MarioSabino

Como as Democracias Morrem
é uma porcaria de livro

19.10.18

Jornalistas não costumam ler muitos livros, com a exceção daqueles profissionais da resenha que ainda são pagos para exercer a função. Alegam falta de tempo. Assim, quando um livro começa a aparecer frequentemente em reportagens e artigos fora das minguadas seções literárias, deixo de lado as minhas leituras pessoais e me obrigo a ler o que os colegas citam. O livro mais citado atualmente em reportagens e artigos é Como as Democracias Morrem, dos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois professores de ciência política na Universidade Harvard. É usado por aqui para alertar os leitores do risco que Jair Bolsonaro representa para a democracia brasileira.

Por aparecer tanto na imprensa, o livro deve estar vendendo bastante no Brasil. Tanto que Levitsky resolveu tirar mais uma casquinha e publicou nesta semana um artigo na Folha de S. Paulo. Vaticina que “Jair Bolsonaro pode acabar com a democracia brasileira. Ele é mais autoritário que Orban, Erdogan, Duterte e até mesmo que Chávez. Se Bolsonaro vencer, o Brasil vai ficar mais parecido com a Venezuela: as eleições serão menos livres e justas, o executivo abusará constantemente de seus poderes, o país ficará mais militarizado e violento, e direitos civis e humanos serão violados”. Levitsky acrescenta que, para construir uma “frente democrática” contra Bolsonaro, o PT “primeiro, precisa reconhecer seus erros. Isso vai ajudar a deixar o ar mais leve antes de qualquer conversa. Segundo, o PT precisa demonstrar seu comprometimento com o império da lei. O império da lei é essencial para qualquer democracia. É o que separa os verdadeiros democratas de Bolsonaro e sua relação oportunista com a lei. Para fazer esse compromisso crível, é fundamental assegurar que não haverá indulto para Lula e que cabe apenas ao ex-Presidente a tarefa de provar sua inocência perante o judiciário brasileiro. Em uma sentença, o PT tem que mostrar que todos, até Lula, estão sujeitos ao império da lei”. Parece piada – e é uma piada. No mesmo dia em que foi publicado o artigo de Levitsky, o poste do presidiário repetiu ao SBT a lorota de que Sergio Moro, ao condenar Lula, “não apresentou provas” e que os tribunais superiores vão corrigir o “erro”. Cômico. Alguém precisa dizer urgentemente ao coautor de Como as Democracias Morrem que Lula e o PT foram cúmplices de Chávez e Maduro na morte da democracia venezuelana e que defendem a ditadura bolivariana, apesar de explorarem a defesa que Bolsonaro faz do regime militar de 1964.

Em geral, nós todos ficamos impressionados com professores de Harvard. Faz sentido. Nos rankings de universidades, ela aparece sempre entre as primeiras colocadas. A excelência é tamanha que desconfio de que, em Harvard, ganhar Prêmio Nobel é como ganhar o campeonato paulista de futebol para um dos times grandes do estado. Harvard virou um selo de qualidade tão prestigioso que os monoglotas Ciro Gomes e Geraldo Alckmin a incluem nos seus currículos. Basta fazer um curso de férias na universidade para adquirir atestado de sábio. E reputações são catapultadas quando se doa dinheiro a Harvard, como fez o banqueiro André Esteves. Ele presenteou a Business School da universidade com 25 milhões de dólares e, em troca, foi homenageado com uma plaquinha com o seu nome, antes de ser pego pela Lava Jato. Harvard se disse entristecida com o fato, mas não devolveu o dinheiro a Esteves. Tudo bem. Os 25 milhões de dólares certamente tiveram um destino grandioso para a humanidade.

Quem sou eu, portanto, para colocar em dúvida a respeitabilidade de professores de Harvard? Ninguém. Um zero. No máximo, um resenhista medíocre. Mas por ser ninguém, um zero, um resenhista medíocre, é que me sinto à vontade para afirmar que Como as Democracias Morrem é uma porcaria de livro. E mais: afirmo também que os colegas jornalistas não leram essa porcaria direito. Eles citam-no  para alertar os leitores do risco que representa a candidatura de Jair Bolsonaro, como já disse, mas eu saí da leitura ainda mais convencido de que perigo maior seria a eleição do poste do presidiário. Se fosse objetivo, e não um prosélito da esquerda americana, Levitsky teria opinião idêntica, como se verá adiante. O meu julgamento utilizou o metro criado por ele e Ziblatt.

