Geraldo Magela/Agência SenadoJanaína Paschoal, do PSL, intensificou as postagens antivacina desde que se reaproximou de Bolsonaro, mas nega agir por interesse eleitoral

Decifrando o absurdo

Cálculo político, loucura ou ignorância? Tentamos entender o que há por trás da cantilena de parte dos políticos brasileiros contra as vacinas
07.01.22

Catapultada à fama pela participação no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e pela dobradinha com Jair Bolsonaro, a advogada Janaina Paschoal estreou na política em 2018 e, já na primeira disputa, tornou-se a deputada mais votada da história, com mais de 2 milhões de votos. De lá para cá, entrou em rota de colisão com filhos de Bolsonaro, pediu a renúncia do presidente da República e declarou seu arrependimento pelo apoio ao capitão da reserva. Nos últimos meses, porém, a deputada estadual de São Paulo voltou para os braços do bolsonarismo. O retorno foi marcado por uma polêmica sob medida para agradar ao velho aliado: o boicote à vacinação contra a Covid. Ela passou a questionar, dia sim, outro também, a eficácia e a segurança dos imunizantes. Nesta semana, a deputada esteve no topo dos assuntos mais comentados das redes sociais por ironizar a alta nos casos da doença. “Vivemos um momento tão intrigante, que pessoas vacinadas com todas as doses pegam Covid e recomendam a vacinação. Parece piada”, escreveu, repetindo a falácia preferida do bolsonarismo – como especialistas já explicaram tantas e tantas vezes, as vacinas não impedem a infecção, mas previnem casos graves e mortes.

A dez meses das eleições, a onda antivacina ganhou força entre representantes da extrema-direita e se transformou em uma das primeiras pautas da pré-campanha eleitoral. Sob a justificativa de uma pretensa defesa da liberdade, os políticos antivax sabotam as estratégias apregoadas pelas autoridades sanitárias e tentam colocar em xeque a velha confiança dos brasileiros nas vacinas. Para além de dificultar o combate à pandemia, pontualmente, as fake news amplificadas por essa turma podem causar prejuízos a longo prazo, como a exposição da população outra vez a outras doenças graves que, com o passar do tempo, foram praticamente erradicadas graças à facilidade com que as pessoas aderiram por aqui às campanhas de imunização. Mas, afinal, o que move os políticos que sabotam as vacinas? É loucura, ignorância ou simples interesse eleitoral, já que o discurso cai bem aos ouvidos de seus simpatizantes?

Crusoé fez a pergunta à própria Janaina Paschoal. Diz ela: “Não tenho nenhum interesse eleitoral, acho até que essas declarações me tiraram votos. Ninguém vai colar em mim a pecha de negacionista, de bolsonarista, eu me revoltei contra o presidente quando ele chamou a Covid de gripezinha. Essa é uma leitura injusta e preconceituosa na tentativa de me desmoralizar. A pessoa que fala alguma coisa só para ter apoio é uma prostituta. Eu não sou uma prostituta”. A deputada pretende se candidatar ao Senado nas próximas eleições. Ela admite que retomou os contatos com o presidente da República a partir do Natal, mas nega que as conversas sejam políticas.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência BrasilSabotagem: o discurso antivax de políticos pode comprometer a imunização
Quase 70% dos brasileiros já estão totalmente imunizados contra a Covid. O percentual de vacinados no país é superior ao registrado nos Estados Unidos, por exemplo, onde as vacinas foram disponibilizadas bem antes – e em maior número – à população. A cultura de vacinação no Brasil, consolidada por fatores diversos que vão desde a capilaridade do SUS à popularidade do personagem Zé Gotinha, ajudou o país a vencer a omissão de Jair Bolsonaro. Em um ambiente tão favorável, soa estranho que figuras públicas atuem deliberadamente contra uma campanha de vacinação. Para cientistas políticos e marqueteiros, trata-se de uma estratégia minuciosamente calculada. “Políticos que ganham a eleição com uma votação muito expressiva por uma atuação pontual enfrentam sempre o medo de não conseguir repetir o feito. A oportunidade de polemizar, como no caso do discurso antivacina, ajuda essas pessoas a se manterem em evidência. E ser lembrado é o primeiro atributo para receber votos”, afirma o cientista político Felipe Nunes, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

Janaina Paschoal não está sozinha em sua cruzada. Vários outros parlamentares alinhados a Jair Bolsonaro e que também receberam grande número de votos têm recorrido ao mesmo expediente. Líderes da tropa de choque bolsonarista, as deputadas federais Carla Zambelli e Bia Kicis, do PSL, atacam a vacinação desde 2020, quando o governador paulista, João Doria, ganhou protagonismo com a Coronavac. Kicis, por exemplo, chegou ao ponto de dizer que vacinas poderiam alterar o DNA, uma estultice chocante até para os conhecidos padrões de ignorância do bolsonarismo. Nesta semana, ela admitiu ao jornal O Globo ter contribuído para o vazamento de dados pessoais de três médicos que defendem a vacinação de crianças contra a Covid-19. A imunização infantil, aliás, virou o novo front do movimento antivax da tropa. A aprovação do uso das vacinas em crianças pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, despertou a ira de Bolsonaro e de seus aliados. O próprio presidente chegou a dizer que sua filha, Laura, de 11 anos, não será vacinada e aproveitou a onda para lançar mais dúvidas sobre a segurança e a eficácia das doses oferecidas à população.

