MarioSabino

Geleia amanhã e geleia ontem, mas nunca hoje

14.09.18

Ao contrário dos políticos brasileiros, mesmo aqueles que são considerados estadistas, posso dizer que tive uma breve experiência de Winston Churchill.

Numa das incontornáveis manhãs cinzentas da Paris do meu exílio, deparei com um grupo de turistas ingleses que corria risco de vida, tentando atravessar a rua movimentada na faixa de pedestres. Acreditavam que estavam em Londres, coitados. Resolvi ajudar. Avancei pela faixa, gritando e gesticulando para os motoristas. Consegui parar os carros para que os ingleses atravessassem. Todos salvos, ainda mandei um doigt d’honneur aos Renault e Citroën domados por mim, antes de alcançar os ingleses e brincar: “We shall never surrender”. Fui aplaudido. Aplausos de ingleses, não importa o motivo, fazem qualquer um sentir-se um Churchill depois de um discurso heroico no Parlamento.

Sobre aplausos e regras. Não somos o único povo a desrespeitar regras, mas talvez sejamos um dos poucos que acham que o respeito a regras básicas seja motivo de aplauso. Para explicar, volto à faixa de pedestres, desta vez em São Paulo. Tenho sorte porque posso ir para o trabalho a pé. A única vantagem de andar de carro em São Paulo é que você nota menos a feiura da cidade. Se estiver a pé, para que você não se sinta deprimido pela paisagem ao redor, aconselho a olhar constantemente para o chão – com a vantagem de que, assim, é possível desviar dos buracos da calçada. Em 1808, o viajante John Luccock disse que o Rio de Janeiro era “uma das mais imundas associações de homens debaixo dos céus”. Em São Paulo, que continua a ser uma das mais feias associações de homens debaixo dos céus, tenho quatro ruas a atravessar até o trabalho. Foi na penúltima que tive a experiência de outro inglês, o Dr. Livingstone.

Dr. Livingstone atravessou na faixa, fazendo o gesto recomendado para os carros pararem. Ao chegar ao outro lado, ouviu um “Ei, você!” vindo de um táxi que havia freado. Deu-se o seguinte diálogo antropológico:

“Sim?”, respondi.

“Você não vai agradecer?”, perguntou o taxista.

“Agradecer por quê?”

“Porque parei para você passar.”

“Não entendi.”

“Parei para você atravessar na faixa.”

“Justamente, eu estava na faixa. É a regra: você para quando um pedestre atravessa na faixa. É por isso que existe faixa. Eu, pedestre, não tenho de agradecer pelo fato de você, motorista, ter respeitado a regra.”

Fui xingado de um monte de nomes. Dr. Livingstone não reagiu, porque aprendeu que os selvagens podem ser violentos.

Na minha opinião, a atitude do taxista foi sintomática. Sim, vou generalizar. Os franceses sabiam que estavam fazendo a coisa errada ao não deixar os ingleses atravessarem a rua – e, por isso, não ousaram responder ao meu doigt d’honneur; os brasileiros ainda creem que prestam um favor ao fazer a coisa certa – e, por isso, acham estranho que você não os aplauda. Eu mesmo me sinto pimpão quando, ao volante, deixo um pedestre exercer o seu direito de atravessar na faixa. Aposto que você também sente orgulho de si próprio quando faz o mínimo certo. Aposto que um deputado também. Aposto que um senador também. Aposto que um ministro de tribunal superior também. Aposto que o presidente da República também. Desculpe, não queria ofender, apenas mostrar, por contraste, que fazer o mínimo certo deveria ser tão natural como tropeçar num buraco de calçada em São Paulo. Aliás, não haveria buracos de calçada em São Paulo se fizéssemos naturalmente o mínimo certo. E talvez a cidade não fosse tão feia. E talvez não houvesse mensalão. E talvez não houvesse petrolão. E talvez o presidente do STF fosse um magistrado que passou em concurso para juiz. E talvez conseguíssemos realizar feitos extraordinários e merecêssemos aplausos do mundo inteiro. E talvez conseguíssemos ter um Churchill.

E talvez eu não fosse tão banal. Comparei-me a Churchill e ao Dr. Livingstone, mas não passo – não passamos, de modo geral – da pequena rainha criada por outro britânico, Lewis Carroll.

“A regra é esta: geleia amanhã e geleia ontem, mas nunca hoje”, disse a rainha a Alice.

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