ReproduçãoAdélio: investigação na reta final

O mistério de Adélio

O que já se sabe e o que é preciso descobrir, para o bem da democracia, sobre o homem que tentou matar o presidenciável Jair Bolsonaro e, logo depois do crime, passou a contar com a solidariedade de anônimos que lhe pagam advogados caros em dinheiro vivo
14.09.18

Na carceragem de Juiz de Fora, Adélio Bispo de Oliveira fitava o chão e só falava quando lhe faziam perguntas. Horas antes, ele cravara uma faca no abdômen de Jair Bolsonaro, o candidato do PSL à Presidência da República, durante um evento de campanha no centro da cidade. O ex-ajudante de pedreiro de 40 anos se aproximara de Bolsonaro a 75 metros do local do atentado. Espremido na multidão, foi acompanhando o movimento como se fosse um apoiador do candidato. Por vezes, para não chamar atenção, repetia as palavras de ordem gritadas pelos demais. E pedia, insistentemente, para tirar uma foto com o ex-capitão do Exército. O tempo todo, ele carregava, envolta em um jornal, a faca que usaria no ataque.

Adélio contaria, depois, que tinha consciência de que estava em uma missão suicida. Ele acreditava que, logo após esfaquear o seu alvo, seria morto. Alguns militantes pró-Bolsonaro até que tentaram espancá-lo, mas o socorro chegou rápido – os policiais que o prenderam acabaram por salvá-lo. Em um relato confuso, já na delegacia, disse que, antes do atentado, chegou a publicar um texto de despedida da vida em uma rede social. Quando lhe pediram mais detalhes sobre a suposta mensagem, e ouviu dos presentes que não havia nada em seus perfis que pudesse ao menos se parecer com um texto de despedida, se disse vítima de hackers.

Já na cela, Adélio repetia duas frases, quase que cochichando consigo mesmo. “Agi sozinho”, dizia. “Não estou aguentando de tanta dor”, emendava, levando as mãos às costelas e à cabeça. A imagem do atentado é fartamente conhecida e já entrou para a história das campanhas presidenciais brasileiras. O que falta ser esquadrinhado – e isso a Polícia Federal está tentando fazer – é por que razão Adélio decidiu atentar contra a vida de Jair Bolsonaro. Ele garante que o fez por conta própria. Mas os investigadores levam a sério a hipótese de haver, por trás da tentativa de assassinato, mandantes ou incentivadores.

A investigação, até aqui, está repleta de sinais trocados e elementos estranhos. Adélio estava supostamente desempregado e, antes, ocupara vagas de baixo salário — mas tinha entre seus pertences um cartão de crédito internacional. Meses antes do atentado, desembolsara cerca de 700 reais em um curso de tiro em Santa Catarina. Tinha notebook e quatro celulares, dois deles smartphones, mas frequentava lan houses com o cuidado de não usar sempre os mesmos computadores. Era solitário, mas recebeu de pronto os serviços de quatro advogados criminalistas renomados em Minas Gerais, contratados de maneira nebulosa, mediante a garantia de anonimato dos contratantes, e pagos em dinheiro vivo.

ReproduçãoReproduçãoA lan house no centro de Juiz de Fora: Adélio pedia para usar computadores diferentes
Preso, Adélio desandou a falar de política. Para os advogados e para os policiais, tentava mostrar intimidade com o tema. Comparou Bolsonaro a Adolf Hitler e Benito Mussolini, descrevendo as etapas da “conquista da sociedade” e do “falso messianismo”. Dizia que o candidato a presidente queria “exterminar” negros, pobres e índios. “O servente de pedreiro estava mais para engenheiro”, admitiu um dos advogados em conversa com Crusoé. Intercalados por queixas de dores dos sopapos que recebeu na rua, os relatos eram de quem sonhava ser político um dia.

