Eduardo Anizelli/FolhapressBolsonaro: 69,9% dos votos válidos no estado mais rico do Brasil, segundo pesquisa divulgada hoje

A nova direita brasileira mostra a cara

O mesmo fenômeno que levou à votação de Jair Bolsonaro no 1º turno da corrida presidencial provoca uma reconfiguração na cena política nacional e impõe um desafio à nova força: será preciso mostrar resultados logo
12.10.18

Cada uma das cinco eleições presidenciais brasileiras realizadas após a redemocratização carrega uma marca. É o que as define e as leva para as páginas da história como uma leitura do espírito do seu tempo. Em 1989, foi a eleição da democracia, a primeira após um intervalo de 29 anos. Em 1994, foi a do Plano Real, lançado três meses antes do pleito e suficiente para eleger em primeiro turno o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Em 1998, foi a primeira com a possibilidade de reeleição. Em 2002, a da vitória do PT após seguidas tentativas frustradas de chegar ao poder. Em 2006, foi a eleição do Bolsa Família. Em 2010, a primeira em que uma mulher, Dilma Rousseff, chegou ao Planalto. Em 2014, foi a do aberto estelionato eleitoral. A deste ano caminha para ser a eleição em que chega ao poder uma nova direita brasileira – uma direita diferente daquela que se convencionou chamar de direita ao longo de décadas no Brasil, e que alcança a ribalta na esteira do sucesso eleitoral do presidenciável Jair Bolsonaro, a face mais conhecida do zeitgeist destas eleições de 2018.

Bolsonaro teve mais de 49 milhões de votos no primeiro turno. Seu partido, o PSL, conquistou o maior número de votos para a Câmara (quase 11 milhões e meio) e terá a segunda maior bancada, passando de nove para 52 deputados, 47 deles novatos. Pelo menos 22 parlamentares de origem militar foram eleitos. No Senado, grande parte da renovação, igualmente histórica, se deu à direita. Nomes como o do jornalista conservador Carlos Viana, do PHS de Minas, e de Major Olímpio, do PSL de São Paulo, além do próprio filho de Bolsonaro, Flavio, superaram políticos tradicionais e devem liderar uma nova frente na casa. Nos estados, o Novo, alinhado a uma agenda ultraliberal, pode eleger o empresário Romeu Zema como governador do segundo maior colégio eleitoral do país, Minas Gerais. Um aliado de Bolsonaro, Wilson Witzel, do conservador PSC, é favorito no Rio. Uma onda direitista, enfim, varreu o país. O que a gerou? E quais são as suas consequências práticas?

A resposta mais simples está no crescimento do antipetismo, na reação de parte significativa dos brasileiros à sucessão de escândalos políticos cujo apogeu veio com a Operação Lava Jato, e na crise econômica, que naturalmente leva os eleitores a buscarem alguma mudança. Mas há mais. O que as urnas trouxeram é resultado de um movimento cujo embrião está no primeiro mandato de Lula. Àquela altura, com o escândalo do mensalão, grupos de direita antes restritos a sites acanhados na ainda incipiente internet começaram a ocupar também outros espaços. Em paralelo, no ritmo da crescente rejeição ao PT, falar em direita foi deixando de ser um pecado mortal no país – por muito tempo, esse espectro da política esteve intrinsecamente ligado à imagem de presidentes do regime militar e de coronéis nordestinos. O ideário de direita foi, então, ganhando voz. Inclusive em foros mais sofisticados, como institutos liberais que, instalados nas grandes capitais do país, passaram a reverberar a reação ao crescimento da esquerda.

Em 2010, com a eleição de Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro percebe esse movimento e cria uma conta no Twitter que virou, digamos, a plataforma de lançamento de sua estratégia para chegar ao Planalto. Aos poucos, ele foi modulando o discurso para esse público. Até então mais focado em segurança pública e na defesa de militares, passou a adotar com maior força a defesa de valores. Bandeiras como o combate ao aborto e ao chamado kit-gay viraram prioridade. A crise econômica causada pelo governo Dilma e a Lava Jato coroaram esse processo, além da descoberta dos sucessivos desvios dos dois partidos dominantes até então da política brasileira, o PT e o PSDB. “O PSDB tenta captar esse movimento da nova direita. Questiona a reeleição de Dilma, apoia o impeachment e integra o governo Temer. Mas o envolvimento de Aécio Neves na Lava Jato esfacela o partido, que passou a ser identificado com os males do sistema político. O PT cometeu uma série de erros de ordem moral e estratégia, gerou o antipetismo que é hoje uma força que joga água no moinho de Bolsonaro e da direita”, diz a cientista política Camila Rocha, que neste ano conclui um doutorado na USP sobre a nova direita brasileira.

