Silvia Costanti/Valor

O lucro do guru

Conselheiro econômico de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes faturou 600 mil reais na Bolsa de Valores em operações que, segundo uma sentença de dois meses atrás da Justiça Federal do Rio de Janeiro, foram fraudadas
14.09.18

O Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro aparece em situação incômoda nos autos de um processo recém-julgado pela Justiça Federal do Rio de Janeiro. Fundador do banco Pactual e um dos principais nomes do liberalismo no país, o economista Paulo Guedes, já anunciado pelo candidato do PSL como seu ministro da Fazenda caso saia vitorioso das eleições presidenciais, é citado como beneficiário de uma trama que, de um lado, rendeu lucros polpudos a alguns poucos investidores e, de outro, provocou perdas milionárias a associados de um fundo de pensão. De acordo com os documentos do processo, a empresa da qual Paulo Guedes é sócio juntamente com o irmão ganhou 600 mil reais em dois dias na Bolsa de Valores, graças a operações consideradas fraudulentas.

Crusoé teve acesso à íntegra do processo, incluindo um relatório da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, e a sentença judicial que concluiu que os ganhos derivam de um esquema criminoso. O caso é explicado em detalhes ao longo das 130 páginas da decisão do juiz Tiago Pereira, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Em 3 de julho, o magistrado condenou três dirigentes da corretora Dimarco a quatro anos e oito meses de prisão por gestão fraudulenta. A corretora, que fechou as portas em 2008, já havia sido multada pela própria CVM, pelas mesmas razões.

A fraude segue um roteiro parecido com a de outros escândalos do mercado financeiro. De um lado, havia um fundo de pensão, com seus burocratas complacentes e inúmeros cotistas que não acompanhavam de perto as transações. Era a Fapes, a fundação dos funcionários do BNDES. De outro, havia homens de negócios que lucraram à custa dos prejuízos da entidade. É aí que entra o guru de Bolsonaro. Paulo Guedes é citado, nominalmente, por quatro vezes na sentença que condenou os dirigentes da corretora. A empresa do economista, a GPG, é mencionada 27 vezes.

Como o foco estava na corretora, o processo não avança sobre Paulo Guedes, que não foi denunciado. Por isso, o juiz não avalia sua conduta. Mas o documento é categórico ao afirmar que as fraudes cometidas pela corretora beneficiaram o economista de Bolsonaro. A Justiça diz mais: os lucros de Paulo Guedes e de seu irmão não ocorreram simplesmente porque Guedes entendia de investimentos. Eles só foram possíveis, destaca o magistrado, porque, por detrás do pano, havia a ação criminosa da corretora.

Funcionava assim, em linhas gerais: a corretora, como responsável pelas opções de investimento do fundo de pensão e também de outros clientes como a empresa de Paulo Guedes, jogava alto na Bolsa e, a depender dos resultados, escolhia quem iria ganhar com suas apostas. O ano era 2004. Como o controle era falho, visto que as operações eram registradas manualmente, os lucros eram destinados a uns poucos e os prejuízos ficavam para a maioria. A empresa de Paulo Guedes e de seu irmão estava entre os poucos que lucravam. No fundo de pensão dos funcionários do BNDES, com 3.400 associados àquela altura, eram espetadas as perdas.

A empresa de Paulo Guedes é mencionada 27 vezes na sentença
A GPG, dos irmãos Guedes, teve lucro em 100% das operações. Diz a sentença, citando a empresa e outros clientes da corretora apontados como beneficiários de esquema: “Como prova da atribuição ilícita de contratos em favor de clientes escolhidos pelos réus, é a constatação de que dois dos comitentes investigados, Franklin Delano Lehner e GPG Participações Ltda (empresa de Paulo Guedes), que apuraram ótimos resultados no mercado futuro de Ibovespa quando operaram pela Dimarco, em pregões com a participação da Fapes, tiveram, ao mesmo tempo, péssimos resultados quando realizaram transações análogas em outras corretoras, o que demonstra que o sucesso de suas transações não se poderia explicar, unicamente, por seu conhecimento e por sua capacidade de análise de mercado”.

Um trecho da sentença é especialmente relevante. Após mencionar os investidores que lucraram, o juiz Tiago Pereira diz, sem citar nomes, que embora não tenham sido incluídos como parte no processo, os clientes da corretora também acabaram por participar das fraudes. Para ele, “os beneficiados nas transações espúrias, sem dúvida alguma, participaram dolosamente do planejamento da ação criminosa e locupletaram-se de seus resultados”.

