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O resgate por meio da arte

30.12.21
CARLA CAMURATI

A Semana de Arte Moderna de 22 completará um século no próximo ano.  O evento, que aconteceu no Teatro Municipal de SP, foi de uma elegância admirável. Quem conseguir achar as fotos da exposição ou os materiais que foram produzidos naquele tempo entenderá facilmente o que estou dizendo. Foi um momento muito especial. Pensadores e artistas de vanguarda estavam trabalhando na mesma página. O que resultou dali foi uma explosão de criatividade. O país daquele ano conseguiu se analisar de um ponto de vista muito interessante, usando a ideia do antropofagismo e absorvendo o que de melhor havia no resto mundo, revigorando e enaltecendo a cultura brasileira. O legado daqueles artistas influenciou várias gerações e tem muito a nos ensinar, mesmo um século depois.

No ano que vem, o Brasil terá eleições presidenciais. O momento, com certeza, é outro. A política está muito difícil e tem drenado a energia de outras áreas da nossa sociedade. A polarização é intensa. As conversas carregam uma agressividade muito grande. A pandemia e a gestão do país deixaram um clima de terra arrasada. A nossa cultura foi muito castigada. Além de sermos prejudicados com o cancelamento de shows e de peças de teatro, nossos artistas foram zombados, tripudiados, ridicularizados. Sem qualquer motivo, pessoas brilhantes como o cantor Djavan e a atriz Zezé Mota acabaram atacados, repito, sem qualquer motivo. Algumas pessoas passaram a se referir aos artistas apenas como uma classe de privilegiados que passa o tempo todo sugando o dinheiro público. A velha tática de desqualificar o adversário na falta de argumentos, entre outras ações, como as fake news, fizeram um malefício enorme ao país. Tudo muito cruel e injusto.

Ao mesmo tempo, a importância que a cultura teve durante a pandemia foi enorme. Quando fomos obrigados a nos isolar, o que nos salvou foram os filmes, os musicais, as canções, os livros e as lives. Basta imaginar o que teria sido de nós sem acesso ao entretenimento. A regressão teria sido enorme. Não dá para ficar só na raiva, no mimimi das redes sociais, ou publicando fotos de pratos de comida.

Com a campanha de vacinação avançando e a pandemia arrefecendo, é possível que no ano que vem, apesar da Ômicron, venha a se abrir um novo espaço para que a cultura volte a cumprir o seu papel. Será preciso, em primeiro lugar, encontrar os pontos em comum que nos unem, assim como os artistas da Semana de Arte Moderna fizeram em 1922. Aquela elegância que Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e tantos outros demonstraram há 100 anos também deve nos servir de inspiração. Precisamos nos colocar acima de toda relação sistêmica que estabelecemos com a política. Sem que nos consultassem, tivemos de nos habituar a práticas tóxicas, ruins, improdutivas. Precisamos que a cultura nos guie para desarmar essa bomba, ou nossos bisnetos continuarão sofrendo com os seus estilhaços.

A cultura também poderá nos ajudar a estruturar um projeto de país. É fato que teremos eleições, e que o cenário é de forte polarização. Mas saber para onde vamos como sociedade não depende de apoiarmos soluções de esquerda ou de direita. Muitas coisas dependem apenas do bom senso. Não faz o menor sentido que parlamentares possam votar secretamente. Eles representam os seus eleitores e precisam arcar com suas decisões. Votações durante a madrugada também devem ser descartadas, e ponto final. Essas e tantas outras pequenas ações poderiam promover a volta de um debate civilizado na política brasileira.

Outra coisa: um país que tem uma empresa processadora de carne do tamanho da JBS não pode jamais ver carne apodrecendo nos armazéns, enquanto as pessoas estão se alimentando de ossos, ainda mais depois que o BNDES entrou na sua lista de financiadores. Falta cidadania em boa parte do empresariado brasileiro. A falta de compromisso com o país é inacreditável. As pessoas buscam um pai, um xerife, um salvador da pátria. Eu quero um país direito, independentemente de quem estiver no comando.

Precisamos de um país que funcione, que tenha leis claras e simples, fáceis de serem cumpridas. Nosso desafio vai além de pensar 2022. É necessário desejar o que seremos como nação em 2023, 30, 40. Talvez até mais longe. Onde queremos chegar como país? Como pretendemos desenvolver nossa cultura, a ciência, a educação?  O desenvolvimento da economia depende de tudo isso se você pensa a longo prazo.

Esse debate é urgente e, para que ele aconteça e renda frutos, há que se recuperar as coisas que nos unem. Sem uma convivência mínima, sem encontrar nossos pontos em comum, essa discussão jamais acontecerá. Afinal, todos devemos sugerir soluções para nossos problemas e gargalos, tendo em vista a reconstrução do país. Tudo isso deve ocorrer independentemente dos partidos das pessoas. Quanto mais gente colaborar, melhor.

Para aqueles que só veem a política como um campo para lançar ataques contra tudo e qualquer um, vale recordar também a nossa história e fazer um pouco de graça disso tudo. Desde sempre o povo brasileiro soube rir de seus problemas. Não é por acaso que os brasileiros produzem tantos memes geniais nas redes sociais. Nos jornais de maior circulação, sempre há uma charge fazendo piada com as notícias sérias de política alguns centímetros acima, na mesma página. Não é à toa que as grandes estrelas do nosso cinema foram comediantes como Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Oscarito e Mazzaropi. Então, em grande parte, acho que são os humoristas que nos ajudam, em meio a tantas dificuldades, a suportar esses momentos – e também eles nos ajudarão a encontrar um caminho mais sensato.

Esse trabalho será fundamental, porque o mundo em que a gente vivia mudou. Quando voltarmos à convivência, as coisas terão uma potência diferente. Os hábitos, as possibilidades, a economia, tudo foi transformado e continua mudando.

Este, portanto, é o momento de enxergar mais além, sem raiva, e como um povo. Uma ópera que estou produzindo para o ano que vem foi inspirada em um dos poemas do livro Cobra Norato, de Raul Bopp. A certa altura, o texto diz que “nossos olhos estão entupidos de escuridão”. A gente precisa voltar a acender a luz. Passamos por caminhos muito destrutivos e tortuosos. A cultura, que é nossa raiz coletiva, é o que nos ajudará a encontrar um ponto em comum e permitir que possamos seguir adiante. Não podemos passar o resto de nossas vidas mordendo uns aos outros, desconfiando dos demais e achando que tudo o que eles falam é mentira. É preciso resgatar o Brasil.

Carla Camurati é atriz e cineasta. Dirigiu os filmes Carlota Joaquina, Princesa do Brazil e Irma Vap – o Retorno. Seu trabalho mais recente é o documentário 8 Presidentes 1 Juramento: a História de um Tempo Presente. Foi presidente da Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

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