Ele disse que já produziu mais de cem “projetos de lei” – “roubados” por políticos depois de serem publicados no Facebook. Inclusive pelo próprio Bolsonaro, queixou-se, quando o presidenciável incorporou críticas ao modelo de nomeação de ministros para o Supremo Tribunal Federal. O criminoso falou que teria até “patenteado” as ideias. Contou ainda que, certa feita, indignado com o custo de uma obra em Minas, exposto em uma placa em frente à construção, fez três orçamentos para efeito de comparação. Todos ficaram abaixo do preço e ele, então, teria encaminhado uma denúncia à Justiça.

Adélio tentou ser deputado estadual pelo PSOL, após sete anos de filiação ao partido no diretório municipal de Uberaba. Reclamou por ter sido vetado. Ele teria buscado, depois, uma candidatura de última hora pelo PSD. Também em vão. Em seu Diário, Crusoé publicou em primeira mão o vídeo da audiência de custódia em que a Justiça decidiu manter Adélio preso, bem como a lista de itens apreendidos na pousada em que ele estava hospedado em Juiz de Fora, onde chegou duas semanas antes do atentado.

Em meio aos pertences do ex-ajudante de pedreiro, a Polícia Federal também encontrou 51 papéis com anotações diversas. Entre eles, havia uma referência a um jovem de classe média de 22 anos preso por tráfico de drogas em Criciúma (SC) e o nome de uma nutricionista de Florianópolis que, procurada por Crusoé, disse não ter qualquer ligação com o agressor de Bolsonaro.

ReproduçãoReproduçãoO agressor de Bolsonaro em interrogatório: caras e bocas de quem esconde algo, segundo especialista
Folheando um pequeno caderno branco, os policiais perguntaram a Adélio o que estava ali. Eram manuscritos ininteligíveis. Os agentes suspeitavam de que fossem informações bancárias. Ele respondeu que se tratava, na verdade, de um código de atendentes de telemarketing que aprendeu em um curso. Adélio já trabalhou em uma empresa do ramo, sediada no Rio de Janeiro, por duas vezes. As primeiras explicações não convenceram os investigadores, que continuam a achar tudo muito esquisito.

“As hipóteses são várias”, diz um deles. Os policiais estão reconstituindo os passos percorridos por Adélio nos últimos meses, cruzando dados e tentando fechar um quebra-cabeças cujas peças, à primeira vista, não parecem se encaixar facilmente. O notebook e os celulares de Adélio estão sendo periciados.

No raio de um quilômetro a partir da modesta pousada onde ele se hospedou, estão alguns locais cruciais para a investigação. Um deles é óbvio: a rua Halfeld, perto do cruzamento com a rua Batista de Oliveira, onde ele tentou matar Bolsonaro. O outro é a pacata lan house que costumava frequentar, diariamente, duas vezes por dia. Adélio pagava 3 reais por sessão. Era o preço de uma hora de acesso à internet. Um funcionário da lan house disse a Crusoé que o visitante, agora famoso, acessava mais frequentemente o Facebook. Os policiais federais agora tentam acessar a caixa de mensagens privadas trocadas por ele por meio da rede social.

Nos dias em que frequentou a lan house, Adélio usou seis computadores, cujos discos rígidos agora estão com a polícia. Foram apreendidos na última segunda-feira, conforme revelou Crusoé, em uma discreta ação da PF. Adélio fazia questão de intercalar as máquinas que usava. O empregado do estabelecimento diz que ele se mostrava calado e discreto. A descrição coincide com as versões dos raros familiares que topam falar sobre o caso. Adélio Bispo tem cinco irmãos, mas diz não manter contato com nenhum deles.

