Adriano Machado/Crusoé

“A sociedade quer sangue”

Para o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, apesar de os brasileiros estarem cobrando "as vísceras" dos políticos, a Justiça não pode avançar o sinal nas punições. Ele afirma que Dias Toffoli, como novo presidente da corte, deve trabalhar para colocar "a bola no chão"
14.09.18

Todos os dias, Marco Aurélio Mello acorda bem cedo e, depois de “atrair pássaros” espalhando pedaços de fruta, alpiste e sementes de girassol em volta de sua confortável casa no Setor de Mansões Dom Bosco, no Lago Sul de Brasília, senta para o que considera um dos momentos mais prazerosos de sua rotina: tomar um copo de leite tirado na hora. Sim, o ministro tem uma vaca no quintal de casa. Entre seus funcionários, há um que se encarrega da tarefa de ordenhar a velha vaca mestiça, que recentemente pariu um bezerro. Por inseminação artificial, observa o ministro. “Aqui o único touro sou eu”, brinca. Vencido o primeiro compromisso diário, Marco Aurélio se recolhe ao escritório, onde estuda os processos antes de proferir verbalmente as decisões – as gravações são entregues a assessores, que cuidam de transcrever tudo. À tarde, ele vai para o Supremo.

Falante, Marco Aurélio saiu há pouco de um “período de silêncio”. Nesta semana, ele atendeu Crusoé. Aos 72 anos, o vice-decano da mais alta corte do país falou sobre a nova fase do Supremo, sob o comando de seu colega Dias Toffoli, 22 anos mais novo. Ele espera que, após uma longa fase de turbulência interna, Toffoli consiga colocar “a bola no chão” e apaziguar os ânimos. Para os entusiastas da Lava Jato, não chega a ser propriamente uma expectativa alvissareira. Tanto Marco Aurélio quanto Dias Toffoli veem abusos na operação. E condenam as prisões em segunda instância, como a do ex-presidente Lula. Estaria, então, a operação a caminho do cadafalso? A seguir, a entrevista.

O que o senhor espera da gestão Dias Toffoli?
Em primeiro lugar, que coloque, para utilizar o jargão popular, a bola no chão. Não devemos enfrentar, principalmente agora no final de ano, com eleição, temas de repercussão maior, palpitantes. Em segundo lugar, que ele otimize as sessões do plenário, no sentido de alterar o regimento interno para começarmos as sessões com pelo menos três integrantes presentes e os colegas saberem que realmente a sessão começará. Há um ciclo vicioso hoje em que se sabe que a sessão não começa às 14 horas (horário regimental de seu início), o que é muito ruim. E é um exemplo que fica para os cidadãos em geral. Há também um serviço que entendo que precisa ser implementado, que é a triagem dos recursos. Mesmo se tendo a seleção de 50% dos processos, cada gabinete recebe 130 novos por semana. É uma enormidade. Ou seja, há de se haver a conciliação da prestação jurisdicional com o que é possível fazer em termos de conteúdo e celeridade.

É possível esperar uma gestão positiva?
É muito difícil fazer prognóstico. Precisamos aguardar. Cada presidente tem um estilo. Penso que terá um ótimo desempenho pela qualidade sua aqui no dia a dia e pela gestão que fez quando presidiu o Tribunal Superior Eleitoral.

O que o senhor acha dele como ministro?
É um juiz sensível e aplicado.

Qual deve ser a pauta prioritária?

A ênfase maior deve ser a preservação da Constituição. No plenário, há muitos processos que aguardam julgamento. Só eu tenho 180 liberados que estão na fila. Não sei se até 2021 (quando se aposenta) conseguirei julgá-los, porque serão acrescidos de outros. Há uma sobrecarga, e o presidente acaba definindo a pauta. Talvez possa haver também uma maior participação dos integrantes da corte na confecção de pauta. Mas, por enquanto, ela é do presidente (refere-se ao poder do presidente de decidir o que será julgado).