A GPG, usada para fazer os investimentos e para prestar consultorias no mercado financeiro, é uma empresa familiar. Gustavo Guedes tem 1% da sociedade. Paulo Guedes é dono dos 99% restantes. De acordo com uma testemunha ouvida no curso do processo, no caso dos investimentos suspeitos as ordens que levaram às transações realizadas pela Dimarco partiram do próprio Paulo Guedes.

As primeiras suspeitas sobre o caso surgiram após sucessivas auditorias da Bolsa de Valores apontarem a “impressionante desorganização” da Dimarco, com sede no Rio de Janeiro. As operações financeiras eram anotadas manualmente, num caderno, sem seguir as regras básicas da Bolsa. Havia até documentos rasurados e solicitações de investimentos sem ordem cronológica registrada.

Os rastros do caso já apareciam em uma investigação da CVM aberta em 2006
De início, imaginava-se que poderia ser o caso de uma corretora desleixada, quase amadora, que sucessivamente descumpria as recomendações da fiscalização da Bovespa, atual B3. Mas o que se descobriu era uma fraude de cifras milionárias, envolvendo operações de risco altamente especulativas, no chamado mercado futuro do índice Bovespa.

Paulo Guedes, por exemplo, fez 17 operações de curto prazo e ganhou 600 mil reais em apenas dois dias, em 16 e 18 de agosto de 2004. No período das movimentações listadas no processo, o fundo do BNDES perdeu 12 milhões de reais. Os clientes apontados como beneficiários do esquema, Guedes incluído, faturaram ao todo 5 milhões.

Havia um padrão na bagunça na corretora. Nas mesmas operações em que os poucos clientes lucravam, o investidor que aparecia perdendo dinheiro era sempre a Fapes, cujo dinheiro era usado para, digamos, testar o potencial de lucro das transações. Se a operação fosse lucrativa, as ordens eram direcionadas para os escolhidos pela corretora. Em caso de perdas, ficava na conta da fundação. Tudo isso, claro, só era possível em razão dos pedidos de investimentos serem anotados manualmente, em cadernos. Os formulários das ordens não eram numerados e não continham o horário em que elas tinham sido emitidas.

Desde o começo, a CVM já tinha indícios da existência do esquema na Dimarco. Diz uma parte do material reunido no processo: “Quando os negócios realizados pela Fapes eram de venda e o mercado caía ou os negócios eram de compra e o mercado subia, e, nestas condições, se verificava a possibilidade de realização de day-trade lucrativo, os negócios com preços favoráveis que originalmente pertenciam à fundação possivelmente eram direcionados para um ou mais clientes da Dimarco”.

ReproduçãoReproduçãoPaulo Guedes com Bolsonaro: aliança desde a pré-campanha
As operações na modalidade day-trade são aquelas de curtíssimo prazo. Em alguns casos, podem ser feitas em horas ou minutos. Um exemplo hipotético: o investidor compra 1 milhão de reais de manhã em ações de uma empresa e, naquela tarde, os papeis disparam 5%. Isso significa que, ao vender no mesmo dia, os ganhos podem chegar a 50 mil reais.

Na sentença do juiz Tiago Pereira, seis páginas são dedicadas às negociações de Paulo Guedes. No caso específico da empresa do conselheiro de Bolsonaro, as ordens de investimentos não apresentavam qualquer tipo de controle ou seriação cronológica, nem os horários em que foram emitidas. Guedes é citado como exemplo dos investidores que, quando atuavam com a Dimarco, tinham taxas de sucesso “extremamente improváveis” nos mesmos períodos dos negócios deficitários da Fapes. É justamente dessas operações que vem o lucro de 600 mil reais que a GPG teve, com seus 100% de acerto. Nos investimentos feitos por meio de outras corretoras, no mesmo período, a empresa do economista perdeu 200 mil reais.

Bem antes da sentença judicial, a apuração da Comissão de Valores Mobiliários já colocava o conselheiro de Bolsonaro como um dos beneficiários das transações suspeitas. Mas, lá, a conclusão foi de que não foi possível comprovar, “de forma concreta”, a ocorrência da “prática não-equitativa” por parte dele e dos investidores que lucravam. A justificativa era simplista: como os documentos internos da corretora eram desorganizados, não era possível ser taxativo sobre a responsabilidade de Paulo Guedes e dos demais.

