A (velha) tropa de Lula
O ano eleitoral mal começou e o PT já reativou sua máquina de reescrever a história. Depois de disseminar a falsa narrativa da perseguição política para se esquivar das inúmeras – e robustas – denúncias de corrupção envolvendo seus principais quadros, o partido comandado por Luiz Inácio Lula da Silva dedica-se agora à estratégica tarefa de apagar da memória dos brasileiros os erros que ajudaram a afundar a economia nos últimos anos da era petista. A artimanha para tentar voltar ao poder ganhou forma nesta semana, com a publicação de um artigo que defende a velha cartilha do lulismo para “consertar” o país. O texto provocou enorme repercussão, não apenas pelo seu conteúdo desonesto, que omite o catastrófico apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, mas também pela figura que Lula escolheu para assiná-lo: Guido Mantega.
Mais longevo ministro da Fazenda da era petista (comandou a pasta de 2006 a 2014), Mantega ressurgiu na cena política como porta-voz do petismo em uma série de artigos sobre economia que o jornal Folha de S. Paulo solicitou aos principais presidenciáveis. O texto ataca a “herança maldita” que será deixada pelos “governos Temer e Bolsonaro” e defende um modelo intervencionista, controlando os juros e estimulando “políticas industriais”. Nenhuma linha foi dedicada a explicar a pior recessão da história, iniciada ainda em 2014 e marcada pela grave retração do PIB sob Dilma Rousseff. Adversários de Lula na corrida ao Planalto, como Sergio Moro e Ciro Gomes, criticaram duramente o artigo e até lulistas de carteirinha caçoaram da peça de Mantega. “Oxalá seja apenas mal-assombração!”, escreveu o deputado Orlando Silva, do PCdoB, que também foi ministro nos governos de Lula e Dilma.
Lideranças petistas passaram os últimos dias explicando a opção por Mantega como porta-voz econômico da candidatura de Lula. Venderam como uma espécie de alento a tese de que, apesar de encarnar a ideologia desenvolvimentista do petismo, o ex-ministro foi escolhido porque já se sabe que ele não voltará à Esplanada dos Ministérios em um eventual novo governo do PT. “Qualquer outro nome geraria especulação de que poderia ser o ministro da Fazenda do Lula”, diz um dirigente petista. O fato é que a síntese do plano econômico de Lula, que visa a acabar com o teto de gastos públicos e revogar a reforma trabalhista, está presente no artigo de Mantega e é fruto de conversas semanais que o ex-ministro manteve durante a pandemia com os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Delfim Netto, dois outros conselheiros de Lula na área – às sextas-feiras, eles costumavam se falar por videoconferência na hora do almoço, para conversar sobre o cenário econômico e alinhavar ideias a serem oferecidas ao chefe petista.
Ao longo dos nove anos em que esteve à frente da Fazenda, Mantega foi o mais eficiente tesoureiro de campanha do PT. Os empresários acusaram o ex-ministro de cobrar repasses ilícitos ao partido como contrapartida para atender seus pedidos dentro do governo. O caso mais notório envolve o pagamento de 50 milhões de reais da Braskem, do grupo Odebrecht, à campanha de Dilma em 2010, referente à “compra” da medida provisória conhecida como Refis da crise, que abatia dívidas tributárias da empresa. O acerto rendeu a Mantega o apelido “Pós-Itália” na planilha do setor de propinas da empreiteira baiana. A denúncia apresentada à Justiça pela força-tarefa de Curitiba foi rejeitada e as provas foram anuladas depois que o Supremo Tribunal Federal determinou o envio da ação do Paraná para Brasília. Mantega chegou a ser detido por algumas horas pela PF, em 2016, e conseguiu se livrar da tornozeleira eletrônica graças ao STF.