Como o senhor avalia o período em que a ministra Cármen Lúcia comandou a corte?
Ela foi de uma dedicação incrível, inclusive abrindo, em termos de administração, um leque enorme para cuidar de matérias diversas. Mas não se contenta a todos. Nós, julgadores, não somos vocacionados para a administração. Ela até disse, agradecendo, que agora será promovida a juíza e voltará à planície como integrante do Supremo, para proferir votos e julgar.

Qual é o principal problema hoje do Supremo?
Em primeiro lugar, a atuação individual. O Supremo praticamente não atua como colegiado. O segundo problema, continuo convencido, é a automação, com o julgamento virtual. É um prejuízo ao jurisdicionado. Quando você imagina um colegiado, pressupõe a troca de ideias. E na internet não há essa troca (ele se refere aos processos que são julgados eletronicamente pelos ministros). A tendência, diante dessa avalanche de processos, é colocar os casos na vala comum e generalizar as soluções. Isso é ruim. O que precisamos é enxugar ao máximo os processos. Isso passaria pela modificação da competência do Supremo. Hoje, o presidente da corte de origem tranca o recurso, mas contra a decisão dele é cabível outro recurso, que não pode ser obstado. Então, quando o processo não sobe como recurso extraordinário, sobe como agravo. Por isso é que se tem esse número descomunal de processos.

Qual é a solução?
Há uma litigiosidade muito grande. A primeira solução é a independência do advogado. Porque o que parece é que o advogado acaba não assumindo o papel técnico que lhe cabe, de chegar para o cliente e dizer que não vai interpor o recurso porque não há a menor chance. Ele interpõe quase que automaticamente. A advocacia pública já tem implementado a racionalização dos trabalhos. Ou seja, há certas ações em que se declara que não haverá recurso. Mas o problema, em si, é cultural.

O Supremo é pautado pela opinião pública, como dizem alguns críticos?
Eu não me vejo patrulhado nem pela opinião pública nem jornalística. Nós ocupamos uma cadeira vitalícia e disso decorre a necessidade absoluta de independência. Processo, para mim, não tem capa. Tem conteúdo.

Por que os processos da Lava Jato não andam rápido no STF?
Em épocas de crise, é importante guardar princípios e garantias constitucionais. Se nós queremos alcançar o Brasil sonhado, não podemos tocar o processo de cambulhada. Então, certas posturas, e não estou examinando casos individualizados, não são compreendidas pela população. A sociedade chegou a um ponto de indignação que ela quer vísceras, quer sangue. Mas não podemos dar sangue à sociedade. Não se avança culturalmente assim. Do contrário, seria o caso de construir um paredão na Praça dos Três Poderes e, sem processo, fuzilar. Mas não se pode partir para isso. Em um estado democrático de direito, o meio justifica o fim, mas jamais o fim justifica o meio. A indignidade da sociedade de certa forma é contida pelo Judiciário, no que ele decide. Não procede dizer que essa forma de ver o direito implica uma tentativa de frear a Lava Jato. As instituições funcionam: a Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário.

Mas quando se compara com a primeira instância…
Não somos vocacionados a instruir processos. O Supremo foi durante um período, e ainda é, muito exigente no recebimento de denúncia. Isso conduz o Ministério Público a requerer sucessivas diligências e o processos ficam num pingue-pongue. Vêm do Ministério Público, passam pelo Supremo e vão para a Polícia Federal, quando, em última análise, para receber a denúncia só precisa da materialidade criminosa e de indícios de autoria. Mas o Ministério Público, ante essa visão do Supremo de exigir algo concreto para receber a denúncia, sente-se compelido quase a demonstrar a culpa do acusado. Isso é ruim. Nós enxugamos um pouco, dando uma interpretação restritiva à prerrogativa de foro. Isso aliviou bastante. Eu, por exemplo, trabalho de sol a sol, sem juízes auxiliares. Tenho nove assessores e sou o juiz que tenho o maior número de processos para julgar. Se eu considerar o binômio celeridade e conteúdo, se eu tiver que sacrificar, vai ser a celeridade. Eu não julgo papéis, eu julgo destinos. A responsabilidade é maior.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO ministro manifesta sua predileção pelo Supremo de outros tempos: “Havia uma cerimônia muito maior na atuação”
O senador Romero Jucá disse em uma gravação que era necessário haver um acordão “com o Supremo com tudo”. Isso ocorreu ou pode ocorrer?
É um arroubo de retórica. Cada um tem o direito de pensar o que quiser e verbalizar o que quiser. Não vejo como se poderia chegar, mediante o acionamento do Congresso, à criação de obstáculos para a persecução criminal.