Uma testemunha ouvida pela CVM relatou que a Dimarco não tinha autonomia para mudar as ordens de Guedes. Com isso, o órgão concluiu que, se houvesse esquema com a participação do economista, a “lógica” seria fazer todas as operações na mesma corretora.

Para o juiz, os beneficiados pelas transações também cometeram crime, embora não tenham sido acusados
Na esfera criminal, o juiz fez críticas a esse entendimento, que ele chamou de “conjectura”. Na sentença, o magistrado ressaltou que a empresa de Paulo Guedes operava grande volume de contratos e, portanto, era “bastante plausível” que a Dimarco não daria conta de todo o serviço, ainda mais quando havia já havia outros clientes VIPs, mais antigos, que também eram beneficiados pelo esquema. Ou seja: para a Justiça, a CVM pegou leve com Paulo Guedes.

O magistrado ainda apontou que o processo administrativo poderia ter sido mais rigoroso. “O conjunto de provas indiciárias reunido pela acusação é tão contundente que realmente impressiona o excesso de cautela adotada no processo administrativo sancionador”. O magistrado frisou que, nos anos seguintes, a própria CVM “evoluiu” e passou a usar os altos índices de acerto como prova das infrações, em situações “muito semelhantes” àquelas que envolvem Paulo Guedes e os investidores-campeões da Dimarco.

Apesar das críticas do juiz ao conservadorismo da CVM, um importante passo do processo judicial foi dado quando Mário Luiz Lemos, superintendente de fiscalização da comissão, prestou depoimento à Justiça. Ele admitiu que havia brechas para direcionar os investimentos aos clientes escolhidos. A explicação é longa, mas didática.

Disse Lemos: “As ordens enviadas à corretora eram reespecificadas ou especificadas tardiamente, porque não se procedia ao registro imediatamente após as respectivas entradas; em alguns casos, havia apenas um registro informal prévio, que era posteriormente formalizado de maneira incompatível com a realidade, a fim de assegurar o direcionamento das operações mais favoráveis a determinados comitentes. As ordens apenas eram efetivamente atribuídas aos comitentes ao final do pregão (ou ao final de alguma janela de especificação), quando o operador da corretora tinha conhecimento de qual operação seria vencedora ou perdedora, com o direcionamento ilícito dos ganhos e das perdas”, disse o superintendente, conforme registrado na sentença.

O Ministério Público estimou em quase 6 milhões de reais as perdas do fundo de pensão dos funcionários do BNDES
No caso dos investimentos de Paulo Guedes, o responsável dentro da Dimarco era Carlos Almeida. Ele foi absolvido na CVM. Na Justiça criminal, foi condenado juntamente com os donos da corretora. A sentença é taxativa: “Reputo plenamente provado que os réus defraudaram a Fapes de forma ardilosa, atribuindo-lhe, em sucessivos pregões do mercado futuro do Ibovespa, os piores contratos celebrados nas respectivas sessões, em violação à verdadeira sequência cronológica de entrada das ordens dos comitentes na corretora”.

No processo, Almeida negou irregularidades e disse que o alto índice de acertos dos investidores citados acontecia porque eles atuavam dentro dos limites de “altas e baixas” de modelos gráficos e que, àquela época, a Bolsa vivia um momento de fortes altas. O juiz não acolheu a explicação para o que chamou de “sorte absolutamente incomum” dos clientes da Dimarco – Paulo Guedes entre eles.

Ouvido por Crusoé, o guru de Jair Bolsonaro negou que tenha obtido os lucros graças a um esquema criminoso. Ele disse que seus operadores tinham autonomia para distribuir as ordens de investimento entre diversas corretoras e que é normal ter lucros e perdas expressivas em diferentes corretoras, em razão das características do day-trade. Guedes afirma ainda que não tem relação com a Dimarco e que desconhecia o processo em que é citado. “Eu não tenho a menor ideia do que se trata. Tenho certeza absoluta de que nunca agi em prejuízo de qualquer contraparte em alguma operação de day-trade em empresas em que tenho participação. Nunca causei nenhum prejuízo a ninguém que fosse contraparte. Quando se faz operações de day-trade, não se sabe nem quem é a contraparte”, afirmou o economista.

Paulo Guedes disse, ainda, que buscará conhecer o processo. “Se tem 30 dias que fui citado, vou tomar conhecimento de que citação é essa. Eu sei que assim que comecei a ajudar numa campanha, começaram a aparecer citações. E vou lidar com elas, cada uma por vez.”

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO