Antonio Milena/ABrLula e Muammar Kadafi: eles se tratavam como irmãos

A conexão Lula-Kadafi

Crusoé teve acesso a detalhes do que Antonio Palocci revelou sobre a remessa de 1 milhão de dólares do ditador líbio Muammar Kadafi para Lula e o PT. O ex-presidente cuidou pessoalmente para que a operação não fosse descoberta e pediu dinheiro à Odebrecht para "calar Duda Mendonça", que ameaçava "entregar tudo"
12.10.18

Em dezembro do ano passado, a notícia de que o ditador líbio Muammar Kadafi mandou 1 milhão de dólares para a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 causou furor entre os petistas. A razão maior da raiva era a origem da informação: a revelação partira de Antonio Palocci, o ex-faz-tudo de governos do PT que se convertera em um dos maiores inimigos de Lula e do partido após se oferecer para fechar um acordo de delação premiada com a Operação Lava Jato. Palocci estava preso havia sete meses e negociava o acordo com o Ministério Público. Àquela altura, ele só dava as linhas gerais do que tinha para revelar. A informação vazou. Na prática, Palocci apenas prometia contar o que sabia — sobre esse e outros assuntos. Sem detalhes. As minúcias, evidentemente, viriam na fase seguinte, caso os procuradores topassem a delação.

O acordo com o MP não prosperou e Palocci seguiu preso. Ele, então, passou a oferecer as mesmas informações diretamente à Polícia Federal. As conversas com os policiais seguiram em frente, meses depois o acordo com os policiais saiu e o ex-ministro destampou sua Caixa de Pandora. Entregou, entre outras informações preciosas, o passo a passo da transação com o ditador líbio — com direito a detalhes bombásticos guardados até hoje em segredo e que Crusoé revela com exclusividade nesta reportagem.

Ao detalhar na delação as ilegalidades de que participou em parceria com Lula, Antonio Palocci revela que foi o ex-presidente, pessoalmente, quem negociou o repasse de Kadafi e que, ciente de que se tratava de uma operação ilegal em que o “dinheiro só poderia ser repassado fora do país”, se empenhou para que a operação se concretizasse sem deixar rastros. Seguiu-se, então, uma sucessão de crimes com a participação ativa de Lula. O roteiro envolve a busca por um banco que pudesse fazer a transação com segurança, uma conta secreta na Suíça e, depois, uma operação de emergência com a empreiteira Odebrecht para comprar o silêncio do marqueteiro Duda Mendonça, que ameaçava contar tudo o que sabia sobre Lula e o PT. Eis os detalhes.

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O pedido de Lula

Palocci conta que, com a corrida presidencial de 2002 em curso, foi procurado pelo próprio Lula no comitê da campanha, em São Paulo. Na companhia de um assessor, o então candidato petista queria saber como fazer para receber um “montante expressivo” no exterior. Foi o próprio Lula quem tratou de dar mais explicações. Disse que o dinheiro só poderia ser repassado para a campanha fora do país por causa de sua origem, que não podia, em hipótese alguma, aparecer. Lula dizia que o “montante inicial”era de 1 milhão de dólares, o que à época equivalia a aproximação 3,5 milhões de reais. Palocci, ainda sem saber de onde viria o dinheiro, sugeriu então que a operação poderia ser feito por meio do Banco Safra. Lula, de pronto, disse que não. Foi nesse instante, segundo Palocci, que o então candidato a presidente revelou qual era a fonte dos recursos. Lula explicou que o recebimento não poderia se dar via Banco Safra porque a fonte era o ditador líbio Muammar Kadafi, que, nas palavras do chefe petista, jamais concordaria em depositar dinheiro em uma instituição controlada por um membro da comunidade judaica. Palocci, agora sabendo de onde viria a bufunfa, concordou com a ressalva de Lula. E se comprometeu a buscar uma alternativa. Na delação, ele diz que ficou de pensar na melhor maneira de viabilizar o recebimento do montante, o que, ele mesmo diz, dependeria de uma “operação de branqueamento” – ou seja, lavagem de dinheiro.

