou, depois da entrevista, que nada está decidido ainda sobre a mudança da embaixada)

Por que a estratégia dos adversários de classificá-lo como racista, misógino, homofóbico e antidemocrático não deu certo na campanha?
Porque os principais temas da campanha não eram esses. Em primeiro lugar, era a luta contra a corrupção. Se você se dispõe a lutar contra a corrupção de forma adequada, aponta os adversários e aceita os principais pressupostos contra o problema, é um passo importante. Os outros não se apresentaram da mesma forma que ele. Alguns candidatos, como o do PSDB (Geraldo Alckmin), estavam um pouco tímidos sobre o tema e tinham retaguarda problemática. Não só porque eram, de certa maneira, mencionados em escândalos, mas porque já haviam sido condenados. O PT, por exemplo, não tinha nada a dizer sobre isso. Quem tinha a dizer de uma forma clara era o Alvaro Dias, mas não convenceu.

Quais eram os outros pontos?
O segundo ponto foi a apresentação de uma política de segurança pública. As pessoas estão assustadas com a criminalidade e ele era o único que tinha uma resposta. Não uma resposta mágica, mas uma resposta que tinha uma vantagem sobre qualquer outra porque envolve a sociedade. O fato de dizer que cada um pode ter uma arma dá à sociedade uma saída. A mensagem é que, se o governo não está bem das pernas, cada um vai poder se defender.

Lucio Tavora/FolhapressLucio Tavora/FolhapressGabeira deputado, em 2006: ˜Bolsonaro gosta muito desses choques que chamam a imprensa˜
Armar a população é mesmo a melhor saída?
Claro que talvez não seja a melhor saída. Não é a minha pelo menos. Acho que é preciso envolver a sociedade de outra maneira, na informação e prevenção da violência. A minha visão é diferente, mas Bolsonaro oferecia na campanha uma saída rápida e simples. E não havia nada no cardápio político que rivalizasse com isso. E a terceira questão da campanha, que acho que não foi tão importante, mas que teve também um papel, foi a da dimensão do estado. Há um esgotamento da paciência dos brasileiros, especialmente desde 2013, com os serviços públicos. São ineficazes e não valem o imposto que você paga. Então a discussão sobre o tamanho do estado e a disposição de torná-lo mais enxuto e eficaz teve peso.

A esquerda propôs o embate entre civilização e barbárie, entre democracia e ditadura…
Isso foi uma construção. A esquerda criou no Bolsonaro uma determinada ameaça à democracia e se colocou imediatamente como defensora e guardiã dos princípios democráticos. Era uma tática, não uma estratégia, e uma tática que não deu certo porque não era a democracia que estava em jogo, embora ela tenha importância clara e essencial. A democracia não era questão porque Bolsonaro queria chegar ao governo através de um processo eleitoral, não de um golpe de estado. Foi uma eleição com todos os recursos democráticos em pleno funcionamento. A comparação com a ditadura militar, portanto, não era correta. Lá, houve o uso da força para tomar o governo.

Há analistas sustentando que as democracias estariam ameaçadas, inclusive por mandatários que chegam ao poder pelo voto.
Escreveram livros sobre isso, mas têm como referência países como a Turquia. E a Turquia não é um exemplo adequado. As instituições brasileiras são mais sólidas do que as turcas. O Brasil, depois de 30 anos de Constituição, tem salvaguardas que dão garantias à democracia. Sem contar a própria consciência democrática, bastante difundida entre os cidadãos.

Recentemente, o sr. classificou alguns dos erros da esquerda na campanha como “prisões mentais”. Quais são essas prisões?
Mencionei a falta de autocrítica, porque existia na proposta da esquerda uma visão de que ela seria eleita independentemente do reconhecimento dos seus erros, o que significa carta branca para repeti-los. Outro problema é a dificuldade de tentar dialogar com os eleitores do candidato adversário, algo que é elementar na política. Ao invés disso, eles foram xingados, o que me parece uma opção equivocada. Para não falar do entricheiramento nas lutas identitárias. Numa campanha nacional, elas não têm o mesmo peso de propostas de interesse nacional.

As bandeiras tradicionais do petismo e da esquerda estão ameaçadas?
O que observo é que existe um longo ressentimento do domínio da esquerda no campo da educação. Há também uma grande resistência à abordagem de temas como educação sexual, no contexto da escola, sem autorização da família. Quase todas as maiorias do mundo acham que educação sexual é uma questão da família, não do estado. Mas é possível discutir democraticamente com as famílias qual vai ser o caminho. Se houver uma discussão com as famílias, elas não vão permitir, creio eu, nem a visão de vanguarda que o Ministério da Educação do PT ou o movimento gay estão querendo imprimir, nem as visões mais conservadoras da extrema-direita. A sociedade modelaria a forma de abordar o assunto.

