Adriano Machado/CrusoéToffoli em plenário: em busca de uma marca

O Supremo em ebulição

Uma queda de braço entre os ministros Ricardo Lewandowski e Luiz Fux aprofunda a crise interna na Suprema Corte e expõe Dias Toffoli, recém-chegado à presidência do tribunal
05.10.18

José Antônio Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo com uma missão. Ex-advogado do PT e dono do currículo mais fraco do tribunal, ele é conhecido por sua perspicácia política e por transitar bem entre os ministros. Era essa experiência que ele queria usar para apaziguar os ânimos dentro do tribunal, estremecido por trocas de farpas públicas entre ministros. O plano não durou um mês. Foi interrompido por uma barulhenta guerra de decisões entre dois ministros, com direito a intrigas e petardos poderosos. De um lado dessa guerra está o próprio presidente do STF e seu vice, Luiz Fux. De outro, e até aqui isolado, o ministro Ricardo Lewandowski.

No centro da discussão, um pedido para que o ex-presidente Lula pudesse ser entrevistado, dentro do prisão na Polícia Federal, pelo jornal Folha de S.Paulo. A polêmica é uma clara sinalização da crise que virá quando o Supremo colocar em julgamento a soltura de Lula ou mesmo os recursos contra a prisão em segunda instância. No caso da entrevista, o ex-presidente condenado já tinha sido vetado de receber a imprensa por ordem da primeira instância da Justiça Federal. Não satisfeito, o jornal foi ao Supremo. E o processo caiu nas mãos de Lewandowski. Era o ponto de partida para mais a nova guerra da corte.

Para a defesa de Lula, independentemente da decisão, já havia dividendos a serem comemorados. Ou ele falaria e teria alguma chance de, mais uma vez, tentar influenciar a eleição de dentro da prisão, ou o silêncio imposto pela Justiça serviria para reforçar o discurso de vitimização e perseguição. Lewandowski liberou a entrevista do amigo Lula na última sexta-feira, 28. O caso cresceu quando o partido Novo entrou com um pedido em separado, que não foi distribuído a Lewandowski.

O Novo queria que Lula fosse proibido de receber jornalistas e, para isso, entrou com um tipo de ação que vai direto para a presidência do tribunal. Toffoli tratou de se esquivar. Sob o argumento de que estava fora da cidade, passou a bola para Luiz Fux, vice-presidente da corte. Isso é, no mínimo, incomum, uma vez que os processos são digitais e os ministros costumam decidir à distância. Fux também tinha agenda fora de Brasília naquela mesma sexta-feira, mas matou no peito. Assim, Toffoli não precisava tomar lado em um pedido que tinha toda a atenção do PT. Ao evitar se associar mais uma vez ao partido e se posicionar contra ou a favor de Lula, Toffoli incendiou o próprio tribunal.

Fux vetou a entrevista e criou uma disputa sem precedentes dentro da corte, ao derrubar a decisão do próprio colega e proibir que qualquer entrevista feita fosse publicada. Fux entendeu que o petista, condenado e vetado pela lei da Ficha Limpa, poderia atrapalhar a eleição ao dar a entrevista. “A desinformação do eleitor compromete a capacidade de um sistema democrático para escolher mandatários políticos de qualidade. A confusão do eleitorado faz com que o voto deixe de ser uma sinalização confiável das preferências da sociedade em relação às políticas públicas desejadas pelos anos que se seguirão. É nesse sentido que se faz necessária a relativização excepcional da liberdade de imprensa”, escreveu o ministro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéLewandowski é o pivô da mais nova crise na corte
A própria tramitação mostra como o jogo foi jogado. Foi tudo muito rápido. Era manhã de sexta-feira quando Lewandowski liberou a entrevista. Às 19h10, o partido Novo entrou com pedido de veto. Às 20h51, a chefe de gabinete da presidência avisou a secretaria do tribunal que Toffoli estava ausente e que o vice, Fux, deveria ser acionado. Toffoli estava fora de Brasília. Fux também, mas decidiu mesmo assim. Às 22h42, estava barrada a entrevista de Lula. Lewandowski não engoliu. Viu na postura de Toffoli e Fux uma dobradinha contra ele. Parênteses: antes de assinar o despacho, Fux, em um encontro em São Paulo, já havia indicado seu desagrado com a decisão do colega. “O Lewandowski é homem do PT no tribunal, mas isso tem limites”, disparou, com os erres realçados do seu sotaque carioca. Era o prenúncio de que ele reverteria a decisão. E assim fez.

Na segunda-feira, três dias depois da canetada de Fux, Lewandowski se reuniu com Toffoli, também em um evento em São Paulo. Ali percebeu que não teria apoio do presidente do tribunal. E decidiu partir para a briga. Em uma nova decisão, reforçando a autorização para a entrevista, ele atacou Fux. Apontou oito erros cometidos pelo colega, o chamou de “subalterno” e, ainda, criticou a administração do tribunal por ter passado o pedido para o vice-presidente porque Toffoli viajava. Colocar tudo isso no papel, mesmo em um tribunal que se acostumou às farpas dos últimos, era um passo radical. Lewandowski chegou a escrever que a ordem de Fux era “teratológica”  – no juridiquês, um palavrão, quase um xingamento, para classificar algo como absurdo. Na decisão, Lewandowski fez questão de historiar a sequência de decisões, incluindo até os horários de ingresso de cada um dos expedientes no sistema do tribunal.