Os professores de Harvard partem do pressuposto óbvio de que democracias podem ser corroídas de dentro para fora por personalidades autoritárias. “Autocratas eleitos” que se vendem como outsiders antissistema e apostam na polarização política para destruir as instituições e perpetuar-se no governo. Eles teriam se tornado mais comuns do que os golpistas que apelam à força das armas para tomar o poder (pelo jeito, a África saiu do radar). Mas Levitsky e Ziblatt chegam à conclusão espantosa, antecipada no começo do livro, de que, sob Donald Trump, a democracia americana encontra-se ameaçada como se fosse uma república latino-americana ou uma nação do Leste Europeu.  Escrevem que “o paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições democráticas – gradual, sutil e mesmo legalmente — para matá-la”. Acrescentam que “Os Estados Unidos fracassaram no primeiro teste em novembro de 2016, quando elegemos um presidente cuja sujeição às normas democráticas é dúbia.” E, em seguida, afirmam não ter certeza de que o famoso sistema de freios e contrapesos americano será capaz de sobreviver a Trump, um “demagogo extremista”.

Não tenho simpatia por Trump, repito o que já escrevi sobre ele num artigo de 2016, de minha lavra exclusiva, para o aborrecimento de leitores que voltarão a me xingar por causa da minha opinião. É um mentiroso igual a qualquer político tradicional. E concordo com Levitsky e Ziblatt que Trump é fruto de uma reação às mudanças demográfico-ideológicas que ocorrem nos Estados Unidos, com todas as suas consequências econômicas e sociais. Mas daí a compará-lo com Mussolini, Hitler, Chávez, Putin ou Erdogan e dizer que o sistema democrático fragilizou-se por causa dele é, come on, guys, de uma desonestidade intelectual digna da USP.

É como se Trump fosse mais perigoso para a democracia americana do que a Guerra de Secessão, a Grande Depressão, a aventura desastrosa no Vietnã, Watergate, os atentados terroristas de 2001 e a crise financeira de 2008. A tal polarização, aquele fenômeno que curiosamente ocorre somente quando a esquerda é apeada do governo pela maioria dos eleitores, preocupa os assustadiços Levitisky e Ziblatt, porque “os políticos norte-americanos agora tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar o resultado das eleições. Eles tentam enfraquecer as salvaguardas institucionais de nossa democracia, incluindo tribunais, serviços de inteligência, escritórios e comissões de ética”.

Como ameaça à democracia, Trump é um fracasso retumbante, convenhamos. Nunca houve um presidente americano tão escrutinado como ele. O Departamento de Justiça não sai do seu pé e o próprio Partido Republicano, acusado de excessivo direitismo por Levitsky e Ziblatt, gostaria de livrar-se do sujeito cor de laranja. A despeito das ameaças de Trump de cercear a imprensa – jamais concretizadas –, os jornalistas surram impiedosamente o inquilino da Casa Branca. Nem mesmo Richard Nixon apanhou tanto. Bater em Trump e esperar o revide no Twitter é ótimo para os negócios, assim como defendê-lo sem vergonha também é fantástico para o bolso, como sabe a Fox News. A circulação dos jornais The Washington Post e The New York Times, francamente hostis a Trump, aumentou de modo impressionante em 2017. O “Pravda on the Potomac” dobrou o número de assinantes digitais; o “Pravda on the Hudson” teve um crescimento de 42% na base de leitores. Este ano deve ser outro sucesso comercial, porque o tiroteio entre o presidente e a imprensa não cessa, para o interesse de ambos os lados (uma troca de tiros deve estar acontecendo neste exato momento). O New York Times chegou a publicar um artigo sem assinatura – sem assinatura, repita-se – atribuído a um assessor com cadeira na Casa Branca que diz que o presidente dos Estados Unidos se comporta como maluco. O autoritarismo de que acusam Trump está de tal forma contido pelos pesos e contrapesos que ele não consegue nem mesmo aprovar com tranquilidade um juiz conservador para a Suprema Corte, por causa de acusações de abuso sexual contra o indicado estampadas em manchetes e que resultaram em investigação do FBI. Ora, democracia nenhuma está em perigo quando a imprensa é livre dessa maneira e fatura com tal liberdade. Em qualquer regime autoritário, a primeira vítima é a liberdade de informação, opinião e expressão.