Quanto ao que virá pela frente, a resposta depende de uma série de fatores. A começar pela forma como atuarão os novos protagonistas da cena, especialmente os eleitos para o Congresso Nacional, onde já é certo que ela estará bem representada. Os especialistas observam que, na realidade, a direita brasileira não é uniforme e homogênea nos seus métodos e agendas, tampouco suas bases eleitorais têm o mesmo perfil. “Há vários tons da direita, cada um com características próprias”, avalia o professor de Ciências Políticas da Universidade Federal do Paraná Alexandre Codato. Até há pouco, eram dois os grupos que se destacavam nesse espectro político. Um deles é a direita “tradicional”, representada por políticos como Ronaldo Caiado, eleito domingo governador de Goiás em primeiro turno. Outro é a direita “neoliberal”, que até aqui representava os interesses do mercado ao mesmo tempo em que buscava progresso social. O PSDB, a despeito de sua origem social-democrata, a liderava de certa forma.

Dilma Rousseff deixa o Planalto após o impeachment: os escândalos do PT abriram caminho para Bolsonaro e seus seguidores
O que o Brasil viu surgir das urnas no último domingo consolida a força de três novas tendências. A primeira é a direita “popular”, formada por religiosos com forte ligação com as camadas mais carentes da população. São, em sua maioria, neopentecostais (o segmento religioso que mais cresce no Brasil) e costumam integrar partidos pequenos e médios, caso do PSC e do PRB. Seu principal objetivo é barrar alterações na legislação de costumes, como aborto e casamento gay. Esse grupo tem no deputado reeleito Marco Feliciano, do PR, um de seus baluartes. Já a direita “libertária”, da qual o Partido Novo é o melhor representante, é pró-mercado e contra o Estado demasiadamente social. Defende o liberalismo e a liberdade de escolha individual como um direito absoluto. Por fim, há a direita “nacionalista”, que em valores e costumes se aproxima da direita popular, mas se diferencia pela predominância em seus quadros de militares e seu ideário de defesa da mão forte do Estado.

O sucesso de Bolsonaro nesta campanha em muito se explica por ele ter conseguido assimilar em seu discurso, se não a totalidade, ao menos parte das bandeiras de cada uma dessas correntes. Se vencer a disputa contra Fernando Haddad, porém, o sucesso de seu governo dependerá da maneira como irá conciliar os interesses dos diferentes grupos a partir do Palácio do Planalto. “Somos diferentes da velha direita. Não somos patrimonialistas, não somos donos de jornais. Viemos para quebrar essas lógicas”, diz Kim Kataguiri, 22 anos, uma das caras da nova direita “libertária” no Congresso Nacional. Quarto deputado federal mais votado em São Paulo, pelo DEM, com 458 mil votos, o jovem já declarou apoio a Bolsonaro no segundo turno e chegou a lançar sua candidatura à presidência da Câmara, embora tenha na idade um empecilho (pela Constituição, é preciso ter no mínimo 35 anos). Ele quer manter a campanha mesmo assim. A estratégia? Tentar unir a direita. “Quero agregar os ideológicos de direita e mostrar que há alinhamento com Paulo Guedes. Unidade absoluta é muito difícil, mas é possível, sim, levar adiante um programa de reformas estruturantes.”

Além de Kataguiri, outra leva de novos deputados pretende defender o liberalismo em seus mandatos. Um deles é o paulista Vinícius Poit, 32 anos, do Novo. Formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, ele teve mais de 200 mil votos. É filho do empresário Wilson Poit, secretário municipal de Desestatização e Parcerias da Prefeitura de São Paulo e que foi dono da Poit Energia, empresa de locação de geradores e transformadores. Vinícius Poit vem com a defesa de uma agenda de desburocratização e empreendedorismo. Outra cara é a de Marcel van Hatten, da mesma idade e partido. Foi o mais votado no Rio Grande do Sul, com 349 mil votos. Defende o combate de privilégios e reforma do estado. O príncipe Luiz Philippe Bragança, descendente da família real brasileira, teve 116 mil votos. Suas propostas estão centradas na defesa de um estado eficiente.

Em comum, todos eles têm uma presença forte na internet e a ligação com institutos liberais, os chamados “think tanks”, que se proliferaram nos últimos anos nem uma espécie de reação, por fora da política, ao petismo. Um dos maiores é o Millenium, do qual Paulo Guedes, o guru de Bolsonaro, foi fundador. Em seu último artigo no site do instituto, em junho, Guedes escreveu: “É tempo de experimentar a liberal-democracia. Uma aliança de centro-direita na política em torno de um programa liberal na economia”.

Lançado em 2006, ano da primeira reeleição de Lula, o objetivo do Millenium sempre foi disseminar os ideais liberais. No começo, a partir de indicações de textos pela internet. Com o passar do tempo, passou a produzir conteúdo próprio  por meio de mais de 100 colaboradores, dentre os quais alguns dos principais economistas brasileiros, como Armínio Fraga, Fernando Schuller, Gustavo Franco e Samuel Pessoa. O impeachment de Dilma Rousseff em razão das pedaladas fiscais foi o auge do instituto. “Ali percebemos que havia falta de informação, crime fiscal, privilégios para setores, gastos públicos. Vimos que era a possibilidade de discutir isso”, diz Priscila Pinto, CEO do Millenium. Para ela, o governo Bolsonaro é uma oportunidade de levar essa agenda liberal à prática. “O pensamento liberal vai ter uma chance agora. Haverá um espaço para essa pauta, com pessoas no governo que veem benefícios em uma economia competitiva e aberta”, conclui.