Toffoli, pressionado diante de duas decisões díspares, resolveu agir. O plano do Supremo pacificado já tinha descido ladeira abaixo. O presidente, então, tomou lado e determinou a suspensão do caso até o plenário se reunir. Fux saiu fortalecido. Toffoli, também. Quem acompanha de perto o tribunal disse que, enfim, a corte tinha um presidente com pulso firme – ele sucedeu a hesitante Cármen Lúcia. Ao passar a bola para o plenário, Toffoli reservava para si o poder de escolher quando isso seria julgado – ou se ficaria no fim da fila até o esquecimento.

Para que o presidente do tribunal tentasse finalmente dar a palavra final ante os despachos divergentes, deu-se uma outra costura de bastidores. Entrou em cena, nessa parte da novela, um personagem que nada tinha a ver com o imbróglio jurídico. Para tomar a decisão, Toffoli precisava ser provocado. E ainda na segunda-feira, Rogério Galloro, diretor-geral da Polícia Federal, comunicou o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que já estava tudo pronto para cumprir a segunda ordem de Lewandowski, tomada após a canetada de Fux. Em tese, estava tudo certo para que a entrevista fosse feita. Valeria a última decisão, liberando o acesso à cela de Lula.

Foi aí que Jungmann, a quem a PF está subordinada, levantou a bola para Toffoli cortar. Sob a justificativa de que era preciso dirimir a qualquer sombra dúvida, ele questionou formalmente o tribunal sobre qual decisão estava valendo. Toffoli, como presidente, respondeu mais do que depressa. A “consulta” era a deixa para Toffoli se manifestar, defender seu vice-presidente e empurrar a solução para o plenário. Lewandowski, de novo, estava atropelado. Pela primeira vez em anos, havia ordem em cima de ordem, ministro desmandando em ministro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPara Fux, entrevista de Lula causaria “confusão” no eleitorado
A situação era tão fora do esquadro que sobrou para Gilmar Mendes, ministro que protagoniza 11 em cada 10 embates do tribunal, o papel de bombeiro. “Está superado, vamos ver como se encaminha, vamos aguardar. A gente não acende o fósforo para ver se tem gasolina”, disse Gilmar ao comentar a guerra de decisões. O último tiro, pelo menos agora, veio nesta quarta-feira, 3. Respondendo a um pedido do próprio Lula, Lewandowski se manifestou pela terceira vez – de novo, favorável à entrevista. Mas o ministro colocou mais uma dose de pólvora no barril. Desta vez, porém, com o cinismo típico do jogo político que costuma ser travado do outro lado da Praça dos Três Poderes.

Antes de tornar público o despacho, Lewandowski brincou com jornalistas. Disse que estava por vir uma decisão “bombástica”. No papel, contudo, não havia piada. Lewandowski escreveu que, como da última vez Toffoli fez um “esclarecimento” (sim, o ministro, ironicamente, pôs as aspas) e avocou para si o processo, a ordem deveria ser encaminhada ao gabinete da presidência “para deliberar o que entender de direito”. Em bom português: para que Toffoli fizesse o que bem entendesse, já que da outra vez ele definira a querela. Em duas horas, Toffoli respondeu. Também com alguma ironia. “Louvando a iniciativa” de Lewandowski, renovou o “não” ao ministro e a Lula, até que o plenário pare para tratar do tema. E isso só vai acontecer quando o próprio Toffoli quiser.

Curiosamente, ao defender a entrevista de Lula, Lewandowski colocou o petista no mesmo patamar de criminosos notórios, como a homicida Suzane von Richthofen, o traficante Fernandinho Beira-mar e o senador cassado Luiz Estevão – que falaram com a imprensa no cárcere. “Não é crível, portanto, que a realização de entrevista jornalística com o custodiado, ex-Presidente da República, ofereça maior risco à segurança do sistema penitenciário do que aquelas já citadas, concedidas por condenados por crimes de tráfico, homicídio ou criminosos internacionais, sendo este um argumento inidôneo para fundamentar o indeferimento do pedido de entrevista”.

Professor da FGV Direito Rio e um dos mais destacados estudiosos da Suprema Corte, Joaquim Falcão vê nessa crise mais um desdobramento dos problemas internos do tribunal, com as sucessivas mudanças administrativas no tribunal, cada uma com perfil diferente. Para ele, essa instabilidade contamina os processos. Falcão cita, por exemplo, o fato de Toffoli ter se colocado como indisponível por estar em São Paulo e passado o bastão para o seu vice tomar a decisão. “O tribunal precisa se organizar internamente. Isso é a fonte da incerteza. O Brasil se surpreendeu com uma regra que não sabia que existia, que o presidente vai a São Paulo, o vice assume. E se ele for até Goiás? Ele passa para o Fux também?”, indagou.

Na quarta-feira, enquanto Lewandowski finalizava sua última decisão e devolvia o imbróglio para Toffoli, o Supremo realizava um evento na biblioteca do tribunal para lançar um livro que tem Gilmar Mendes como um dos autores. Era como se a corte estivesse em paz. Só que não. Lewandowski foi o último a aparecer. Fux já não estava mais no salão. “Eu o cumprimentei. Alguns colegas têm relação de amizade e todos temos uma relação institucional”, tratou de explicar Lewandowski, indagado por Crusoé se havia encontrado Fux e se haviam se falado (o detalhe é que ele, na resposta, fez questão de separar o cumprimento institucional das relações de amizade entre alguns). Luiz Fux havia sido um dos primeiros a chegar. Quando ele entrava, tocava ao fundo uma música instrumental, daquelas de elevador. Era o tema do filme Titanic.

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