Fábio Motta/Estadão ConteúdoFábio Motta/Estadão ConteúdoAdélio em meio à multidão: ele conseguiu chegar mais perto de Bolsonaro a 75 metros do local do ataque e seguiu acompanhando o candidato
Uma sobrinha do agressor que mora em um bairro pobre de Montes Claros, onde Adélio nasceu, afirma que perdeu o contato com o tio há anos. “Ele murmurava sozinho, ficava trancado em casa e precisava de ajuda. Não está se fazendo de coitadinho”, diz. Além de ser distante dos familiares, Adélio era um nômade. Até 2013, trabalhou em 20 empresas — quando não eram de construção civil, eram do comércio. Ao longo dos anos, teve empregos em cinco estados: Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.

No dia 5 de julho, Adélio atirou. Mas era apenas mais um dos clientes da .38, uma escola de tiro de São José, na região metropolitana de Florianópolis. O pacote mais básico do clube custa 689 reais e dura dois dias. O clube confirma que Adélio fez aulas apenas no dia 5. Era uma quinta-feira. Dois dias depois, Carlos Bolsonaro, filho do presidenciável que é vereador no Rio, também visitaria o clube. Não há, por ora, evidências de que a visita de Adélio tivesse algo a ver com a visita do filho de Bolsonaro. Mas é algo a ser levado em conta: ele já estaria, àquela altura, no rastro da família?

O clã Bolsonaro é bem próximo dos donos do clube de tiro. A escola é administrada pelo ex-delegado Tim Omar de Lima e Silva e por seus dois filhos: Tony Eduardo e Rafael. Tony e os irmãos Carlos e Eduardo Bolsonaro, deputado federal que busca a reeleição, são amigos. Quando Jair Bolsonaro foi a Florianópolis no ano passado, já em pré-campanha para ser presidente do Brasil, dividiu a mesa do jantar, em um hotel, com os donos do clube. Na mesma época, Tony foi a uma escola de tiro em São Paulo fazer uma palestra com Eduardo Bolsonaro, que, a exemplo do pai, é vidrado no tema. “Democracia é uma mentira. É dizer que o seu voto vale o mesmo do que o craquento ali da rua”, disse Tony, exaltado, à plateia que perguntava sobre os caminhos para obter uma licença de porte de armas.

As peças com encaixe difícil na história de Adélio não param por aí. O advogado Zanone Júnior conta que no último dia 6 dirigia seu carro nas proximidades de Belo Horizonte, onde mantém um de seus escritórios (os outros são em Betim e em Contagem), quando seu telefone tocou. Ele diz que já sabia que Bolsonaro havia sido esfaqueado em Juiz de Fora. O número que o chamava era desconhecido, com prefixo do interior do estado. A chamada era de WhatsApp. O advogado diz que atendeu pelo viva-voz do carro. Tratava-se de uma pessoa disposta a lhe pagar para que pegasse o caso de Adélio.

Raysa Leite/FolhapressRaysa Leite/FolhapressO instante do ataque: premeditação e frieza
“Por eu estar ajudando, corro algum risco?”, perguntou o interlocutor do outro lado da linha, cuja identidade ele se nega terminantemente a revelar. Zanone diz apenas ser alguém que “já esteve na igreja com Adélio” e que, por solidariedade, queria contratar advogados para o agressor, desde que jamais fosse identificada. Mais tarde, segue o defensor, seu celular tocou novamente. Desta vez era um número de Belo Horizonte e região. Do outro lado da linha, uma segunda pessoa que ficou de acertar o pagamento – e cujo nome ele tampouco revela. Marcaram de se ver. O encontro ocorreu em um lugar monitorado por câmeras. O advogado diz que, lá, após negociação, recebeu os honorários. Em dinheiro vivo, acondicionado em um envelope tirado de uma bolsa — ele também mantém em segredo o valor. “Nem meus colegas advogados sabem quem são as pessoas, e não vão saber.”