O debate gerou uma situação curiosa, um fenômeno brasileiro: o dos antivax imunizados. Filho 03 do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, do PSL, por exemplo, recebeu duas doses da vacina contra a Covid, mas passou a desestimular os brasileiros a seguirem as orientações do Ministério da Saúde ao publicar diuturnamente questionamentos sobre as vacinas. A ofensiva começou no mesmo dia em que a Anvisa aprovou a vacina para crianças. Com notícias descontextualizadas sobre riscos de efeitos colaterais graves, eles suscitaram em milhares de pais o receio de imunizarem seus filhos. Mas, felizmente, as estatísticas são amplamente favoráveis à vacinação: nos Estados Unidos, onde 8 milhões de crianças foram vacinadas, houve apenas oito casos de miocardite, sem nenhuma morte, ao passo que as complicações geradas pela infecção são muito mais recorrentes e graves.

Eduardo Bolsonaro questiona a segurança das vacinas, mas foi imunizado
A cantilena bolsonarista tem afetado as comunicações oficiais do próprio Ministério da Saúde. Nesta quarta-feira, 5, na entrevista coletiva convocada para anunciar – com atraso – a extensão da campanha para as crianças, faltou convicção aos representantes da pasta para defender a vacinação. A secretária responsável pela área chegou a falar do risco de miocardite sem fazer as necessárias ressalvas em favor da vacina. Pressionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, trabalha com afinco para lançar dúvidas sobre a segurança das vacinas para crianças. Também nesta semana, na audiência pública convocada para discutir o tema, ele abriu espaço para médicos bolsonaristas propagarem despautérios como a tese de que a variante Ômicron “veio de Deus” para garantir “imunidade natural”. “Foi um horror, um circo patético”, critica Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações. “O Brasil começou a entrar em um processo de forte destruição do Programa Nacional de Imunização, que foi construído com o esforço de tanta gente”, acrescenta a médica.

A pesquisadora Lorena Barberia, professora de Ciência Política da Universidade de São Paulo, coordenou um estudo que analisou 3,6 milhões de postagens no Twitter sobre vacinação. Os pesquisadores avaliaram as publicações de todos os candidatos a prefeito de 18 grandes cidades, na campanha municipal de 2020, em que os políticos tratavam da imunização contra a Covid. Segundo o levantamento, 73,7% das declarações desfavoráveis às vacinas foram feitas por candidatos alinhados a Bolsonaro, principalmente nas cidades de São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte. Entre as 628 postagens sobre vacina feitas por outros candidatos a prefeito, somente 16% eram contra a imunização. “Quando a gente olha de forma mais abrangente, a maioria da sociedade e dos políticos é altamente favorável à vacinação. Só que existe uma minoria que faz barulho com publicações polêmicas”, garante a pesquisadora. “Esses ataques felizmente são minoritários. Ao mesmo tempo, é muito preocupante perceber a total falta de controle das mídias sociais. O conteúdo postado por vários políticos brasileiros, como a deputada Janaina Paschoal, certamente seria retirado do ar pelo Twitter nos Estados Unidos. Ela não é uma cidadã qualquer, é uma pessoa com cargo público, com responsabilidades”, afirma Barberia. Na semana passada, a plataforma suspendeu permanentemente a conta pessoal da deputada americana Marjorie Taylor Greene, do Partido Republicano, por espalhar fake news sobre a Covid. Greene foi banida do Twitter após citar a suposta existência de “quantidades extremamente altas de mortes por vacinas de Covid”.

Por aqui, as notícias falsas têm sido propagadas sem sanções. “A ferramenta para denunciar esses conteúdos não está disponível em língua portuguesa, limitando a detecção de abusos em postagens em língua portuguesa na plataforma. Isso compromete a capacidade da plataforma em aplicar as políticas com o mesmo rigor que age contra postagens antivacina em língua inglesa, nos Estados Unidos”, diz a ONG Safernet. Especialistas em saúde também lamentam os efeitos da livre propagação de fake news sobre Covid e vacinação nas redes sociais. “Há muita morosidade para retirar postagens do ar ou punir quem publica notícias falsas sobre saúde. Essas fake news deveriam ser criminalizadas com penas altas”, defende o presidente da Associação Médica Brasileira, César Eduardo Fernandes.

DivulgaçãoDivulgaçãoCésar Fernandes, presidente da AMB, defende a criminalização de fake news sobre saúde
Com liberdade para publicar absurdos sem nenhuma advertência, o que nada tem a ver com liberdade de expressão, bolsonaristas usam a mesma estratégia adotada durante o debate sobre o voto impresso – mesmo conscientes de que a discussão é infrutífera, a tática consegue manter a base coesa. No caso do presidente da República, o discurso radical sobre vacinas ajuda a disfarçar suas incoerências, como o apoio do Centrão e os escândalos de corrupção envolvendo sua família. “É uma tentativa desesperada de não perder mais apoio e, para isso, ele tem que reforçar a ideia de que não mudou, de que ainda é o candidato antissistema da campanha de 2018. Ele joga para a sua base, para o eleitorado negacionista, mas com uma irresponsabilidade tão grande, que pode limitar sua votação”, diagnostica a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, professora da Universidade Federal de São Carlos. “São argumentos baixos, rasteiros, que podem, sim, reduzir ainda mais a cobertura vacinal”, diz o presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renato Kfouri.

É mais uma evidência a confirmar a velha máxima de que políticos põem seus próprios interesses acima dos da população. Por puro cálculo eleitoral, para muitos deles, agora, o voto vale mais até do que a proteção à vida.

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