Um livro que ilustra a possibilidade de corrosão da democracia americana com exemplos latino-americanos e europeus deveria ser menos ligeiro no aspecto histórico. O chileno Salvador Allende é pintado por Levitsky e Ziblatt como um democrata, mas era um marxista declarado que promoveu a paralisação da economia do Chile por meio de um processo de estatização selvagem. O fato de Allende acreditar ser possível chegar ao poder e nele manter-se pelas urnas, a meu ver, só o torna um “autocrata eleito” que não perdeu a ternura – o que não justifica, obviamente, a sua morte trágica e toda a matança promovida por Augusto Pinochet. Levitsky e Ziblatt, aliás, reconhecem que o pacto político chamado de Concertação Democrática, aquela que derrubou o general por plebiscito, fez bem à estabilidade democrática do Chile, ao promover “a prática de cooperação informal” entre os partidos. Inclusive com a negociação de legislação “com partidos de direita que tinham apoiado a ditadura e defendido Pinochet”. E lamentam que os partidos americanos não consigam seguir esse exemplo. É impressão minha ou Levitsky e Ziblatt acham que Bolsonaro pode vir a ser pior do que Pinochet?

A ligeireza dos autores é verificável também pelo seguinte trecho: “Reais ou não, autoritários em potencial estão sempre prontos a explorar crises para justificar a tomada do poder. Talvez o caso mais conhecido seja a resposta de Adof Hitler ao incêndio do Reichstag em 27 de fevereiro de 1933, apenas um mês depois de ele prestar juramento como chanceler. Saber se foi um jovem holandês com simpatias comunistas que ateou fogo ao edifício do Parlamento alemão, em Berlim, ou se foi a liderança nazista é uma questão que permanece em debate entre historiadores”. Como assim? Será que a biblioteca de Harvard não tem um exemplar sequer do portentoso A Ascensão e Queda do Terceiro Reich, do historiador William L. Shirer, que foi correspondente na Berlim nazista?

Shirer diz que a história do incêndio no Reichstag provavelmente jamais será conhecida por inteiro, mas revela que nazistas utilizaram um túnel secreto para chegar ao prédio e lá espalhar gasolina e substâncias químicas inflamáveis, facilitando a ação do holandês Marinus van der Lubbe. O comunista piromaníaco foi encorajado por nazistas infiltrados a realizar o atentado, a fim de pretextar o endurecimento do regime. No julgamento de Nuremberg, Hans Gisevius, oficial do Ministério do Interior da Prússia, disse que Goebbels foi quem primeiro pensou em atear fogo ao Reichstag. Rudolf Diels, chefe da Gestapo, afirmou em depoimento que “Goering sabia exatamente como o fogo começaria” e o mandou “preparar, antes do incêndio, uma lista com pessoas a serem presas imediatamente depois disso”. O general Franz Halder lembrou, no seu depoimento, como Goering vangloriou-se do seu feito: “No almoço de aniversário do Fuehrer, em 1942, a conversa encaminhou-se para o assunto do prédio do Reichstag e o seu valor artístico. Ouvi com as minhas próprias orelhas quando Goering interrompeu a conversa e gritou: ‘O único que realmente sabe sobre o Reichstag sou eu, porque eu pus fogo nele’”. A biblioteca de Harvard não conta com cópias das atas de Nuremberg? Ou já foi queimada por Trump, juntamente com o Capitólio?