A alternativa

Não demorou muito para que Antonio Palocci chegasse à solução que pudesse atender o pedido de Lula. O ex-ministro conta que, depois de pensar, lembrou que o marqueteiro Duda Mendonça – responsável pela campanha de Lula naquele ano – tinha uma conta na Suíça. E que, como Duda tinha altos valores a receber referentes aos serviços prestados ao PT, uma opção poderia ser essa: pedir a Kadafi que o depósito fosse feito na conta do marqueteiro baiano. Mais uma vez, Lula volta à história. Palocci diz que o procurou para consultá-lo a respeito da ideia. Os dois, a partir de então, definem que a conta suíça de Duda era a melhor forma de aproveitar o dinheiro que o ditador líbio havia oferecido à campanha. A engenharia já estava desenhada. O valor que entraria para Duda na Suíça seria descontado do montante que o PT devia ao marqueteiro no Brasil. Na prática, o que Kadafi depositaria para Duda lá fora o partido economizaria aqui no Brasil, podendo usar o resultado da economia para outros fins. Para todos os efeitos, a contribuição do ditador teria grande valia. Era a lógica da compensação bancária – a mesma do dólar-cabo, largamente usado por doleiros. No caso em questão, era o Duda-cabo. Assim, concordaram Palocci e Lula, os riscos seriam menores. Como o dinheiro não podia entrar diretamente no Brasil, sob pena de ser rastreado e criar embaraços legais para a campanha, a solução Duda Mendonça era a ideal. O PT conseguiria usar o dinheiro e, ao mesmo tempo, esconder a origem.

O aval do marqueteiro

Faltava combinar com Duda Mendonça. A tarefa ficou a cargo de Palocci, segundo ele próprio relata em um dos termos da delação premiada, a que Crusoé teve acesso. O ex-ministro era o coordenador da campanha de Lula. Como tal, tinha contato com Duda Mendonça, o marqueteiro responsável por moldar o “Lulinha Paz e Amor” que finalmente levaria o petista, depois de sucessivas derrotas, a alcançar o Palácio do Planalto. Palocci conta que encontrou Duda no Hotel Meliá do WT Center de São Paulo, onde o baiano estava hospedado. A conversa foi direta. Ele disse ao marqueteiro que, do valor que Duda teria a receber pelo PT, 1 milhão de dólares seriam pagos na Suíça. Só não contou de quem viria o dinheiro. Limitou-se a dizer que era de “um doador” que não poderia fazer o pagamento diretamente no Brasil. Duda anuiu. E forneceu os dados de sua conta para que a transferência fosse efetivada. Palocci diz que, com os dados em mãos, procurou o assessor de Lula que havia participado da primeira conversa para explicar como o pagamento deveria ser operacionalizado. Estava tudo combinado para que esse assessor fizesse, na sequência, o contato final com um importante auxiliar de Kadafi, de nome Khalifa. E assim foi feito. Dias depois, relata Palocci, a transação já havia se concretizado. O ex-ministro conta que falou com Duda Mendonça e o marqueteiro foi logo se apressando em dizer que tudo tinha dado certo. Duda até brincou, segundo Palocci: “O cara lá é firme, hein? Fez a transferência rapidinho”.