E seria possível chegar a um acordo com o Supremo?
Aqui muito menos. Não ocupamos cadeiras voltadas a relações públicas. Eu, por exemplo, quando era estudante de direito, queria ser como meu pai, advogado do Banco do Brasil. Acabei, depois de passar pelo Ministério Público do Trabalho, ocupando a cadeira de juiz. É uma opção de vida.

E as pressões externas? Como o senhor viu, por exemplo, o tuíte do comandante do Exército na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula?
No estado democrático de direito isso não soa bem, principalmente quando no dia seguinte teria o voto decisivo da ministra Rosa Weber. E ela acabou ficando em uma situação até um pouco delicada em termos de leitura dos leigos. Acho que vivemos ares democráticos e os órgãos têm que atuar nos setores que lhes são reservados constitucionalmente. É impensável imaginar-se uma pressão para o Supremo julgar dessa ou daquela forma.

Mas foi o que aconteceu no caso do general Villas Bôas?
Eu não sei. Chegou ao meu conhecimento que ele teria lançado aquilo, não sei se é verdade ou não, porque, se não o fizesse, perderia a liderança junto à tropa. Se a liderança junto à tropa do comandante do Exército está na dependência de uma atitude assim mais ostensiva, nós estamos muito mal.

Foi errada a tentativa de Lula de esticar a corda para ser candidato, mesmo estando preso e condenado?
Foi o papel político dele como integrante do PT. Evidentemente, ele quis figurar no cenário, muito embora preso em Curitiba. E de certa forma, fortalecer a caminhada daquele que viria a ser o candidato (Fernando Haddad). Entendo como algo natural.

O senhor considera a prisão do ex-presidente injusta?
Eu tenho voto proferido no plenário, inclusive nas liminares das ações declaratórias (refere-se às ações que pedem a revisão da prisão após condenação em segunda instância). Vem da Constituição Federal um princípio que não permite uma interpretação restritiva do princípio da não culpabilidade. E o tribunal já tinha essa matéria pacificada há mais de seis anos, sete anos, quando houve uma virada. Continuo convencido de que ele está preso indevidamente. Ele e tantos outros.

Ainda que estivesse solto, pela Lei da Ficha Limpa ele não poderia ser candidato.
Não poderia. O princípio da não culpabilidade só repercute no campo penal, no campo da liberdade de ir e vir. Não repercute para se apresentar como candidato. A lei é categórica e foi declarada constitucional pelo Supremo.

Como enxerga o recente atentado contra Jair Bolsonaro?
Impensável no Brasil. Não importa o radicalismo que o candidato adote, é injustificável o ato de se atentar contra a vida dele. Isso é preocupante porque revela descontrole. Foi realmente muito grave em termos de democracia, de liberdade, de divergência de ideias.

