Adriano Machado/Crusoé

No bunker dos generais

No subsolo de um hotel de Brasília, oficiais de alta patente do Exército traçam estratégias de campanha e alinham o que seriam os projetos de governo de Jair Bolsonaro
12.10.18

No subsolo de um discreto hotel na região central de Brasília, três generais da reserva do Exército se sentam à cabeceira de uma mesa com 20 interlocutores atentos. Um deles, chamado de “relator”, saca um caderno preto de capa dura e anota a data, 10 de outubro de 2018, e tópicos sobre a “doutrinação da esquerda nas escolas do Brasil”. O tema do encontro seria educação, atendendo a um pedido do presidenciável Jair Bolsonaro disparado por uma mensagem de WhatsApp. O candidato do PSL queria ideias gerais para usar na campanha. E a missão dos militares, ali, era produzir conteúdo para atender à demanda do candidato. Começava assim mais um dia de trabalho no bunker em que ex-militares de alta patente engajados na campanha do presidenciável do PSL traçam estratégias e alinhavam projetos que serão tirados do papel caso Bolsonaro seja eleito presidente.

Era fim de setembro do ano passado quando tocou o celular do general Oswaldo Ferreira, ex-comandante militar do Norte. “Bolsonaro”, mostrou a tela. O general estranhou o chamado, às 9 da manhã. Ele estava havia quase seis meses na reserva e, embora tivesse o número registrado na sua agenda, não era tão próximo do deputado. Bolsonaro queria vê-lo pessoalmente. Às 10 horas, ele chegou no dúplex do general, na Asa Norte de Brasília. Subiram dois lances de escada e se acomodaram na sala de estar. O visitante sentou-se em um sofá amarelo, com almofadas marrons. O anfitrião, do outro lado da mesa de centro, escolheu uma poltrona bege. Engravatado como de costume, o deputado convidou Ferreira para participar de um “projeto que daria um jeito no país”. Disse que o general, que chefiara o Departamento de Engenharia e Construção do Exército, seria de grande valia. Ele respeitosamente declinou. Disse que, como tinha passado à reserva havia pouquíssimo tempo, estava planejando viajar e passar mais tempo ao lado da família. “Nunca cruzei o Atlântico”, lamentou-se. O capitão pelejou para dobrá-lo. Estava difícil. Bolsonaro, então, chispou: “General, estou aqui há duas horas, meu tempo é curto, e quero que o senhor me ajude a mudar o Brasil”.

Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo, também deputado federal, se tornariam habitués do apartamento que viria a ser o primeiro quartel-general da campanha presidencial do capitão em Brasília. Antes de bater ponto na Câmara, a sete quilômetros dali, pai e filho sempre faziam reuniões em volta de uma mesa branca no dúplex, ao lado de um quadro com uma onça na selva. As oito cadeiras logo seriam insuficientes para a tropa. Na casa do general, era Bolsonaro quem gostava de dar as ordens. Ele se sentava sempre ao centro. Em uma ponta, ficava o filho Eduardo. Na outra, outro general, Augusto Heleno Ribeiro, ex-comandante militar da Amazônia que mais tarde seria cotado como vice de Bolsonaro. Com o anfitrião Ferreira e diferentes convidados, a depender do assunto a ser tratado, o grupo gastava horas em acalorados debates.

Quando o assunto era infraestrutura, especialidade de Ferreira, estendiam sobre a mesa grandes mapas do Brasil. Bolsonaro, impaciente, pedia objetividade e ameaçava dormir sempre que sentia que a conversa estava ficando por demais hermética. Ele nem sequer tomava anotações. Nem lia os documentos que eram apresentados. Mostrava-se sempre inquieto. Foi ali mesmo, no segundo piso do apartamento de Ferreira, que os generais um dia resolveram submeter o candidato a presidente a um media training improvisado, comandado por eles mesmos. Acharam que Bolsonaro estava precisando de algumas orientações e decidiram que fariam, por conta própria, o treinamento que normalmente é ministrado por profissionais de comunicação a executivos e autoridades, para ensiná-los a lidar com a imprensa.

