Valter Campanato/Agência Brasil

Uma seita na Esplanada

O consórcio da corrupção instalado no Ministério do Trabalho dá a dimensão da ousadia de seus líderes. Em tempos de Lava Jato, eles preferiam o risco da prisão a deixar de roubar. E o pior: o Planalto avalizava a farra
21.09.18

Em um país de 13 milhões de desempregados, a combinação entre o velho fisiologismo e a burocracia caótica transformou o Ministério do Trabalho em uma máquina de fazer dinheiro. Dentro dela, sindicatos que teoricamente deveriam servir aos interesses de trabalhadores viraram braços para políticos praticarem desvios multimilionários e engordarem, assim, os próprios bolsos e suas estruturas partidárias. As engrenagens dessa máquina foram escancaradas pela Polícia Federal em uma investigação iniciada há mais de um ano. Na última terça-feira, a Operação Registro Espúrio foi a campo com sua quarta fase ostensiva. As provas reunidas até agora mostram que nada mudou na Esplanada dos Ministérios, apesar de a Operação Lava Jato estar há quatro anos colhendo políticos metidos em desvios. O retrato que emerge da operação é desolador. O governo Temer seguiu a cartilha dos governos do PT e loteou o ministério. Saiu o PDT, entraram o PTB e o Solidariedade. Com a caneta na mão, ambos partiram para aquele que ainda parece ser o objetivo maior dos partidos que se digladiam por cargos relevantes: arrecadar.

Chama a atenção o grau de ousadia dos envolvidos no esquema. Primeiro pelas fraudes toscas, incluindo falsificação de documentos, que davam origem aos desvios. Depois, pela coragem e pela desfaçatez com que os corruptos continuaram a agir mesmo após a deflagração da primeira fase da operação. Para a Polícia Federal, o esquema funcionava como uma “seita religiosa”. E a comparação, vale dizer, não é apenas retórica. Em mensagens interceptadas pelos policiais, os chefões eram tratados, em diferentes escalas, como “líderes”. Do alto da cadeia de comando vinha o aval para a primeira etapa: antes de tudo, era preciso ter as pessoas certas nos lugares certos. Os líderes tinham que, explicitamente, dar sua permissão. O processo, de acordo com as investigações, corria com pleno conhecimento da cúpula do governo. Documentos obtidos por Crusoé mostram que o Palácio do Planalto se encarregava de fazer a triagem e de averiguar o aval dos padrinhos de quem era indicado para os cargos de interesse da quadrilha. Desde que houvesse a chancela da “seita”, pouco importava o currículo do indicado.

Valter Campanato/Agência BrasilValter Campanato/Agência BrasilO deputado Jovair Arantes, do PTB de Goiás, também era líder da “seita”
Um exemplo ilustrativo de como isso funcionava está em uma mensagem de WhatsApp, datada de 25 de junho passado, que foi encontrada no celular de Helton Yomura, então ministro do Trabalho. Os tempos já estavam desfavoráveis para os políticos e seus apadrinhados que povoavam a pasta. No mês anterior, a Polícia Federal havia feito buscas nos endereços de caciques do PTB. Yomura, sem reservas, queria emplacar seu número dois no ministério. Nessa altura, ele envia uma mensagem para Carlos Henrique Sobral, número dois da Secretaria de Governo, aquela do ministro Carlos Marun. Sobral tem por missão gerenciar os nomes indicados por aliados para ocupar cargos no governo Temer. Chapa do notório Eduardo Cunha, ele está na função há algum tempo. Chegou com Geddel Vieira e lá ficou com Marun. Após receber a consulta de Yomura, Sobral é direto na pergunta: “Padrinhos?”. “Jovair Arantes”, responde o ministro.

Líder do PTB na Câmara, o goiano Jovair Arantes já tinha sido alvo da PF, mas isso não era motivo suficiente para criar qualquer embaraço. Muito pelo contrário. Um dos “sócios” do PTB ao lado de Roberto Jefferson, o deputado era um dos que mandavam e desmandavam no ministério. Seu aval, como “padrinho”, era um belíssimo cartão de visitas. Das quatro fases da Operação Registro Espúrio, três se concentraram no partido da dupla Jefferson-Jovair. Alvejado pelo mensalão, condenado e preso, Roberto Jefferson manda no partido e, em troca de apoio a Temer no Congresso, ganhou o direito de escolher o ministro. Primeiro, indicou a própria filha, a deputada Cristiane Brasil, cujo nome acabou vetado pela Justiça em uma longa e tensa novela. Depois, decidiu colocar no cargo o próprio Yomura. O ex-ministro logo passaria a figurar entre os suspeitos de atuar no balcão que vendia registros sindicais no ministério – o esquema, segundo a polícia, rendia 4 milhões em propinas a cada registro negociado.

Com o desenrolar das investigações, a PF avançou sobre outro partido que dividia com o PTB os cargos importantes do Ministério do Trabalho: o Solidariedade, do também notório Paulinho da Força. Na mais nova etapa da operação, deflagrada na terça-feira, os policiais pediram a prisão do advogado Tiago Cedraz, filho de Aroldo Cedraz, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, negou o pedido, mas autorizou que os policiais prendessem temporariamente um sócio do advogado e também o chefe de gabinete de Paulinho, Marcelo de Lima Cavalcanti. De acordo com a investigação, o grupo se dedicava à exploração de outro esquema, que também desviava milhões. O alvo era a Conta Especial Emprego e Salário, que é administrada pela pasta e custeia benefícios aos trabalhadores. Segundo a Polícia Federal, funcionários do ministério e advogados atuavam em conluio para, a partir de processos fraudados, sacar cifras vultosas da conta em nome de entidades sindicais. Estima-se que ao menos 9 milhões de reais tenham sido desviados.

José Cruz/Agência BrasilJosé Cruz/Agência BrasilPaulinho da Força, “dono” do Solidariedade: o partido atuava nas duas pontas do esquema
Uma das operações fraudulentas envolve a desconhecida Fetthebasa, a Federação dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade dos Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Amapá. Na prática, a entidade era controlada por Paulinho da Força — seu presidente é, oficialmente, membro do conselho fiscal do Solidariedade. No total, a federação recebeu 3,8 milhões de reais irregularmente, sob a fajuta justificativa de que queria o ressarcimento de valores recolhidos a mais. Os homens de Paulinho, ao fim e ao cabo, atuavam nas duas pontas: em uma, pediam o dinheiro em nome da entidade e, em outra, autorizavam no ministério que o pagamento fosse realizado. Como a pasta estava dominada, não havia nem sequer o cuidado de disfarçar a esperteza. Em um dos casos detalhados pela polícia, o despacho no ministério ocorre antes mesmo de o pedido, em nome da entidade, ser protocolado. Em outro deslize da quadrilha, a rapidez com que tudo aconteceu foi o que chamou a atenção. Seria um recorde na burocracia federal se não fosse uma fraude. Houve quatro despachos no processo em um mesmo dia. Um em Brasília, outro em Goiânia e, depois, mais dois em Brasília. Detalhe: a entidade beneficiária do pagamento irregular é da Bahia.

Na “seita religiosa” montada para desviar dinheiro no Ministério do Trabalho existiam até gradações de liderança. Na parte que cabia ao PTB, havia “líder maior” e “líder”, expressões que o próprio grupo utilizava em mensagens de celular para se referir aos manda-chuvas. O título mais nobre, de líder maior, era de Roberto Jefferson. Abaixo dele, estava o deputado Jovair Arantes. As entranhas do caso foram expostas por Renato Araújo, que chefiava a área de registro sindical do ministério e foi preso em maio deste ano. Delator, ele tentou justificar sua própria participação no esquema. Disse que se não obedecesse às ordens dos políticos seria demitido imediatamente. No balcão de venda de registros sindicais, ele contou, o modus operandi da seita tinha etapas a serem seguidas de acordo com as orientações dos caciques do PTB. Se tecnicamente o pedido fosse inviável, tudo era feito e refeito de modo a atender as ordens. Sempre mediante o pagamento da propina, que em última instância era destinada aos chefes.

Ao Palácio do Planalto não cabia apenas o papel de avalizar os nomes que os partidos acomodavam no ministério para fazer o esquema funcionar. Em pelo menos um caso, um assessor do presidente Michel Temer também aparece como “cliente” do balcão. Renato Araújo, o delator, contou que em maio do ano passado foi chamado ao palácio por Tadeu Filippelli, então assessor especial do presidente, que queria aprovar o registro de um sindicato. O pedido não foi adiante por uma razão prosaica. Na semana seguinte ao encontro, Filippelli seria preso. Não por isso, mas por suspeitas de desvio de dinheiro público nos tempos que ele era vice-governador do Distrito Federal.

Quando efetivou Helton Yomura como ministro, em abril deste ano, o presidente Michel Temer discursou com pompa no Planalto: “A prioridade número um do nosso governo, o Helton já sabe disso, é a criação de empregos. E nisso eu tenho a absoluta convicção, Helton, que você estará empenhado dia e noite. Quando digo dia e noite, é para terminar meia-noite”. A missão, como é possível perceber, não foi cumprida como o presidente anunciou diante das câmeras. A seita tinha outras prioridades. E o Planalto, do exigente Temer, sabia bem disso.

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