Rogério Castro/Estadão ConteúdoRogério Castro/Estadão ConteúdoPaulo Guedes, o guru de Bolsonaro: ele ajudou a fundar os institutos liberais que guiam muitos dos políticos da nova direita
Outro instituto é o Mises, fundado em 2007, um ano após a criação do Millenium. Ele defende um modelo econômico liberal mais radicalizado, intitulado “libertário”, pelo qual a participação do estado na economia é quase nenhuma. A proposta é decorrente da chamada “escola austríaca”, de onde vem o ideólogo que o batiza, Ludwig von Mises. O instituto produz um artigo econômico denso por dia que mais parece um capítulo de livros de economia, e o distribui a uma rede de jovens estudantes de economia, direito e ciências sociais. Tem mais de 70 títulos publicados. “O Brasil por dez anos foi na direção errada, principalmente depois da crise mundial com 2008. Veio mais regulação e controle do estado. Esse vetor se já não virou com o governo Temer, pelo menos diminuiu seu ímpeto. Mas agora o vetor mudou de lado”, defende o economista Hélio Beltrão, presidente do Mises. Ele avalia haver uma nova geração de parlamentares que levarão esse ideário para o Congresso. “E as caras velhas irão acompanhar essa tendência”, acredita.

Tanto o Millenium quanto o Mises integram a Rede Liberdade, por onde mais de 30 institutos liberais do país se comunicam. Ali estão outros como o Instituto Liberal, do Rio; o Instituto de Formação de Líderes, de Belo Horizonte; e o Instituto de Estudos Empresariais, do Rio Grande do Sul. Em comum, uma incessante busca de relacionamento com as universidades, a partir da avaliação de que há muita restrição ao pensamento liberal na academia. Segundo eles, a esquerda barra o pensamento liberal já na universidade. Outro ponto em comum é que os líderes desses institutos atuam principalmente nos setores financeiro e produtivo. E, agora, terão seus braços no Congresso e na Esplanada. Kim e Marcel van Hatten acompanham o Instituto Mises Brasil desde a fundação praticamente. O príncipe é fundador do Acorda Brasil. Vinícius Poit é do Instituto de Formação de Líderes, focado no empreendedorismo.

A questão é que essa direita mais alinhada à agenda econômica liberal integrará, se Bolsonaro vencer, a mesma base aliada com setores para quem a prioridade é a defesa de uma agenda mais focada em costumes, como a proibição do aborto, do casamento gay, e a liberação das armas. Para não falar dos nacionalistas do mesmo campo ideológico. Solucionar essa equação será um dos primeiros desafios do capitão, se derrotar o petista Fernando Haddad no dia 28. A saída é a negociação que passe pela defesa da agenda de costumes em troca da aprovação de medidas para o ajuste fiscal que agradem todos os lados. “Essa nova direita vai precisar discutir a convergência sobre temas econômicos, principalmente sobre privatizações. Mas acredito que seja o único ponto que pode causar divergência. Há certa uniformidade da nova direita quanto aos costumes”, diz o deputado reeleito Sóstenes Cavalcanti, do DEM, um dos líderes da bancada evangélica.

Há outro ponto: a reforma da Previdência, rejeitada pelo Congresso no governo Temer, inclusive por parlamentares de direita. Para unir sua possível base, a ideia de Bolsonaro é votá-la apenas no segundo semestre. Até lá, ele pretende fazer uma auditoria das contas, mostrar que há cobrança dos grandes devedores, prestar contas periodicamente à população, a fim de preparar o terreno de modo que tanto ela quanto os parlamentares a aprovem. O PSL, o partido de Bolsonaro, que elegeu a segunda maior bancada, terá um papel crucial. Primeiro por seu tamanho. Segundo, porque é o retrato mais bem acabado da nova direita brasileira. Há ali representantes dos mais diversos setores: militares, policiais, profissionais liberais, servidores públicos e empresários. A bandeira que os une sem maiores diferenças é o antipetismo – o que ainda é pouco para um partido que está prestes a ser a principal força congressual de um presidente da República.

Aos 81 anos, um dos maiores símbolos vivos da direita brasileira, o ex-ministro e ex-senador Jorge Bornhausen, que apoiou Geraldo Alckmin nas eleições presidenciais deste ano, constata com satisfação que há um movimento favorável à direita pela primeira vez em muitos anos no Brasil. Mas acha que é muito cedo para fazer projeções. “A sociedade está com um olhar mais receptivo às ideias liberais, o que permitiu esse avanço, mas é difícil saber se vai perdurar”, diz ele. Bornhausen afirma que a direita só poderá se consolidar no poder se conseguir obter resultados positivos advindos de uma melhora expressiva da economia. E, diante do atual quadro de devastação, isso tem de ocorrer rapidamente. Transformar o discurso em ação efetiva é um desafio monumental, como também sabia por experiência própria Roberto Campos, a maior inteligência da história do liberalismo brasileiro. Para  tanto, a nova direita terá de por a cara para bater.

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