O ex-ministro foi um dos assuntos políticos mais candentes da semana, mas não é só ele quem dá ares de filme antigo à pré-candidatura de Lula. Outros importantes personagens da era petista estão diretamente envolvidos na campanha presidencial. Três vezes ministro de Dilma entre 2011 e 2015, Aloizio Mercadante, por exemplo, é o responsável pela formulação do que será apresentado em alguns meses como o plano de governo lulista. Presidente da Fundação Perseu Abramo, bancada com o fundo partidário, Mercadante é quem organiza as reuniões de onde saem as teses que depois a militância passa a difundir nas redes. Foi na fundação que ele e Lula se reuniram com Belluzzo antes de turnê pela Europa, em novembro, onde o chefe petista se encontrou com líderes da centro-esquerda e com o presidente francês, Emmanuel Macron.
O “acordão” do establishment político para sepultar a Lava Jato deu ao PT não apenas a condição de lançar Lula na corrida presidencial, mas também munição para que outros quadros históricos e igualmente enrolados com a Justiça voltassem a circular com desenvoltura nos bastidores. O caso mais emblemático é o do ex-ministro José Dirceu. Como mostrou Crusoé em dezembro, o chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula, condenado no mensalão e no petrolão, tem rodado o país para conversar com governadores, parlamentares e dirigentes partidários – a atuação é classificada por um interlocutor dele como “prospecção” eleitoral. Dirceu tem sido bastante elogiado dentro do partido, que para evitar danos de imagem o mantém estrategicamente afastado do círculo mais próximo de Lula.
Outro rosto conhecido que ganhou espaço nas hostes petistas nos últimos tempos é o do ex-deputado José Genoino, que também já presidiu o PT, como Dirceu, e foi igualmente condenado no processo do mensalão, em 2012. Hoje, Genoino vocaliza a ala mais radical do partido. Ele encampou um abaixo-assinado contra a ideia de lançar o ex-governador paulista Geraldo Alckmin como vice na chapa de Lula, defendida por Fernando Haddad. É no grupo de Genoino que flui o petismo mais ideológico, defensor das ditaduras de esquerda da América Latina, como a da Venezuela, e que responsabiliza a “hegemonia neoliberal” pelas agruras do país – um discurso que, vez ou outra, e a depender de quem está a ouvi-lo, o próprio Lula também adota. Embora seja muitas vezes engolida pelo pragmatismo lulista, essa ala exerce influência e forte pressão interna nas decisões partidárias. Foi assim, por exemplo, na constrangedora nota que celebrou em novembro passado a “vitória” do ditador Daniel Ortega nas eleições na Nicarágua e a polêmica ida de Gleisi à posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro, em 2019.
Até o ex-tesoureiro Delúbio Soares, condenado ao lado de Genoino e Dirceu no mensalão, começou a dar pitacos nos grupos de WhatsApp da militância petista, cavando espaço. A mulher de Delúbio, Mônica Valente, ainda integra a Executiva Nacional do partido, na qual já comandou o departamento de relações internacionais, e é a principal representante da legenda no Foro de São Paulo, que reúne a esquerda latino-americana e costuma defender gente como os narcoguerrilheiros colombianos das Farc – recentemente, a agremiação se manifestou a favor da prisão de políticos opositores por Ortega na Nicarágua. Por ora, nas questões diplomáticas, Lula tem seguido mais os conselhos do ex-chanceler Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa. Integram ainda a tropa os ex-ministros Fernando Haddad e Jacques Wagner, que só não se dedicarão mais à campanha do chefe petista porque precisarão gastar sola de sapato para tentar vencer as eleições ao governo paulista e baiano, respectivamente.
Enquanto na base petista já tem gente sonhando em voltar a ocupar um cargo em Brasília, o discurso das principais lideranças do partido é de cautela, para conter o clima de “já ganhou” que começou a se espraiar pela militância diante da vantagem que Lula tem sobre os demais candidatos nas pesquisas. Os mais experientes lembram da campanha de 1994, quando ele tinha 40% das intenções de voto em maio, cinco meses antes do pleito, e perdeu para o tucano Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. “Naquela eleição, teve um jornal que publicou uma lista completa de quem seriam os ministros do Lula e deu no que deu”, recorda um dirigente.
É espantoso que, hoje, uma parte significativa dos eleitores brasileiros não tenha memória do filme antigo protagonizado pelo PT e o seu chefe.
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