O rastro

Na delação, Palocci diz que o caminho do dinheiro pode ser perfeitamente rastreado. Lembra que, a partir da entrada de 1 milhão de dólares na conta que Duda Mendonça mantinha na Suíça, no ano de 2002, seria possível seguir o trajeto inverso da transferência e, finalmente, identificar a origem. A conta de Duda, diz, é a mesma que aparece em outros acordos de delação premiada firmados com a Lava Jato – contas do marqueteiro no exterior são mapeadas pela Polícia Federal desde o escândalo do mensalão, quando ele já era acusado de receber, lá fora, dinheiro sujo do esquema. Antonio Palocci lembra que justamente em 2005, ano em que eclodiu o mensalão, Lula foi à Líbia para um encontro oficial com Kadafi. A ideia era aproveitar a oportunidade para agradecê-lo e, mais do que isso, estreitar as relações com o ditador já pensando nas eleições de 2006, quando o petista se candidataria de novo. Palocci diz que iria, com Lula, ao encontro com Kadafi. Conta que chegou até a tirar o visto para a entrada na Líbia. Mas, em razão de outros compromissos, acabou não viajando. Conforme planejado, a relação do ditador com o PT permaneceria firme pelos anos seguintes, como se verá mais adiante.

A ameaça de Duda

Em outra passagem da delação, Palocci lembra que em 2005, na esteira do mensalão, Duda Mendonça foi chamado a prestar depoimento à CPI dos Correios, aberta pelo Congresso para investigar o esquema. O depoimento foi comprometedor para o PT. O marqueteiro, entre lágrimas, dizendo que estava ali “abrindo o coração”, confessou aos integrantes da CPI ter recebido no exterior parte do pagamento pelos serviços prestados ao partido. O testemunho causou comoção. A oposição viu na confissão um tiro de morte no governo Lula. Poderia ter sido, mas não foi. Agora, Palocci lembra que o depoimento de Duda foi ruim para o PT, mas que Duda não contou tudo. “Detalhes mais obscuros” foram preservados pelo marqueteiro, diz o ex-ministro. Em seguida, ele detalha o motivo. Palocci afirma que, dois dias após o depoimento à CPI, foi procurado por Duda. Eram 3 horas da madrugada. O marqueteiro, desesperado, queria falar com o então ministro da Fazenda. Os dois se encontraram na residência oficial do ministro, no Lago Sul de Brasília. Segundo Palocci, Duda chorava. Dizia que estava “se sentindo abandonado” e que, mesmo já tendo prestado o depoimento no Congresso, ainda estava “querendo entregar tudo”.

Lula: é preciso “calar a boca do Duda”

Palocci diz que, na sequência, procurou Lula para reportar o que ouvira de Duda. O então presidente marcou um encontro urgente em uma sala da Aeronáutica na Base Aérea de Brasília. Lula, ainda de acordo com o relato de Antonio Palocci, ficou “extremamente preocupado” e disse que era preciso “dar um jeito de calar a boca do Duda” para ele “parar de falar besteira”. A preocupação tinha razão de ser, e isso Palocci também explica. O ex-ministro diz que, embora Duda não soubesse que o 1 milhão de dólares que recebera na Suíça tinha como origem a fortuna do ditador Muammar Kadafi, a simples entrega das informações sobre a conta poderia provocar “um grande estrago”. Kadafi era um pária na comunidade internacional – o ditador sanguinário era suspeito de financiar o terrorismo e acusado, ele próprio, de ter ordenado o atentado que derrubou um avião da Panam sobre a cidade escocesa de Lockerbie em dezembro de 1988, matando 270 pessoas. A descoberta do repasse à campanha petista poderia representar, para Lula e para o governo, muito mais do que “um grande estrago”. Mais uma vez o então presidente resolveu agir pessoalmente para prevenir os danos. Era preciso, afinal, arrumar dinheiro com urgência para calar Duda. E, segundo Palocci, assim foi feito, como se verá a seguir.