Dá para entender que não se pode perder tempo com minúcias históricas, quando se tem pressa em colocar a democracia americana na UTI. Em Como as Democracias Morrem, Levitsky e Ziblatt incluíram tabelas de diagnóstico, como a intitulada “Os quatro principais indicadores de comportamento autoritário”, para iluminar o caminho dos coitados dos eleitores ingênuos. Ao contrário dos jornalistas que usam o livro para alertar sobre o perigo representado por Bolsonaro, usei a tabela para analisar o capitão da reserva do Exército e Fernando Haddad. E, surpresa, surpresa, o mais autoritário pela tabela é o poste do presidiário, não Bolsonaro.

Vamos aos itens da tabela e às respectivas constatações no caso brasileiro (aprenda com você mesmo, Levitsky):

1) “Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)”: Quem tinha no plano de governo violar a Constituição com a convocação de uma Assembleia Constituinte era Fernando Haddad. Ele só voltou atrás depois do desastre do primeiro turno. Quanto ao mesmo tema, Bolsonaro desautorizou Hamilton Mourão, depois que o general apenas disse que notáveis deveriam escrever uma nova Constituição, sem Constituinte. O capitão da reserva errou ao tentar colocar em dúvida a legitimidade das eleições, ao afirmar que haveria fraudes gigantescas por causa das urnas eletrônicas, mas o PT faz coisa pior ao bater na tecla de que a eleição sem o condenado Lula é fraude e espalhar essa mentira internacionalmente;

2) “Negação da legitimidade dos oponentes políticos”: Quem acusa o oponente de “fascista” é o PT, sem nenhuma base para isso, como reconheceu até Fernando Henrique Cardoso. Quando Bolsonaro se refere à participação do PT no autoritário Foro de São Paulo, trata-se de fato gravado e documentado. Em relação aos esquemas de corrupção descobertos desde 2005, a cúpula petista foi definida como organização criminosa pela Justiça brasileira, não pelo capitão da reserva. E nesta reta final de campanha, Haddad tenta deslegitimar Bolsonaro, com uma denúncia até o momento vazia de que o adversário usa ilegalmente o WhatsApp para disseminar fake news  e será eleito por causa dessa suposta fraude eleitoral;

3) “Tolerância ou encorajamento à violência”: Quem ameaçou derramar sangue se Lula fosse condenado foi o PT, que ainda insiste em atacar os juízes que sentenciaram o chefe. Simular que tem arma nas mãos é um mau gesto de Bolsonaro. O PT apoia e conta com o apoio do MST, que lança mão da violência para ocupar propriedades privadas e desafiar a lei. Os radicais de Bolsonaro agem sem o seu consentimento, aparentemente, e os seus atos foram condenados pelo candidato que apoiam. O capitão da reserva justifica a tortura durante o regime militar, algo execrável, mas o PT avaliza o terrorismo das organizações de esquerda da época, como se elas tivessem sido defensoras da democracia, não pela implantação de um regime totalitário de esquerda no Brasil;

4) “Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”: Quem tem no plano de governo o controle da imprensa é Fernando Haddad. Bolsonaro ataca a cobertura dos jornais sobre ele, mas reitera que a liberdade de imprensa é intocável. O PT promoveu e promove a perseguição judicial a jornalistas independentes, caso deste que vos fala. E quer censurar o WhatsApp.

Levitsky e Ziblatt não contemplam, em Como as Democracias Morrem, a mirabolância de um condenado por corrupção e lavagem de dinheiro que planeja escapar da cana diretamente para a Presidência da República, a fim de matar as instituições que o enjaularam. E que conta com um único adversário politicamente forte que defende a permanência do criminoso na prisão. É estranho que os autores, em meio a tantas referências internacionais, tenham ignorado a atual situação de uma das maiores democracias do mundo, a brasileira, que foi e continua a ser minada  por “autocratas eleitos” pelo PT, em aliança com corruptos e fisiológicos de diferentes matizes. Mas não é estranho que Levitsky escreva apressadamente um artigo ligeiro, para vender mais exemplares da porcaria do seu livro a perfeitos idiotas latino-americanos. Harvard, afinal de contas, é respeitabilíssima.

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