Era só a primeira parcela do pagamento. A segunda veio no dia seguinte, na sexta-feira, 7 de setembro. Ainda na quinta-feira, ele ligou para o colega Pedro Lima, que trabalha em Barbacena, a 100 quilômetros de Juiz de Fora, e pediu que ele corresse para a Delegacia de Polícia Federal, onde estava Adélio Bispo. Depois, completaram o grupo Marcelo Manoel e Fernando Magalhães, com quem Zanone já trabalhou em pelo menos 300 causas. Zanone é conhecido nos tribunais em Minas. Atuou no caso do goleiro Bruno Fernandes, defendendo o ex-policial Bola, que aparecia como cúmplice do goleiro no assassinato de Eliza Samudio.

O perfil psicológico do homem que esfaqueou Jair Bolsonaro também está envolto em mistério. Ele ainda não passou por avaliação médico-psiquiátrica. Nesta semana, a Justiça negou um pedido da defesa para que Adélio passasse a ser tratado como mentalmente insano — esse seria o caminho mais curto para reduzir sua pena. O agressor tem “raciocínio organizado e discurso articulado”, constatou o juiz federal Bruno Savino, de Juiz de Fora. O magistrado admitiu que, caso os advogados apresentem um laudo atestando a insanidade de Adélio, poderá rever a questão. Um psiquiatra de São Paulo já se colocou à disposição para fazer o exame sem cobrar nada.

Por ora, a mais bem acabada manifestação de Adélio é a da audiência de custódia, no vídeo de 12 minutos que Crusoé antecipou para seus leitores. De camiseta laranja, de detento, e cabeça raspada, ele começa a depor de braços cruzados e olha com frequência para baixo. Alguns gestos de tensão contrastam com sua fala pausada e mansa. “Ao narrar sobre as ameaças feitas por um líder policial da cadeia onde foi detido, que o maltratou porque havia tentado matar o candidato dele, Adélio faz um gun steeple (gesto de arma de fogo), simbolizando a intenção de matar Bolsonaro. A manifestação mostra suas intenções originais ao casar esse gestual com a expressão ‘pretendíamos dar uma resposta, um susto'”, afirma Wandy Casalecchi, especialista em leitura de gestos corporais que analisou o vídeo.

ReproduçãoReproduçãoCarlos, o filho de Jair Bolsonaro, no clube de tiro de Santa Catarina onde Adélio havia ido dois dias antes
Aos oito minutos do depoimento, quando os advogados mencionam a palavra “confissão”, Adélio tapa a boca e olha para baixo. “O gesto é clássico, neste contexto, de alguém que esconde alguma coisa”, prossegue Casalecchi, que também identifica no agressor um certo “prazer em enganar” – especialmente quando, ao final do depoimento, ele esboça um sorriso discreto e assimétrico, mostrando algum desdém. “A resposta genérica que deu sobre suas reais motivações, ao que tudo indica, não é tudo o que tem a comunicar a respeito”, afirma o especialista.

Mais de uma semana após ter o abdômen perfurado, Jair Bolsonaro está na unidade de terapia intensiva do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Na última quarta-feira, ele teve de passar por uma cirurgia de emergência por causa de uma obstrução no intestino. Está se alimentando exclusivamente por via endovenosa e tem visitas restritas a poucas pessoas. A operação de emergência veio depois de a recuperação desandar. Bolsonaro chegou a começar a comer normalmente, mas só por um dia. “Atravessaram o samba com a história de ele comer sólidos”, dispara seu vice, general Hamilton Mourão. O general não gostou do clima festivo no leito do capitão reformado, que havia gravado vídeos e já se preparava até para dar uma entrevista por telefone a uma rádio.

A menos de um mês para o primeiro turno da eleição presidencial, ele segue liderando a disputa, conforme mostraram as últimas pesquisas – uma delas, divulgada na quarta-feira por Crusoé. Adélio, por sua vez, está no presídio federal de segurança máxima de Campo Grande, isolado em uma ala reservada para delatores e outros presos sob grande ameaça. Enquanto isso, à Polícia Federal cabe desvendar, de uma vez por todas, os mistérios que cercam o atentado. Para que não pairem dúvidas sobre suas circunstâncias e motivações e, portanto, para o bem da democracia.

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