Os generais simulavam entrevistas incômodas, tentavam colocar Bolsonaro contra a parede, gravavam as respostas e, depois, juntamente com o candidato, analisavam as imagens. Com jeito, gestos exacerbados, frases truncadas, declarações extremadas e acessos de raiva eram repreendidos pelos generais-professores. Em certo momento, um deles sugeriu a Bolsonaro que parasse de esmurrar a mesa ao falar. “Conte até dez”, propôs, pedindo mais paciência. A campanha estava longe de começar. Por quase um ano, o apartamento de Ferreira sediou as reuniões. Como o número de presentes só fazia aumentar, o general começou a ter problemas. A mulher dele foi a primeira a reclamar. Era muita gente, inclusive desconhecidos, circulando por ali, e as reuniões já não tinham hora para começar nem para terminar. A turma precisava urgentemente arrumar um outro quartel. Em agosto deste ano, o PSL, partido de Bolsonaro, alugou o espaço que hoje serve de bunker para os generais, no subsolo do Brasília Imperial Hotel. A rotina permanece intensa, mas sem a presença de Bolsonaro. Os generais batem ponto no local diariamente, quase sempre com convidados chamados para dar sugestões a projetos que, esperam, serão executados se o capitão da reserva ganhar a eleição.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO general Oswaldo Ferreira e a mesa de seu apartamento onde tudo começou: media training para Bolsonaro
A discretíssima sala Imperial IX virou o principal ponto de referência da campanha bolsonarista em Brasília. Da mesma forma que o “guru” Paulo Guedes, os generais se transformaram nos baluartes da estratégia do candidato. Um papel de destaque que eles tentam rejeitar, temendo a leitura de que Bolsonaro seria a ponta aparente de um novo regime militar. “Não tem nada disso de generais no comando. Fica parecendo que é um complô de generais, um regime militar escondido atrás de uma democracia. Não tem nada disso, tem muito mais civis do que militares”, diz o general Augusto Heleno no hall situado próximo à sala, em meio a mosaicos modernos e móveis que lembram os do Palácio do Planalto, assinados por Sérgio Rodrigues. O espaço que virou o bunker dos generais de Bolsonaro é o menor do complexo de eventos de mil metros quadrados situado no subsolo do hotel quatro estrelas encravado a três quilômetros da sede do governo federal.

Pelo aluguel da sala de 40 metros quadrados, o hotel costuma cobrar de clientes comuns cerca de 20 mil reais por mês. O espaço comporta vinte pessoas. Uma mesa comprida, emendada em outra de maneira a formarem um T, ocupa o centro. É ao redor dela que os generais fazem o que chamam de “plenárias”. Entre os oficiais “fixos” que dão expediente diário ali, além de Heleno e Ferreira há o general Aléssio Ribeiro Souto, engenheiro militar que costuma levar a tiracolo reportagens grifadas sobre Bolsonaro, e o brigadeiro Ricardo Machado Vieira, ex-chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. “Não sou líder de nada. Eu só empurro o carro alegórico. Não gosto de holofotes. Sou o maestro que está de costas para a plateia, regendo os músicos. E não existe isso de eu ser ministro”, desconversa o general Ferreira, que, ao tentar encerrar ligações telefônicas com um interlocutor insistente, repete o cacoete de Jair Bolsonaro: “Tá ok? Tá ok?”. O próprio candidato já avisou a Ferreira, em mais de uma ocasião, que, se eleito, ele será seu ministro dos Transportes.

As “plenárias” seguem disciplina militar, como não poderiam deixar de ser. Elas ocorrem sempre às quartas-feiras de manhã, e vão das 9 às 13 horas. Às terças, juntam-se ali subgrupos montados pelos generais: o de ciência e tecnologia, que se reúne de manhã, e o de educação, à tarde. Há outras divisões, que tratam de temas como saneamento, saúde e esportes. Sob a batuta dos generais, integram os subgrupos professores, advogados, bombeiros, profissionais liberais e administradores. Os mais conhecidos pedem que a campanha mantenha seus nomes no anonimato. Alguns têm cargo de confiança no governo e temem represálias. “Falamos com autoridades que não podem ser expostas, por compromissos que elas assumiram. É preciso tomar cuidado com isso”, recomenda, em tom sisudo, o general Aléssio.

No bunker, o cuidado para evitar a atenção de curiosos é redobrado. A janela da sala fica sempre fechada. A porta é aberta sempre com cuidado, depois de uma cuidadosa inspeção visual. Não há caracterização alguma da campanha. Bolsonaro ainda não visitou o lugar. Quando participou das reuniões, foi por telefonemas em viva-voz ou videoconferência. Frequentemente, o candidato pede aos generais que lhe enviem por mensagem os tópicos das discussões “mastigados”, de forma que possa repetir as ideias centrais em entrevistas ou discursos. “Ele volta e meia cita em entrevistas o que mandamos por mensagem”, diz Heleno, anunciado nesta quinta-feira pelo próprio Bolsonaro como seu futuro ministro da Defesa caso ganhe a eleição. Da sala dos generais sairá em breve um documento mais robusto, apelidado de “protocolo de intenções”, em linguagem acadêmica, com o que seriam as diretrizes gerais de um governo bolsonarista.