Roberto Justino/FolhapressRoberto Justino/FolhapressGabeira (de braço erguido) com Lula em 1986: ele diz que a esquerda depende mais do chefe petista, ora preso, do que a direita depende de Bolsonaro
Para onde vai o PT?
O partido teria que fazer autocrítica e tentar reinserir-se no contexto brasileiro. No entanto, acho muito difícil que eles recuperem a confiança da população. Vejo nos Estados Unidos uma recuperação de certas ideias de esquerda, por causa do (Donald) Trump. Pode ser que o Bolsonaro estimule também essa recuperação. Mas lá nos Estados Unidos os democratas não estiveram comprometidos como o PT esteve. Os democratas não foram acusados tão violentamente, com provas tão abundantes, ocêanicas, de corrupção.

Vê chances de o bolsonarismo suplantar o lulismo?
São movimentos diferentes. Lula, pela sua própria lenda de predestinado, encarnou o ideário da esquerda e, a partir da formação de um partido, tomou conta do país. Bolsonaro é produto do processo de intensificação de críticas à esquerda. Surgiram intelectuais com outro discurso e propagandistas na internet muito eficazes. Surgiu uma espécie de força cultural de direita que não existia tão fortemente, e essa força cultural de direita estava ali, observando os movimentos para as eleições, procurando um adversário capaz de enfrentar o PT, e viu nele, Bolsonaro, essa possibilidade. A esquerda depende mais de Lula do que a direita de Bolsonaro.

Como vê a presença do juiz Sergio Moro no futuro governo?
Excelente para Bolsonaro, porque dá a ele um homem de qualidade nos temas mais destacados na campanha, que foram a corrupção e a segurança pública.  Certamente vai fazer um excelente trabalho no Ministério da Justiça, se lhe forem dadas as condições necessárias.

As Forças Armadas tutelarão o governo Bolsonaro?
Não creio que vá existir tutela. As Forças Armadas serão um elemento moderador. Em vários aspectos, como na diplomacia, estão à frente de Bolsonaro. Para os militares, é importante deixar claro que as Forças Armadas são forças de estado, não de um governo.

Mas a presença de militares e de Sergio Moro no governo pode intimidar o Congresso e forçar o apoio ao Planalto?
Não acho. O que determina certa precaução em todos nós são as circunstâncias econômicas e sociais que vivemos, que são de muita instabilidade. O Congresso vai ter condições, assim como a imprensa independente, de formular os seus caminhos e, se houver pressão, resistir. A cúpula das Forças Armadas acostumou-se a trabalhar com o Congresso, em termos de cooperação e diálogo, e vice-versa. Quanto a Moro, o parlamentar que tiver problema e esse problema aparecer, vai ter que responder por ele. Aí já não considero pressão. Será o exercício normal do trabalho do Ministério da Justiça.

E, pela sua experiência na cena política, qual será o papel do Supremo nos próximos anos?
Haverá mais precaução naqueles julgamentos em relação aos quais a opinião pública poderá sentir-se muito ofendida, muito indignada. A maneira como a população valorizou a luta contra a corrupção coloca para os juízes maior reflexão sobre o tema.

Acredita que o ambiente de polarização no país tende a desanuviar-se no curto prazo?
A campanha teve características diferentes das anteriores. Foi mais virtual do que as outras e, por causa disso, teve maior participação popular. Digo participação não no sentido de ir a comício, mas de transmitir informações e expor ideias. Evidentemente, quando há intensa participação coletiva, aparece uma série de problemas, como brigas. A educação política é um processo que não ocorre de uma hora para outra. Só com o tempo vamos chegar à fórmula mineira muito consagrada pelo doutor Tancredo (Neves) de que as ideias podem brigar; as pessoas, não.

Bolsonaro tem condições de pacificar o Brasil?
As primeiríssimas frases pacificadoras pareciam ter sido proferidas contra a sua vontade. Na linha de “vamos pacificar essa merda porque tem que pacificar”. Acho que, com o tempo, à medida que o processo político se desenvolve e você é obrigado a se abrir para a complexidade do Brasil e a diversidade de opiniões e pressões, a pessoa tende a ficar mais sábia e compreensiva. A experiência permite que ela até conheça um pouco melhor a humanidade do que conhecia antes de assumir o poder. Mas você nunca sabe como as coisas vão se passar. Tenho a expectativa de que ele será um cara tranquilo e acho que deveríamos contribuir para que haja essa tranquilidade. Bolsonaro tem muito bom humor e é um cara brincalhão, pelo menos comigo. É preciso estimular esse lado. Vamos domar a fera, não é? Não tem jeito.

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