Agência BrasilFabio Rodrigues Pozzebom/Agência BrasilDias Toffoli ao assumir nesta quinta a cadeira que era de Cármen Lúcia: para Marco Aurélio, o ministro é um colega aplicado
O senhor está há 28 anos no Supremo. Fez amigos no tribunal?
(Silêncio) Amigos, amigos… É difícil concluir pela existência de amizade. Nós não temos tempo para uma convivência mais direta. Eu acompanho a vida de colegas há muito tempo. Do ministro Alexandre (de Moraes), Celso de Mello, (Luiz) Fux, do próprio (Luís Roberto) Barroso. Mas não posso definir assim a minha relação. Principalmente tendo em conta a postura que eu quase sempre adoto (nos julgamentos). Eu não potencializo a ideia de colegiado em detrimento do meu convencimento. Amigo propriamente dito eu não posso dizer que tenho e, por enquanto, ainda não surgiu situação a desafiar ninguém a se revelar meu amigo ou meu inimigo. Eu tenho colegas.

Como o senhor analisa a atual composição do Supremo em relação às passadas?
O Supremo sofreu modificações muito grandes em curto espaço de tempo. O que ocorria, considerada a velha guarda: tinha-se um tribunal mais estável em termos de decisões. Isso mudou muito com a integração de novos valores à corte. E a composição atual tem também uma característica que me assusta um pouco que é a falta de autorrestrição ante a existência na República de três poderes com áreas delimitadas. No plenário, agora mesmo, acabei de frisar que não nos cabe atuar como legisladores positivos. E, às vezes, penso que alguns colegas exageram na dose.

Poderia nominar quem faz isso?
Não, não, não, não. Mas basta observar.

Isso hoje é mais forte do que foi no passado?
Sem dúvida alguma. Na velha guarda, havia uma autocontenção por parte dos integrantes do Supremo. Havia uma cerimônia muito maior na atuação deles.

E hoje?
Hoje tem uma composição que avança. Vamos falar em avançar. Avança muito e acaba colocando em segundo plano a nossa atuação principal, que é vinculada à Constituição e ao direito aprovado pelo Congresso Nacional.

O senhor foi nomeado pelo ex-presidente Fernando Collor. Como é a sua relação com ele?
O contato é praticamente nenhum. Meu pai saiu muito cedo de Alagoas e as famílias se mantiveram distanciadas. Em 1983, fui a Alagoas pela Escola Superior de Guerra e a pessoa que ficava comigo nessas viagens no apartamento disse que me apresentaria o primo da família mais ajuizado. Sabe quem era? (risos) O Pedro Collor (irmão de Fernando Collor que denunciou o então presidente).

E Fernando Collor, costuma encontrá-lo?
Nem lembro a última vez em que o vi. Eu vim a conhecê-lo aqui em Brasília. Eu era ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Um outro primo que já faleceu me levou para conhecê-lo. A nomeação foi algo sui generis. Meu nome já havia surgido, apoiado pela Justiça do Trabalho e pela advocacia trabalhista no governo do presidente José Sarney. Mas eu tinha como primo o maior desafeto do presidente naquela época. Claro que não fui nomeado. Collor assumiu com a bandeira contra o nepotismo e deve ter tido dúvidas sérias se me nomearia ou não. Mas apareceu uma segunda vaga com a saída do (Francisco) Rezek para ser ministro (das Relações Exteriores) dele. Aí alguém teve a brilhante ideia lá (no Palácio do Planalto) de fazer um ofício ao TST, meu tribunal, e outro ao Superior Tribunal de Justiça, indagando quem seria candidato nessas cortes. O TST disse que eu continuava sendo o nome do tribunal. O STJ disse que todos eram candidatos. E, ali, ele ficou muito à vontade para me nomear.

Há conflito de interesse na atuação de Gilmar Mendes como ministro e dono de um instituto?
Não me pronuncio sobre isso. Não sei se você sabe, mas somos rompidos.

Por quê?
Penso que ele, em termos de agressividade, ultrapassou todos os limites. É o único colega com quem não falo. Nem cumprimento.

Faz muito tempo?
Sim. Isso é definitivo. Por isso não me pronuncio sobre nada que o envolva. Mas seria incapaz de mover uma palha para prejudicá-lo. Só não sei se a reciproca é verdadeira.

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