RuyGoiaba

‘Manda o povo pensar!’

19.10.18

Trinta anos atrás, Paulo Francis –que falta faz um médium que nos conecte a ele hoje— comentava assim as declarações de um diretor americano de teatro, Joseph Papp, que chamava de “inacessível” o texto original das peças de Shakespeare: “Você coça um populista e encontra um real elitista que tem desdém pela inteligência do público”.

Nesta eleição, você coça um “progressista” e encontra um real elitista que tem desdém pela democracia. Pessoas estão votando em Jair Bolsonaro porque são fascistas ou estão sendo manipuladas pelas fake news do WhatsApp; os escândalos de corrupção do PT, a prisão de Lula e o governo desastroso de Dilma Rousseff não têm nada, nadinha a ver com isso.

É, com o sinal ideológico invertido, o mesmo argumento de quem critica os votos do Nordeste nos petistas (em eleições anteriores e mesmo agora, em alguns estados). “Não é possível que essas pessoas façam escolhas tão idiotas sem ser manipuladas; cabe a nós, a elite, os iluminados, os progressistas, apontar o caminho certo. Onde está a imprensa, que não faz nada para evitar a catástrofe?”

A atitude da suposta elite pensante do Brasil não mudou nada em essência desde que Castro Alves escreveu “O Livro e a América”, no século 19. “Oh! Bendito o que semeia/ Livros, livros à mão cheia…/ E manda o povo pensar!” Manda pensar, já que esses jegues não sabem nem amarrar o sapato sozinhos.

E, no entanto, os brasileiros votam consistentemente em quem melhora sua vida –ou, movido pelas decepções anteriores, em quem promete que, daqui pra frente, tudo vai ser diferente. O mesmo impulso básico explica as eleições de candidatos tão diferentes como Collor, FHC e Lula e o favoritismo atual de Bolsonaro. Há na escolha coletiva razões que costumam escapar aos iluminados.

“Ah, seu Goiaba, então o senhor não acha que o eleitorado pode fazer escolhas horríveis?” Acho, e não só horríveis como francamente abomináveis. Mas, tendo feito muitas escolhas reprováveis ao longo da vida –de roupa, namorada, profissão, político na urna, o diabo–, não me sinto com muita moral para subir no caixotinho e apontar o dedo para as opções dos outros.

Dirão vocês que escolher uma roupa ridícula é um problema só meu, e votar num político ridículo compromete a vida do país por pelo menos quatro anos. Sem dúvida. Mas não há opção aí senão tentativa e erro –o velho clichê “os males da democracia se corrigem com mais democracia”. Só levando na cabeça sucessivas vezes é que o brasileiro talvez aprenda.

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Cora Ronai escreveu recentemente um ótimo texto em O Globo criticando o meme “A sua tia não é fascista, está sendo manipulada”, pela condescendência e pelo “o povo não sabe votar” que vem embutido nele. De minha parte, nada contra tias fascistas ou stalinistas, desde que as instituições democráticas –Congresso, Judiciário, Ministério Público, PF etc.– sejam fortes o suficiente para que as ideias delas não se convertam em uma tirania da maioria.

Foco no que interessa: o suflê de batata da tia, e não as opiniões. Aliás, eu votaria tranquilamente no suflê se ele se candidatasse.

Paulo Francis: “Você coça um populista e encontra um real elitista”. Os populistas não mudaram (Foto de Derly Marques – 16.jun.1983/Folhapress)

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A GOIABICE DA SEMANA

Pensei em dedicar a seção a Onyx Lorenzoni, provável chefe da Casa Civil do eventual governo Bolsonaro, falando em cortar 25 mil cargos comissionados e sendo informado de que o governo tem 23 mil. É por isso que defendo a adoção oficial do termo “porrilhão”: se Onyx dissesse “vamos cortar um porrilhão de cargos”, ninguém nem sequer questionaria os números.

Mas o campeão é esse santo homem, Leonardo Boff, que escreveu ao comandante do Exército, Eduardo Villas Boas, no Twitter: “General, faço uma súplica: por favor, que alguém que foi da corporação liquide a democracia e reintroduza um regime ditatorial”. Acho que faltou um “não deixe” depois de “por favor”, mas o Boff que se entenda com seu ato falho.

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