A “compra do silêncio”

Preocupado com a ameaça do marqueteiro, Lula se lança pessoalmente na missão para calá-lo. Antonio Palocci afirma que o então presidente lhe disse que tentaria com o empreiteiro Emílio Odebrecht uma ajuda financeira para “comprar o silêncio de Duda”. Depois disso, em uma nova conversa, o presidente manda Palocci procurar Pedro Novis, um dos principais executivos da empreiteira, para ajustar o pagamento. Lula explicou ao então ministro que havia combinado com Emílio o “repasse de dinheiro para Duda Mendonça”. Palocci conta que nem Lula nem ele disseram a Emílio Odebrecht ou a Pedro Novis qual era a real finalidade do pagamento a Duda Mendonça. Ao pedir o socorro, explicaram apenas que tinham uma dívida a ser quitada com o marqueteiro. Após o ajuste com os representantes da empreiteira, coube a Palocci alinhar com Novis a execução da operação cala-boca: ele diz que combinou com o executivo o repasse, pela Odebrecht, de 15 milhões de reais para Duda. O valor, transferido também para uma conta do marqueteiro na Suíça, seria uma contrapartida a “atos de ofício” praticados pelos então poderosos do PT em favor da empreiteira – uma prática que, anos mais tarde, com a Lava Jato, viria a ser esquadrinhada à exaustão. Confessando um crime, Palocci diz que, com o pagamento, ele e Lula conseguiram “amenizar a situação”, comprando finalmente o silêncio de Duda. Tudo foi feito exatamente como o chefe queria.

Outros negócios

Palocci vai ainda mais além. E revela que, da relação com Kadafi, viriam outros dividendos para Lula e o PT. Ele afirma que, em 2007, recebeu um pedido especial do então presidente da República. Lula queria que o ministro fosse até a Odebrecht cobrar o repasse de valores que a empreiteira lhe devia por contratos que ganhara na Líbia graças a sua interlocução privilegiada com Muammar Kadafi. Segundo Palocci, Lula usou o cargo de presidente para fazer lobby para a empreiteira junto ao ditador e, em troca, cobrou dividendos. O ministro afirma que foram várias as obras que a Odebrecht ganhou na Líbia depois que Lula, valendo-se do cargo de presidente, defendeu junto a Kadafi a entrada da Odebrecht no país. Ele diz que Lula tratou do tema diretamente com o ditador. Tempos depois, era chegada a hora, nas palavras do próprio Palocci, de “cobrar a conta”.

Mais lucros

Incumbido por Lula de ir até a Odebrecht cobrar a comissão devida pelos negócios fechados na Líbia, Palocci diz que marcou um encontro com Marcelo Odebrecht e transmitiu o pedido de Lula. O filho de Emílio, que anos mais tarde passaria uma longa temporada na cadeia graças à Lava Jato, respondeu que concordava em repassar os valores, mas antes precisava que Lula voltasse a conversar com Kadafi. Marcelo queria que Lula convencesse o ditador a aumentar a margem de lucro da empreiteira nos contratos que ela mantinha em território líbio. Palocci conta que voltou a Lula e apresentou a demanda de Marcelo Odebrecht. Depois disso, afirma, o presidente conversou com Kadafi e a margem de lucro da empreiteira foi aumentada, conforme solicitado. Feito isso, diz o ex-ministro que virou delator, a Odebrecht disponibilizou 15 milhões de reais para Lula e o PT. Ele esmiúça o trajeto da“comissão”, um tanto curioso. Conta que a Odebrecht recebia do governo líbio e a pedido da empreiteira os valores eram repassados, veja só, para uma conta mantida na Suíça por Paulo Preto, apontado como operador de propinas do PSDB. Na sequência, o também operador Adir Assad, outro fisgado pela Lava Jato, realizava uma operação de dólar-cabo com Paulo Preto e disponibilizava os valores em espécie, no Brasil, para a Odebrecht. A parte que cabia ao Lula e ao PT, conforme o relato do delator, era retirada em espécie na sede da empreiteira por Branislav Kontic, braço-direito de Palocci durante anos.

***

Lula e o PT sustentam que Palocci mente. Quem conhece as frentes de apuração abertas com base no mapa apresentado pelo ex-ministro garante, porém, que muito em breve será possível comprovar cabalmente o que de mais relevante ele conta. Os relatos sobre as relações perigosas do ex-presidente com o ditador líbio, morto em 2011, são só uma ponta do que vem por aí. Os apuros de Lula tendem a se multiplicar.

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