A fachada do hotel onde, no subsolo, os generais se reúnem para traçar os projetos
Os integrantes dizem que todo o trabalho é voluntário, e o único dinheiro gasto pelo partido ali é com o aluguel da sala, mais o preço de uma bandeja de pão de queijo, um galão de água e uma garrafa térmica de café. Os generais gostam de repetir que estão “a serviço do Brasil” e que são “soldados de Jair”. Eles se comunicavam por um grupo de WhatsApp batizado com o sugestivo nome de“Brasil 2019”. Bolsonaro fazia parte. Na última terça-feira, o canal foi extinto por ordens vagas do braço político da campanha – provavelmente temendo vazamentos e polêmicas às vésperas do segundo turno. Os generais do bunker, de todo modo, têm linha direta com “Jair”. Trocam mensagens, vídeos, áudios. Desde o atentado a faca no mês passado, admitem que a comunicação murchou, pela necessidade de repouso do presidenciável. “Mas horas depois da cirurgia em Juiz de Fora, na maca, ele já pegou o celular e nos mandou mensagens”, afirma o general Ferreira, que nasceu na cidade mineira e cujos familiares estiveram com Bolsonaro meia hora antes do esfaqueamento.

O cuidado com a questão da hierarquia está presente o tempo todo – a ordem é evitar desconfortos. Mas como os generais vão se submeter ao capitão se chegarem ao Palácio do Planalto? A resposta vem de pronto. “Quando era deputado, ele já tinha precedência sobre os generais. É só olhar no decreto de precedência das autoridades. Então, não existe isso. Como presidente, então, nem se fala, é autoridade máxima. Somos soldados. Tá ok?”, diz Ferreira, conhecido por defender ideias polêmicas – ele entende que órgãos como Ibama e Ministério Público, por exemplo, não podem ser entrave para obras de interesse público. “Hoje, o cara, para derrubar uma árvore, vem um punhado gente para encher o saco”, soltou, em entrevista ao Estadão. O general afirma que, no bunker, dificilmente há grandes divergências em debates longos sobre temas como imigração venezuelana e combate às drogas. “Eu tenho uma opinião. Muitas vezes não é a mesma do general Heleno. Mas o clima é de conciliação.”

A despeito de gozarem de linha direta com Bolsonaro, os generais mostram algum descompasso em relação ao restante da campanha. Ferreira, que há um ano conduz as equipes temáticas na área de infraestrutura, diz que jamais viu Gustavo Bebianno, o presidente do PSL e coordenador político do comitê bolsonarista. Afirma ainda que só encontrou o vice da legenda, Julian Lemos, uma vez, na residência do deputado Onyx Lorenzoni, o ministro da Casa Civil de Bolsonaro. O vice da chapa, general Hamilton Mourão, da mesma turma de Ferreira no Exército, não dá pitaco nas discussões e esteve apenas de passagem no bunker. Paulo Guedes foi uma única vez, em 17 de setembro. Falou pouco e deixou claro que o eixo econômico das propostas ficaria no Rio, sob o seu comando. A rotina de convidar personalidades repete aquela da época em que os encontros ocorriam no dúplex de Ferreira. Alguns dão palestras sobre suas áreas. Recentemente, estiveram por lá o oncologista fluminense Nelson Teich, cotado para ser ministro da Saúde, e o executivo João Irineu Medeiros, diretor da Fiat Chrysler.

Embora se concentrem em assuntos técnicos, não raro as conversas derivam para avaliações políticas. Na última quarta-feira, após discutirem educação, repisando que é preciso retomar a autoridade do professor em sala de aula, dois integrantes conversavam exaltados, nos últimos instantes da “plenária” do dia. Um deles observou: “O Haddad subiu numa velocidade muito grande nas redes. Isso vira o jogo, hein? É muito perigoso”. Outro respondeu, como quem dizia que isso não é problema deles: “Não temos condições de fazer isso. É Jair e os filhos dele. É um instrumento de vitória deles. Liga para o Eduardo”. O primeiro emendou: “Estão voltando a associar os vídeos pornôs do Alexandre Frota”. A porta se abriu e os civis partiram apressados, carregando pastas e cadernos. Os generais ficariam por mais tempo, fitando os celulares com a testa franzida, assoberbados com dezenas de ligações e mensagens não respondidas. Heleno, com pose de protagonista, deu o tom do cansaço: “Minha mulher já está com o saco na lua, não aguenta mais”.

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